Segunda-feira, 31 de agosto de 2015
Opinião
Despeço-me de agosto, das férias e
teoricamente do verão com a leitura de outro livro poderoso de Javier Marías. Amanhã na batalha pensa em mim é
a terceira obra que leio deste autor castelhano e depois de encerrá-la sinto-me
obrigada a repetir o que afirmei nas opiniões que escrevi sobre Os enamoramentos e Coração tão branco – Javier Marías
é um senhor autor, a sua escrita é densa, perturbadora, que nos impele a
pensar, a parar a leitura e a refletir sobre o que acabámos de ler, a fazer
paralelismos com nosso quotidiano, com os nossos sonhos, medos, terrores e
acima de tudo ajuda-nos (com exemplos surreais mas surpreendentemente verosímeis)
a compreender a complexidade e o multifacetismo do pensamento e dos
comportamentos do ser humano.
Tal como é apanágio do autor (pelo
menos nas obras que li dele), o início de Amanhã
na batalha pensa em mim prende-nos irremediavelmente a atenção e
deixa-nos em polvorosa para virar página atrás de página e acompanhar o drama
do protagonista, a quem acontece algo de muito insólito – no primeiro jantar
que partilha com quem poderá ser uma breve conquista, Víctor Francés termina a
noite não com o previsível ato sexual mas sim com uma mulher morta nos braços.
Quais são os seus passos seguintes? Como
reage a esta morte terrível e ao mesmo tempo embaraçosa? Que pode fazer ele,
praticamente um desconhecido para aquela mulher, para remediar uma situação que
já não tem remédio? Deverá telefonar, avisar alguém? Mas quem? O marido
atraiçoado é o único que poderá contactar, mas que lhe dirá – que a sua mulher
lhe morreu nos braços, momentos antes de consumar o adultério?
Todas estas questões abrem a narrativa
de um livro que possui todos os ingredientes para cativar-nos e deixar-nos
empolgados. Apresenta-nos uma ação que é entrelaçada com um desfiar contínuo de
pensamentos, de divagações e de paralelismos que mexem connosco, que nos fazem
vestir a pele das personagens, sobretudo a do protagonista e narrador, imaginar
como reagiríamos se estivéssemos no seu lugar, concordar ou discordar com os
seus passos e decisões e sobretudo refletir sobre as inúmeras questões que lhe
vão povoando os dias e as noites de insónia.
A obra termina com um epílogo que
consiste na transcrição do discurso que Marías proferiu aquando da entrega de
um prémio que o galardoou pela criação desta obra. Desse discurso transcrevo
aqui algumas passagens que considero importantíssimas para compreendermos o
verdadeiro teor e mensagem de Amanhã
na batalha pensa em mim:
“As
pessoas talvez consistam, em suma, tanto no que são como no que não foram,
tanto no comprovável e quantificável e recordável como no mais incerto,
indeciso e esfumado, talvez sejamos feitos em partes iguais do que foi e do que
podia ter sido.” (pág. 377)
“Recorda-se
que todos vivemos parcial e permanentemente enganados ou então enganando,
contando apenas uma parte, ocultando outra parte e nunca as mesmas partes às
diferentes pessoas que nos rodeiam.” (pág. 377)
Estes fragmentos são, na minha
opinião, perfeitos. Mostram em palavras, de forma nua e crua, sem subterfúgios,
como somos. Como nós, seres humanos, por um lado, somos uma soma daquilo que
fazemos, pomos em prática e daquilo que por isto ou por aquilo apenas ficou
pela ideia, pela vontade, pelo sonho e não se realizou. Mostra por outro que
nunca somos verdadeiramente transparentes para com os outros como também estes
não o são connosco e que aquilo que deixamos transparecer ou saber não é o
mesmo, não é igual consoante quem temos à nossa frente.
Estas são assim as ideias fundamentais
que atravessam a obra, bem como a morte, principalmente aquela que é inesperada,
ou na qual temos alguma participação, que nos atormenta e nos mantém “haunted”,
ou seja, (e segundo o autor, um filólogo inglês), nos amaldiçoa e nos mantém
debaixo do seu encantamento. Tudo isto aliado a um punhado de personagens muito
bem desenhadas, que encaixam com primor numa narrativa, que volto a frisar, nos
permite “viver dentro da cabeça” do protagonista, seguir-lhe o que lhe vai na
alma à medida que os dias vão passando, desde o fatídico acontecimento que, tal
como ele sabe, não permitirá que jamais se esqueça do nome de Marta Téllez – “Que pena saber o teu nome embora já não
conheça o teu rosto amanhã…” (pág. 201)
Termino esta opinião referindo que o
título da obra, bem como o de Coração
tão branco provêm de obras de Shakespeare e que são mais uma evidência
do quanto a língua e cultura inglesas são caras ao autor e do quanto
influenciam a sua criação literária. Também não posso deixar de mencionar que
as tiradas cómicas que ajudam a abrilhantar uma obra já de si representativa de
literatura com letra maiúscula representam muito bem o característico humor
britânico J
Só me resta dizer – Bravo, Javier
Marías! E quero mais! Muito mais!
Nota – 09 /10
Sinopse
Victor
Francés, um guionista frustrado, é convidado a jantar em casa de Marta Téllez,
uma bela mulher casada que mal conhece e cujo marido está em viagem. Sem saber
bem o que esperar, Victor apercebe-se, a dada altura, do carácter romântico
deste convite… No entanto, antes de consumar o adultério, Marta sente-se mal e
cai morta à sua frente. Numa Madrid invernosa e noturna, Víctor foge daquela
casa para nunca mais ser o mesmo. Para trás, deixou sozinha uma criança de dois
anos, filho de Marta, que dormia num dos quartos. Que fazer com o cadáver?
Deverá avisar as autoridades? E a criança? E o marido? A sua reação e a
infidelidade que não chega a cometer irão consumir-lhe os pensamentos e
torná-lo numa sombra de um homem, alguém que se dissimula, e às suas intenções,
a cada passo e se questiona sobre a diferença entre a vida e a morte. Ainda
mais que nos seus livros anteriores, Javier Marías revela-nos uma narrativa
imbrincada acerca das várias questões que a todos nos consomem: o segredo, as ações
e as intenções, as vontades que ficam por cumprir, a rejeição, o esquecimento,
a indecisão, a despedida e, acima de tudo, o engano que, quiçá, é «a nossa
condição natural e, na realidade, não deveria magoar-nos tanto».