Stoner, de John Williams

Quarta-feira, 18 de novembro de 2015





Opinião
William Stoner é a antítese de um protagonista com os ingredientes para arrebatar-nos. Filho único de um casal de agricultores que sempre se debateu com dificuldades em ganhar o seu sustento de uma terra árida e pouco produtiva, quebra o ciclo dentro da família ao não seguir as pisadas de seus antepassados. Termina os estudos secundários e é surpreendido com a proposta do pai em prosseguir a sua educação numa Escola Superior Agrária. Sai assim de casa dos seus progenitores para não mais voltar a essas origens. Inicia a sua vida adulta e independente estudando e trabalhando para pagar o seu sustento e o quartinho minúsculo que ocupa em casa de uns primos da mãe.
A segunda grande mudança da sua vida ocorre quando descobre a literatura nas aulas de um professor excêntrico, mas que o cativa irremediavelmente e o faz interromper o curso da Escola Agrária e mergulhar numa vida de livros, palavras, letras, regras gramaticais, histórias, autores, correntes literárias. Descobre aí a sua vocação e o sentido da sua vida. Tornar-se-á professor e amante da sua língua, dos livros, do vaguear pela biblioteca, da urgência e da tranquilidade que nos assola quando seguramos um livro nas mãos e nada mais queremos que não seja perdermo-nos no seu cheiro, no folhear das suas páginas e na viagem que nos proporciona a sua história, o conjunto das suas palavras.
“Na biblioteca da universidade vagueava por entre as estantes, por entre os milhares de livros, inspirando o odor bafiento a couro, tecido e papel ressequidos como se fosse um exótico incenso. Por vezes parava, tirava um volume de uma prateleira e segurava-o um instante com as suas mão grandes, que eram tomadas por um formigueiro perante essa sensação ainda nova da lombada, de capa cartonada e das folhas de papel que se lhe ofereciam sem resistência. Depois, folheava o livro, lendo um parágrafo aqui e ali, os seus dedos hirtos virando as páginas cuidadosamente, com medo de, desajeitados, rasgarem e destruírem aquilo que tinham descoberto com tanto esforço.”  (págs. 18, 19)
Este amor, esta entrega aos livros e à literatura transfiguram William Stoner, mas quem passe por ele nos corredores da Universidade de Missouri, quem assista à maioria das suas aulas, quem conviva com ele de forma assídua, apenas se depara com um homem desajeitado, calado, sorumbático, algo apático e a quem nada nem ninguém parece afetar verdadeiramente. É um homem cujas raízes humildes, cuja vida entre paredes silenciosas de parcas trocas de palavras o habituaram a observar, a calar para si o que pensa, o que sente, o que alegra, o que o entristece, o que o magoa. Por essa razão, apenas nós, os leitores, o conhecemos verdadeiramente, o acarinhamos, o tentamos espicaçar para reagir, nos compadecemos dele. Por essa razão ainda, o início da obra nos informa, crua e objetivamente, que a existência de Stoner e o impacto que a mesma teve na vida de quem o conheceu ou ouviu falar dele foi mínimo, insignificante.
Um aluno que ocasionalmente depare com o nome poderá perguntar-se quem era William Stoner, mas poucas vezes tentará saciar a curiosidade, indo além da pergunta casual. Os colegas de Stoner, que não lhe tinham uma estima por aí além quando era vivo, raramente falam dele agora; para os mais velhos, o nome é um lembrete do fim que os espera a todos e, para os mais jovens, é um mero som que não evoca qualquer noção do passado nem qualquer sentimento de identificação quer em termos pessoais, quer em termos de carreira.” (pág. 7)
Sendo assim, como é que uma obra que tem como título o nome do seu protagonista, protagonista esse um homem que vive uma vida mediana, insignificante para alguns, possa ser considerada por nomes sonantes como um “romance formidável” ou “Um dos grandes romances esquecidos do século passado”? Simplesmente porque está escrito com uma simplicidade e uma acuidade que nos desarmam, porque as suas personagens estão carregadas de veracidade, porque os seus comportamentos despoletam as mais variadas reações, porque a genialidade do autor e da obra que criou são uma lufada de inteligência, de comedimento, de naturalidade e de supremacia face à mediocridade, pouco talento e ausência de saber-fazer de carradas de coisas que se publicam hoje em dia, só porque a escrita “virou moda”.
Stoner foi publicado em 1965 e, tal como o seu protagonista, caiu rapidamente no esquecimento. Em 2013 foi aclamado o melhor livro do ano pelos leitores de uma livraria britânica. Eu tomei conhecimento da sua existência apenas este ano, numa das conversas “sumarentas” que tenho com a minha compincha literária, Nancy. Adquiri-o em agosto e só agora em novembro preencheu as minhas horas literárias. Demorei seis dias a lê-lo e ainda hoje, enquanto escrevo isto e já tendo outra obra a fazer-me companhia, sinto William Stoner aqui ao lado. E sei a razão por que ainda não me abandonou. Não é fácil dizer-lhe adeus, porque a sua insignificância, a sua vida medíocre e trivial, as horas que passava a observar a paisagem que a janela do seu gabinete lhe oferecia, o amor aos livros e à sua língua, o silêncio carregado de afeto dos momentos que partilhou (na verdadeira essência da partilha) com a filha enquanto esta era criança, o amor e a intimidade que não encontrou no casamento, a forma como se despediu da vida e sobretudo o seu carácter que nos impele a fechar a porta ao mundo e a querer estar aí, ao seu lado, tudo isto faz-me concordar em pleno com as críticas que acompanham a sinopse na contracapa e a recomendar a história de William Stoner a todos aqueles que tenham vontade de deitar as mãos a uma história brilhantemente escrita e que toca e reflete a vida quotidiana, banal, ordinária como poucos romances o fizeram.
Mesmo muito bom.

NOTA – 09/10

Sinopse
Romance publicado em 1965, caído no esquecimento. Tal como o seu autor, John Williams - também ele um obscuro professor americano, de uma obscura universidade. 
Passados quase 50 anos, o mesmo amor à literatura que movia a personagem principal levou a que uma escritora, Anna Gavalda, traduzisse o livro perdido. Outras edições se seguiram, em vários países da Europa. E em 2013, quando os leitores da livraria britânica Waterstones foram chamados a eleger o melhor livro do ano, escolheram uma relíquia. 

Julian Barnes, Ian McEwan, Bret Easton Ellis, entre muitos outros escritores, juntaram-se ao coro e resgataram a obra, repetindo por outras palavras a síntese do jornalista Bryan Appleyard: "É o melhor romance que ninguém leu". Porque é que um romance tão emocionalmente exigente renasce das cinzas e se torna num espontâneo sucesso comercial nas mais diferentes latitudes? A resposta está no livro. Na era da hiper comunicação, Stoner devolve-nos o sentido de intimidade, deixa-nos a sós com aquele homem tristonho, de vida apagada. Fechamos a porta, partilhamos com ele a devoção à literatura, revemo-nos nos seus fracassos; sabendo que todo o desapontamento e solidão são relativos - se tivermos um livro a que nos agarrar.

4 comentários:

  1. Olá Ana,
    Li este livro também este ano e adorei. Foi um dos meus preferidos.
    Ainda bem que gostaste.
    Beijinhos e boas leituras

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    1. Olá, Isaura. É realmente um livro maravilhoso que espero que nunca mais caia no esquecimento e que lhe continuem a dar o merecido valor.
      Muitos beijinhos e boas leituras!

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  2. Loved it! It's one of the best novels I've read. Thank you for bringong it to my attention. ☺

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    1. You're welcome! It's really a very good novel that thankfully is being appreciated again! The writer and the story that he created deserve it!

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