Ficha técnica
Título – Patria
Autor – Fernando Aramburu
Editora – Tusquets Editores
Páginas – 646
Datas de leitura – de 02 a 12 de abril de 2018
Opinião
Já
terminei de ler esta obra há quase 10 dias e ainda não me sinto confiante o
suficiente para falar sobre ela, para pôr em palavras e da forma mais completa e
elucidativa o quanto as suas mais de seiscentas palavras me tocaram, me
atropelaram e me fizeram viver (no verdadeiro sentido do verbo) durante
precisamente dez dias no seio de duas famílias bascas.
Ontem,
dia 20 de abril de 2018, a organização terrorista ETA emitiu um comunicado a
pedir perdão pela dor e pelos danos causados às vítimas das suas ações.
Compreendi que esse perdão é dirigido apenas a “cidadãos e cidadãs sem
responsabilidade nenhuma no conflito.” Não vou sequer comentar este pedido de
perdão “parcial e amputado”. Porém, vou aproveitar esta coincidência para
tentar organizar o tumulto de ideias e sentimentos que me habitam desde que
encerrei a leitura de Patria,
estruturar a correspondente opinião e render assim a minha humilde homenagem a
uma narrativa que recomendo encarecidamente que conheçam.
No dia
21 de outubro de 2011, a ETA declara o fim da luta armada e é exatamente nesse
dia histórico para o País Basco (como me custa escrever “Basco” com “b”!...)
que arranca a narrativa de Patria. É a partir desse dia de outono que nos
adentramos na vida e nas casas de duas famílias simples, que poderiam ser
perfeitamente meus vizinhos e que, após anos de uma amizade sólida, vivem há
bastante tempo de costas voltadas porque a luta armada e as suas escolhas assim o
determinaram.
“Las pintadas contra el Txato le quitaron a
Joxian el apetito. Y también le privaron de su mejor amigo. Porque en un
ciudad, pase; pero en el pubelo, donde todos nos conocemos, tú no puedes tener
trato con un señalado.” (pág. 332)
“Porque soy tan cobarde como él y como tantos
otros que a estas horas, en mi pueblo, estarán diciendo bajito para que no les
oigan: esto es una salvajada, un derramamiento inútil de sangre, así no se
construye una patria. Pero nadie moverá un dedo. A estas horas ya habrán
limpiado la calle con una manguera para que no quede rastro del crimen. Y
mañana habrá murmullos en el aire, pero en el fondo todo seguirá igual. La
gente acudirá a la siguiente manifestación a favor de ETA, sabiendo que conviene
dejarse ver en la manada. Es el tributo que se paga para vivir con tranquilidad
en el país de los callados.” (pág. 462)
Joxian
e el Txato (de quem nunca chegamos a saber o verdadeiro nome, só esta alcunha)
são amigos de uma vida. Partilham segredos, ninharias do dia-a-dia e todos os
domingos saem de passeio de bicicleta com outros vizinhos e chegam inclusive a
fazer competições amadoras de ciclismo. As suas mulheres, Miren e Bittori
também se conhecem há imenso tempo e partilham tudo uma com a outra. Joxian
casa-se com Miren e Bittori com el Txato. Vivem os quatro a poucos metros uns
dos outros numa vila pequena, não muito longe de San Sebastián. O primeiro
casal são pais de três filhos, o segundo de dois. A normalidade e a rotina
determinam as suas existências até que, por um lado, el Txato começa a receber
cartas que lhe exigem que contribua monetariamente para a luta pela
independência do País Basco e, por outro, um dos filhos de Joxian – Joxe Mari –
se envolve cada vez mais com o braço armado dessa luta. El Txato acede a dar
uma primeira contribuição, mas recusa-se a dar uma segunda. Esta recusa será o
passo inicial para o que culmina no seu assassinato, em plena rua, a poucos
passos de casa. De nada lhe valeu a mudança de hábitos, horários e uma atenção
redobrada. De nada lhe valeu ignorar insultos escritos nas paredes da sua terra
natal. De nada lhe valeu tentar manter-se íntegro, fiel aos seus princípios de
homem e basco honrado. De nada lhe valeu ver-se privado de uma amizade toda a
vida. Foi ostracizado por não querer contribuir para a independência da sua terra,
foi ostracizado por querer viver tranquilamente e não seguir a manada numa
terra em que, se não te mostras a favor da luta pela independência, és o pior
dos inimigos e mereces morrer por tal.
Esta é
a base de Patria, mas a obra é
muito mais do que isto. É um retrato que considero muito fidedigno do quanto o
medo, a violência e o radicalismo de um grupo armado levaram a extremos um
desejo compreensível de um povo de ser independente de outro com quem não tem
afinidades linguísticas, históricas e sociais. É o espelho do quanto um punhado
de gente radicaliza a sua vontade e se assume como a voz totalitária de todos
os que vivem para lá das fronteiras da terra que eles consideram ser Basca. E é
sobretudo a representação literária de duas famílias que cortam totalmente
relações, porque assim o exigem os outros, os vizinhos, a sociedade, a
História. Metem numa gaveta anos e anos de convivência, de cumplicidade, porque
ou se acham cobardes e deixam de partilhar passeios dominicais de bicicleta ou
se mostram indignados com tal afronta à vontade independentista e rompem com os
lanches de sábado na pastelaria do costume ou se transformam nos mais ávidos
defensores da luta armada apenas porque é um orgulho ser progenitora de um
jovem etarra. Nove vidas estreitamente ligadas pela amizade e companheirismo
rompem esse laço umbilical porque, de um lado, está um traidor à pátria basca
e, do outro, está um lutador acérrimo pela sua independência.
Ao
longo das mais de seiscentas páginas seguimos de muito perto essas nove vidas,
mesmo a de el Txato que sabemos, desde as linhas iniciais, ter sido assassinado
entretanto. Saltamos do presente para o passado em capítulos muito curtos
protagonizados por um ou mais das referidas nove personagens. Compreendemos que
a narrativa está estruturada como se fosse um puzzle, cujas peças vamos
encaixando à medida que a leitura avança. Porém, e por muito que seja viciada
em quebra-cabeças, reconheço que este que arquitetou o autor está não só muito
bem desenhado, como também não é de difícil montagem para nenhum leitor, mesmo
para aqueles que torcem o nariz a calhamaços, já que a leitura flui
maravilhosamente bem e quando damos por ela, já estamos a terminá-la.
A mestria
de Fernando Aramburu também se revela na construção das personagens, nas suas
atitudes, nos seus sentimentos, nas suas personalidades e nos diálogos que
mantêm com outros e consigo mesmos. Estão de tal forma maravilhosamente
construídas que as sentimos próximas, vivas, reais e nada, nada artificiais. É,
como tal, óbvio que tenha criado laços com todas elas. Laços muito fortes e
distintos. Laços caracterizados pela admiração, pela compaixão, pela simpatia,
pela ternura, pela compreensão e pela revolta, pela aversão, pela antipatia,
pela incompreensão e pela discordância. Absorvi-me tão absolutamente em todas
elas que me apeteceu esbofetear inúmeras vezes Miren, abanar e acordar Joxian
para a realidade e abraçar Xabier e recordar-lhe de que ele tem direito a ser feliz.
Mas, como na vida, nem tudo pode ser visto de forma extrema, nem tudo é preto e
branco e fui incapaz de sentir apenas um tipo de sentimentos por todas as nove
personagens. Quem me diz a mim que, como mãe, não atuaria como Miren perante o
seu filho Joxi Mari?
Para
terminar esta opinião que já vai longa (e que longa… parece que, afinal, estou
a ser capaz de pôr no papel tudo o que queria), quero partilhar convosco um
paralelismo que me veio à cabeça muitíssimas vezes ao longo da leitura – não consigo
conceber o porquê de uma luta armada e extremista. Simplesmente não consigo. Contudo,
sempre me recordo que, por detrás, desse extremismo armado e terrorista está um
sonho, uma vontade, um querer compreensível, como aquele que conheci quando vi
pela primeira vez o filme Diarios de
Motocicleta, que nos relata uma viagem que um jovem médico (mais tarde
conhecido como Che Guevara) empreende por vários países sul-americanos e que o
faz perceber o quanto todas aquelas terras e aqueles povos foram torturados e
espezinhados por séculos e séculos de um colonialismo bárbaro. Do sonho de
tornar todo aquele território num só, unido e determinado a ser dono de si
mesmo, resultou aquilo que sabemos – derrame de sangue e perdas de muitas e
muitas vidas.
Patria já foi publicada em português, sob a
chancela da Dom Quixote. Assim sendo, posso recomendá-la a todos, já que não
será a língua espanhola a impedir nenhum leitor de conhecê-la e de amá-la tanto
como eu a amei!
Deixo-vos
o link do vídeo onde poderão ver
Fernando Aramburu e a apresentação do seu livro aos leitores portugueses:
NOTA –
10/10
Sinopse
Tras
el anuncio de ETA del abandono de la lucha armada, Bittori visita la tumba de
Txato, su marido, asesinado por terroristas, para anunciarle que regresará a la
casa en la que vivieron.
¿Podrá
convivir con quienes la acosaron antes y después del atentado que trastocó su
vida y la de su familia? ¿Podrá saber quién fue el encapuchado que un día
lluvioso mató a su marido, cuando volvía de su empresa de transportes? Por más
que llegue a escondidas, la presencia de Bittori alterará la falsa tranquilidad
del pueblo, sobre todo de su vecina Miren, amiga íntima en otro tiempo, y madre
de Joxe Mari, un terrorista encarcelado y sospechoso de los peores temores de
Bittori. ¿Qué pasó entre esas dos mujeres? ¿Qué ha envenenado la vida de sus
hijos y sus maridos tan unidos en el pasado?