A casa das bengalas, de António Mota


Ficha técnica
TítuloA casa das bengalas
Autor – António Mota
Editora – Gailivro
Páginas – 164
Data de leitura – de 21 a 22 de outubro de 2017

Opinião
A última obra que li de António Mota – Pedro Alecrim – conduziu-me a uma entrevista dada pelo autor a alunos de uma escola qualquer deste nosso país. Li-a com bastante interesse e fiquei em pulgas quando o autor referiu que a obra que o havia feito ir às lágrimas havia sido A casa das bengalas, que havia escrito as suas últimas páginas com os olhos marejados. É claro que não perdi tempo em tentar saber de que tratava a narrativa em questão e quando constatei que se centrava na solidão dos idosos, tratei logo de ver se a biblioteca da terrinha o tinha. E tinha-o, para minha grande alegria!
Por isso, na semana passada trouxe-o comigo e devorei-o praticamente todo numa manhã onde a leitura andou de mão dada com o desporto. A personagem principal é o avô Henrique que viveu a sua já longa vida numa aldeia perdida do interior do país. Vive sozinho na sua casinha e sempre cuidou de si próprio com brio e aprumo, mas agora que a saúde começa a pregar-lhe recorrentes partidas tem que obedecer à sua filha e fechar a porta da sua casinha, abandonar os seus pertences, deixar para trás tudo o que até então orientou os seus dias e passar uma temporada no apartamento da filha e posteriormente resignar-se a partilhar quarto com outro ancião num lar de terceira idade.
A obra é de 1995, mas o tema continua a ser muito pertinente. Cada vez mais. Os velhos que são vistos como velhos, como indesejados, como incómodos, como ocupadores de espaço e de tempo. Os velhos que se tenta despachar a qualquer custo para que definhem e sejam apenas um corpo enfezado, abatido numa cadeira ou numa cama qualquer, sem lampejo de calor ou vida. Os velhos que ninguém quer. Os velhos de que tenho tantas, mas tantas saudades e que tanto, mas tanto queria de novo comigo.
O avô Henrique abriu a ferida que nunca vai fechar, porém abriu-a com uma mistura de lágrimas e de sorrisos. Regressei aos meus tempos de adolescente, aos dias passados ao ar livre entre árvores de fruta, videiras, batatais, abóboras, milheiral, animais à solta; aos almoços e jantares na cozinha dos meus avós, divisão de construção tosca, mobilada com peças desconjuntadas e decorada com o indispensável calendário “que tem que ter as luas, que tem que ter as luas”. Voltei a sentir os meus velhinhos junto a mim graças aos diálogos carregados de sabedoria e experiência entre o avô Henrique e o seu neto Tião e a todo o carinho disfarçado de rudeza e pragmatismo que os envolvia sempre que estavam juntos.
Foi assim uma leitura muito emocional, muito pessoal. Foi mais uma prova (como se ainda precisasse de provas) do quanto a literatura infanto-juvenil me faz bem, me afaga e me tranquiliza. A casa das bengalas reforçou ainda o apreço que tenho pelo seu autor, criador de histórias simples, habitadas por personagens simples, portadoras de situações com as quais me identifico sempre por me serem muito familiares. Saio da sua leitura com um sorriso nos lábios, mesmo tendo vertido algumas lágrimas, tal como o fez o autor enquanto a escrevia. Saio feliz e apaziguada, prometendo a mim mesma um regresso rápido aos livrinhos infantis e juvenis.

NOTA – 09/10

Sinopse
Um avô que fica sozinho na aldeia. A cidade não o seduz, apesar de aí residir a escassa família que possui. O recurso a um lar de idosos para afastar a solidão daquele avô que precisa que alguém cuidasse dele. As visitas da família são frequentes mas rápidas, pois os visitantes "desta casa têm sempre muita pressa". Mas há o neto que não se esquece do que o avô lhe ensinou e está sempre pronto a satisfazer-lhe todos os caprichos.
Prémio António Botto.

O último adeus, de Kate Morton


Ficha técnica
TítuloO último adeus
Autora – Kate Morton
Editora – Suma de Letras
Páginas – 616
Data de leitura – de 12 a 21 de outubro de 2017

Opinião
Este mês vai ser curto em leituras, sobretudo porque viajei de um calhamaço para outro. De calhamaço de 494 páginas para outro de 616. São mais de 1000 páginas reunidas em apenas duas narrativas. Daí o número reduzidinho de obras lidas. Mas caramba, que importam números e quantidades quando aterram nas minhas mãos histórias tão sumarentas como as que saem do engenho e arte de Joanne Harris e de Kate Morton? Uma ninharia, importam uma ninharia.
O último adeus é a quarta obra que saboreio da australiana Kate Morton. E tal como as suas antecessoras, esta história que percorre espaços lindíssimos da Cornualha e as ruas movimentadas de Londres agarrou-me, prendeu-me, colou-me às suas páginas e comprovou o que não precisava de mais nenhum comprovativo – as obras desta autora cumprem as minhas expectativas, melhor dizendo, ultrapassam as expectativas que já de si são sempre elevadíssimas. Quarta obra lida, quarta obra a que atribuo a nota máxima.
O mote é familiar – uma recordação, uma carta, uma herança, uma casa abandonada descoberta por acaso. Algo que sacode a vida de uma jovem e que a “obriga” a escarafunchar um passado remoto abalroado por um acontecimento marcante ou trágico. Em O último adeus, Sadie, uma inspetora da Scotland Yard, refugia-se em casa do avô, na região da Cornualha, para esquecer o que a levou a ter que ausentar-se do trabalho. Numa das habituais corridas matinais, “tropeça” num jardim e numa casa abandonados. Espreita por uma das janelas e constata que no seu interior tudo está exatamente como era há setenta anos, como se os donos tivessem abandonado a casa sem olhar para trás, sem se preocuparem em levar nada consigo. Intrigada e com o seu faro de inspetora em alerta máximo, Sadie tudo faz para descobrir o que se terá passado naquela magnífica mansão e acaba por descobrir que no dia do solstício de verão do ano de 1933, o filho do casal Edevane, um bebé de pouco mais de um ano, desaparecera misteriosamente e nunca mais fora encontrado.
Os dados estavam assim lançados para uma leitura vertiginosa, que me fez, tal como aconteceu com as outras obras de Kate Morton, avançar desenfreadamente página atrás de página, saltar sem descanso do ano de 2003 para o início do século XX, para anos como os de 1911 ou 1933, conhecer e apaixonar-me por um conjunto de personagens fascinantes e voltar a render-me aos encantos da Cornualha (espaço que habita também a obra O Jardim dos segredos), uma região que tenho mesmo que visitar. Nos nove dias em que a obra não saiu do meu lado, bastava-me fechar os olhos para empreender uma viagem que me levava para junto de personagens que iluminaram e encheram os meus dias de uma luz e de um brilho ainda mais intenso. Senti-me como mais um elemento da família Edevane, senti-me como mais uma neta de Bertie, o avô de Sadie, vi-me ao lado desta muitíssimas vezes, a vasculhar, por um lado, jornais e outras provas que desde há setenta anos estavam à espera de que alguém as consultasse e a observá-la, por outro, a ampará-la sempre que se rendia ao desespero por não conseguir desvendar o mistério da criança desaparecida e nem conseguir encontrar um rumo para a sua vida.
Pressenti desde o início que esta seria uma leitura muito especial. Não esperava outra coisa de uma obra de Kate Morton. E como podem comprovar por tudo o que referi até ao momento, os pressentimentos cumpriram-se. Não só se cumpriram como se suplantaram. A autora sabe como poucos criar o ambiente perfeito para uma experiência também ela perfeita. A atmosfera possui a quantidade exata de mistério, de encantamento, de beleza, de sedução, as personagens enfeitiçam-nos, enredam-nos para que nos apaixonemos por elas, para que sintamos por cada uma delas uma forte ligação, os espaços por onde se movimentam são imagens que nos chegam como se as estivéssemos a ver num ecrã ou ao vivo e as emoções, os sentimentos, os dramas, as alegrias, os desesperos, as tentações rematam uma narrativa que é construída de uma forma muito simples, mas infalível.
  Já se passaram alguns dias desde que terminei de ler O último adeus. Entretanto li uma obra juvenil e estou no início de uma mais adulta. Contudo, ainda não saí de Loeanneth, ainda não fechei as portas da mansão da família Edevane. Não consegui ainda dizer um último adeus àquelas paredes quase centenárias e a todos que as habitaram ou as conheceram. Tenho saudades de Sadie, de Bertie, de todos os membros da família Edevane, mas a quem me está a custar mais dizer esse último adeus é a Eleanor, a mulher que criou três filhas enquanto o marido lutava pela pátria na Primeira Grande Guerra, que manteve a promessa que lhe fez, que se viu de um momento para o outro “órfã” do seu menino pequenino e que me conquistou por isto e por tantas outras facetas que não posso e nem devo revelar.
Kate Morton voltou a fazê-lo. Voltou a arrebatar-me, voltou a chocalhar o meu mundinho das leituras, voltou a deixar-me sedenta de mais histórias como muito poucos como ela sabem oferecer-me! Tão, mas tão bom que foi!
Rogo-vos – experimentem, leiam-na! Garanto-vos que vale a pena!

NOTA – 10/10

Sinopse
O melhor romance da autora reconhecida mundialmente pelo público e a crítica.
Numa majestosa casa de campo inglesa um miúdo desaparece sem deixar rasto. Setenta anos depois Sadie Sparrow, de visita a casa de seu avô, encontra uma mansão abandonada. Espreita através de uma janela e sente que alguma coisa terrível aconteceu nessa casa.

Uma questão de classe, de Joanne Harris


Ficha técnica
TítuloUma questão de classe
Autora – Joanne Harris
Editora – ASA
Páginas – 494
Data de leitura – de 30 de setembro a 09 de outubro de 2017

Opinião
Continuo a saga de deitar abaixo a pilha de livros que habitam as prateleiras dos não-lidos. Já estamos em outubro e ando ainda a ler aqueles que recebi em janeiro, aquando do meu aniversário! É claro que as leituras que trago da biblioteca da terrinha contribuem e muito para este mais do que significativo atraso, mas confesso-vos aqui, com um sorrisinho matreiro e uma piscadela de olho, que não me incomodo com o contínuo engordar da referida prateleira!... Aliás, poucas coisas me dão tanto prazer como olhar para ela, contar os livros que ainda tenho para ler e saborear com aquela antecipação gostosa a certeza de que eles estão ali, à minha espera J
Uma questão de classe, da minha querida “velha amiga”, Joanne Harris, foi a primeira obra que li daquelas que aterraram cá em casa em 2017. Todos os que me vão acompanhando aqui no blogue sabem que tenho um carinho especial por esta autora e a que muitas das suas obras atribuí a nota máxima. São exemplos disso Cinco quartos de laranja e Praia roubada. E, para grande alegria minha, a Uma questão de classe também não tive outro remédio que dar-lhe 10/10, porque, resumidamente, me agarrou e me surpreendeu do princípio ao fim!
Guiados por um professor e um antigo aluno, franqueamos os portões do Colégio de St. Oswald, um colégio exclusivamente masculino e algo avesso a ser contagiado pela modernidade. Num edifício histórico, proliferam os quadros a giz, os quadros de honra que remontam a muitos anos atrás, o cheiro a bafio, as poltronas deformadas, que encaixam que nem uma luva nas formas corporais de quem as usa para descansar após um dia esgotante de trabalho e professores, disciplinas e metodologias de ensino que assentam na tradição, na experiência e num formalismo que deixaria os alunos de hoje em dia estarrecidos.
Roy Straitley é professor de Latim há 34 anos em St. Oswald. Conhece as suas paredes, os seus recantos melhor do que os de sua casa, já que, para além de professor, foi ele próprio aluno do colégio. Está prestes a atingir a idade da reforma, mas essa perspetiva assusta-o, pois não concebe a sua vida fora de St. Oswald, sem transmitir os seus ensinamentos a miúdos que lhe alegram ou agitam os dias, que fazem com que a sua vida continue a fazer sentido. Prepara com afinco mais um ano letivo, apesar de saber que este será um ano de muitas mudanças, a começar pelo facto de o colégio vir a ser gerido por um novo diretor, que não é, nada mais, nada menos, do que Johnny Harrington, um ex-aluno seu, por quem sempre sentiu uma clara antipatia.
Estão assim lançados os dados para uma narrativa viva, pulsante, que nos cativa desde as suas páginas iniciais e que nos vai prendendo como dizem os amantes do xadrez que nos prende um jogo estrategicamente muito bem jogado. Vamos viajando de 1981 a 2005, através da perspetiva de Straitley e de um antigo aluno, conhecendo-os pouco a pouco, tentando saber com um crescente desespero o que esteve por detrás da condenação e consequente prisão de um antigo professor, tentando entender a animosidade que estala entre Straitley e Harrington e ficando assombrados com a mestria e a genialidade de Joanne Harris, que consegue, como muito poucos autores conseguem, agitar a trama com reviravoltas que nos fazem questionar tudo aquilo que tínhamos como garantido desde o início da leitura.
Como é percetível, adorei regressar ao mundo de Joanne Harris. Adorei voltar a ser surpreendida, adorei ler mais uma obra fantasticamente bem urdida, que puxou por mim desde a primeira página e sobretudo adorei Roy Straitley, com quem tenho o privilégio de partilhar a profissão. É uma personagem deliciosa, que nos arranca muitos sorrisos, por quem ganhamos um carinho que não para de crescer e a quem perdoamos todas as imperfeições. Ficará comigo por muito tempo, sem dúvida alguma.
Resta-me dizer-vos que esta obra é a “sequela” de outra que já li há mais de dez anos e da qual pouco ou nada me recordo. Falo-vos de Xeque ao rei. Fui ainda agora retirá-la da estante e prometi a mim mesma que a relerei muito em breve, porque quero regressar a St. Oswald, quero voltar a conviver com Roy Straitley e quero regressar ao mundo de Joanne Harris, que tanto me enche as medidas!
Termino rogando-vos que leiam Uma questão de classe! Não se arrependerão, prometo! A mestria de Joanne Harris não permite que haja arrependimentos!

NOTA – 10/10

Sinopse
O colégio de St. Oswald é antigo e cheio de tradição.
Mas nos seus imponentes salões e longos corredores, sopram agora ventos de mudança. A vaga de modernidade parece imparável e inclui a admissão de raparigas, novas tecnologias, uma possível "fusão" com um colégio feminino, e até um novo diretor. É por esse motivo que Roy Straitley, o excêntrico professor de Latim, decide adiar a sua reforma. Há mais de trinta anos que Straitley dá aulas em St. Oswald, onde ele próprio estudou.
Para ele, a escola é o seu lar e a sua vida. Enquanto faz os possíveis para manter a tradição, o professor descobre que o novo diretor é nada menos que um ex-aluno seu, um rapaz cuja memória nunca deixou de o atormentar. E que representa agora uma ameaça que apenas Straitley consegue antever. Pois o novo diretor é admirado por todos. Mas por entre o pó de giz que cintila sob o sol de outono e o ranger das tábuas do soalho ancestral, há sombras que se agitam… e alguém que aguarda o momento certo para ajustar contas com o passado. 

Uma história única de obsessão, vingança, devoção e amor.

Balanço mensal - livros lidos e recebidos em setembro


Estava totalmente enganada quando pressupus que agosto seria o mês em que leria mais livros este ano. Em setembro consegui ler oito, mais um do que o seu predecessor! Foram três leituras partilhadas com o filhote e cinco mais adultas!
Partilhei com o D. as leituras que ele trouxe para fazer em férias. Em agosto, lemos mais ou menos ao mesmo tempo As naus de verde pinho, mas com o meu regresso ao trabalho não foi possível fazê-lo com as restantes três. Li-as pela mesma ordem, mas sempre uns dias após ele as ter terminado. Fomos trocando impressões e coincidimos em eleger como a melhor a obra de António Mota – Pedro Alecrim. É uma história que cativa miúdos e graúdos, que nos faz viajar para uma aldeia “perdida” no meio de serras e campos, onde a lei do trabalho não perdoa, onde todos, incluindo os mais novos e franzinos, têm que colaborar nas tarefas diárias de tratar da lida da casa, do campo e dos animais. É impossível não nos afeiçoarmos ao jovem Pedro, ao seu grande amigo Nicolau e a tudo e todos que os rodeiam. Foi um regresso muito saboroso às letras de António Mota e sinto-me muito feliz por constatar que não sou a única cá de casa que se derrete com o que o autor de Baião escreve.

As outras duas obras que li em parceria com o filhote não foram tão saborosas. Nem Ulisses nem Os piratas nos preencheram, embora admita (e que a senhora Maria Alberta Menéres nos perdoe) que as façanhas de Ulisses foram menos capazes de nos entreter e entusiasmar que Os Piratas que, em sonhos ou de forma real, agitaram a vida de Manuel e Ana.
Nos princípios do mês acabei de ler a obra de estreia da autora Susana Piedade. Histórias que não se contam aborda a vida de três mulheres que carregam dores insuportáveis. Uma é vítima de violência doméstica desde muito nova, outra perdeu o filho e a terceira perdeu o homem que a faria feliz. São histórias muito dolorosas, que nos esmagam, mas que, ao contrário do que diz o título, devem ser contadas, partilhadas e devem chegar ao maior número de pessoas, não só porque nos mostram o lado mais negro (porém, muito real) da vida, mas também porque nos permitem conhecer novos autores como Susana Piedade, que muito tem a trazer ao panorama literário nacional.
Continuei o mês viajando até um país inventado pelas mãos do genial Afonso Cruz. Descobri para Onde vão os guarda-chuvas e apaixonei-me perdidamente por Isa, uma criança que apenas quer ser amada e que é de tal forma especial que nunca mais o deixarei partir. Ficará comigo para sempre e só por isso, só por tê-lo conhecido, posso sorrir e enternecer-me quando ler e ouvir a palavra “escarlatina” e agradecer ao seu criador, do fundo do meu coração.
Desse país inventado fui de malas, bagagens, almofadas e pijamas para terras britânicas passar uma temporada em A casa do sono. Logo eu, que adoooooro dormir! Senti-me extremamente confortável, embalada até, pelo estilo humorístico do autor, pelas personagens que compõem a narrativa e pelas reviravoltas que esta sofre e que nos levam a um final surpreendente. Jonathan Coe é um autor a seguir, sem dúvida!
Antes de embarcar naquela que sabia que iria ser a leitura mais exigente e mais dura do mês, refugiei-me nas montanhas e fiz companhia a um homem simples, de mãos calejadas, O homem que plantava árvores, por um lado, provou que não precisamos de muito para cuidar e mimar do mundo que nos rodeia e, por outro, mais de cinquenta anos depois, conseguiu dar uma bofetada de luva branca a muitos poderosos que supostamente governam o mundo e na verdade governam apenas os seus interesses.
A última leitura adulta do mês foi uma das leituras que vão marcar este ano. Impunidade apresentou-me o seu autor (a quem segurei e perseguirei de muito perto) e afetou-me como muito poucas obras conseguem nos dias de hoje. É uma leitura cruíssima, que nos dá murros no estômago do princípio ao fim e praticamente não deixa que retomemos o fôlego tal é a violência, a dureza, o desamor que habitam as suas páginas. Recomendadíssima! Por tudo e apesar de tudo.

O mês de setembro foi o primeiro em que mantive em pé a promessa de não cair em tentação. Como tal, não comprei nada, nadinha J Mas as minhas estantes digitais voltaram a engordar um bocadito e abro o sorriso daquele tamanho ao escrever que tenho mais três delícias à minha espera, que lá habitam a última obra de dois dos meus autores espanhóis mais, mais favoritos – Berta Isla, de Javier Marías e Los pacientes del Doctor García, da minha querida Almudena Grandes – e Las três heridas, de Paloma Sánchez Garnica, uma autora que quero muito conhecer.

Agora venha outubro e veremos o que ele me reserva! Espero que o vosso setembro tenha sido igualmente suculento. Fico à espera dos vossos comentários.

Termino deixando-vos os links para acederem à opinião completa das obras lidas este mês:
§  As histórias que não se contam, de Susana Piedade
§  Pedro Alecrim, de António Mota
§  Ulisses, de Maria Alberta Menéres
§  Para onde vão os guarda-chuvas, de Afonso Cruz
§  A casa do sono, de Jonathan Coe
§  O homem que plantava árvores, de Jean Giono
§  Impunidade, de H. G. Cancela
§  Os Piratas – Teatro, de Manuel António Pina

Os Piratas - Teatro, de Manuel António Pina


Ficha técnica
TítuloOs Piratas - Teatro
Autor – Manuel António Pina
Editora – Porto Editora
Páginas – 96
Data de leitura – 29 de setembro de 2017

Opinião
Esta foi a quarta e última obra que o D. teve que ler como “trabalho” para férias. Não a lemos ao mesmo tempo, ele leu-a antes de as aulas começarem, eu só lhe peguei no final do mês de setembro.
Não sou a adepta mais ferrenha do género dramático, prefiro o texto corrido em poder de um narrador que não necessita de recorrer a indicações cénicas entre parênteses ou em itálico para informar o leitor onde e quando se passa a ação ou quais as movimentações ou reações das personagens. Porém, não deixo que essas minhas preferências me impeçam de ler uma obra dramática, sobretudo se a posso partilhar com o filhote.
Os Piratas são de leitura obrigatória para um aluno que frequente o sexto ano. Compreendo que o seja se destacarmos a trama, as personagens e as reviravoltas típicas de uma obra juvenil, com aventura, suspense, mistério e protagonistas da mesma faixa etária do público-alvo. Confesso que, ao ler as páginas iniciais, senti um frémito muito semelhante ao que sentia quando tinha os meus dez, onze, doze anos e devorava as coleções de Enid Blyton. Esse frémito foi mantendo-se ao longo da narrativa, mas deu lugar a alguma incredulidade e desapontamento quando a terminei, porque muitas questões ficaram sem resposta. Ficou no ar a sensação de que o final não corresponde em absoluto ao resto da história, parece que esta foi arrematada à pressa, “às três pancadas” e um aluno de onze anos não tem “bagagem” suficiente para compreender se tudo o que leu até ao momento final foi um sonho ou foi real.
Soube depois de ter terminado a leitura da obra que esta foi uma adaptação ao género dramático feita pelo próprio autor. Na minha opinião, não foi uma adaptação muito bem sucedida, pois todos os elementos atrativos que a compõem mereciam um final muito melhor do que aquele que a referida adaptação nos oferece. As personagens são cativantes, mas acho que qualquer leitor quer, como eu, saber o que lhes passou, quer saber se Robert foi de verdade raptado pelos piratas, quer conhecer melhor a Ana, o Manuel, a sua mãe, quer que desenvolvam a narrativa até que esta lhe providencie todas as respostas às perguntas que vai deixando no ar, sobretudo à principal – terá sido tudo sonho ou realidade?
 Por tudo o que referi, considero, sobretudo como mãe e leitora muito assídua, que a escolha desta obra para leitura obrigatória de sexto ano não foi a mais acertada. Há tantas, mas tantas obras publicadas para esta faixa etária, que se torna um pouco difícil entender por que razões elegeram esta, com personagens complexas, sem contornos claros e uma narrativa também ela ambígua. Resta-me esperar para ver como a abordará a professora nas aulas e se essa abordagem esclarecerá algumas das dúvidas que não são apenas minhas, como é óbvio.

NOTA – 06/10 (a nota reflete a minha opinião)


Sinopse
E se, de repente, te visses a bordo de um navio de piratas? Não fazes ideia de como foste lá parar, só sabes que tens de salvar a tua mãe, mas o Capitão toma-te por um dos seus grumetes… No meio do desespero, acordas e pensas que tudo não passou de um terrível pesadelo. Mas logo te apercebes que ainda trazes na cabeça o lenço vermelho de pirata… Terá sido sonho ou realidade?

Impunidade, de H. G. Cancela


Ficha técnica
TítuloImpunidade
Autor – H. G. Cancela
Editora – Relógio D’Água
Páginas – 222
Datas de leitura – de 23 a 29 de setembro de 2017

Opinião
Uma semana se passou desde que terminei esta leitura e tenho plena consciência de que, mesmo tendo-se passado esse tempo, não sou ainda capaz de pôr em escrito o tamanho da estupefação, da incredulidade e da vontade de esmurrar algo, alguém (o autor, as personagens?...) que senti e ainda sinto.
Esta não é de maneira alguma uma opinião fácil de escrever. Como não o foi ler a primeira obra deste autor que caiu na minha estante. Não sei como colocar em palavras tudo o que li, tudo o que senti, o aturdimento que me acompanhou do início ao fim, as vezes que deparei comigo mesma encolhida, de punhos cerrados, a morder esses punhos cerrados, de respiração suspensa e com uma vontade desmedida de abanar a todos, de sacudi-los para que despertassem, de esmurrar violentamente aquele pai, aquela mãe, de gritar-lhes todo o tipo de insultos e de arrebatar-lhes as duas crianças e enroscá-las no meu colo até que elas pudessem sentir, pela primeira vez, o que é ser acarinhado, amado, o que é estar vivo.
Sabia que nunca sairia igual desta leitura, como nunca saio a mesma de qualquer leitura. Mas esta é incomportavelmente mais dura, mais crua, mais violenta do que qualquer outra. É claro que, sendo eu uma leitora obcecada pela Segunda Grande Guerra, estou familiarizada com a dor, a tortura, a violência no seu estado mais puro, porém confrontar-me com a indiferença, o alheamento e o desapego que aqueles pais demonstram face ao abandono a que votaram os seus próprios filhos foi excruciante. E se a isso se acrescentar a brutalidade que usam entre si, a relação física de pendor animalesco que os faz buscarem-se um ao outro, o dia após dia de duas crianças que apenas contam consigo mesmas para sobreviver, então atinge-se um sofrimento insuportável. Inclusive para os leitores mais habituados à dor e à violência nua e crua.
Se fizermos uma pesquisa online, constatamos que esta obra de Cancela e já agora o próprio autor não atingem grandes níveis de popularidade. Na rede social Goodreads poucos foram os que partilharam as suas impressões sobre Impunidade. Todavia, aqueles que o fizeram estão de acordo comigo – esta é uma obra com contornos de perfeição, recheada de momentos no mínimo perturbadores, de passagens nas quais o narrador filosofa sobre a natureza humana, o que tem de mais primário, o quanto os nossos instintos mais básicos tingem as nossas ações e de personagens que odiamos com todas as nossas forças, que nos revoltam o estômago, mas que talvez apenas estejam a viver a vida tal como lhes ensinaram a viver.
Por ser chocante, por ser opressivo como o calor sufocante de Sevilha, por ser terrivelmente perturbador e agoniante não recomendo Impunidade a quem não aguenta os referidos graus de dureza e violência e muito menos a quem é progenitor e não consegue ser espetador de cenários de abandono voluntário, de desamor, de indiferença perante o que possa necessitar um ser que nasceu porque um homem e uma mulher fornicaram sem pensar nas consequências. Contudo, e antiteticamente, imploro a que conheçam H. G. Cancela, que leiam o que ele publicou até agora, pois um autor que escreve uma obra como Impunidade tem que ser conhecido, tem que ser lido, tem que ganhar o seu lugar muito merecido no panorama da literatura nacional.
Finalizo dizendo o que se depreende do que referi até agora – esta foi uma das leituras de 2017, uma das descobertas do ano. Como tal, atribuo-lhe a nota máxima, mesmo que isso me agonie e me revolva as entranhas…

NOTA – 10/10


Sinopse
Um homem caminha primeiro a pé, tacteando no escuro, depois de automóvel, conduz toda a noite, dorme na pressa de um hotel, retoma a viagem primeiro ainda em terras portuguesas, depois em Espanha.
Em Sevilha sobe ao último andar de um prédio. Tem a chave da porta, a casa está desarrumada e nela se encontram duas crianças adormecidas quase entre sinais de abandono. «Aproximei-me da cama maior. O rapaz tinha apenas as cuecas vestidas. Magro, as pernas esguias, o cabelo comprido. Ouvia-se a respiração. Rápida, regular, entrecortada por pausas de onde emergia com uma aspiração sufocada. Da outra cama, não se ouvia nada. A menina estava despida, com o cabelo espalhado pelo rosto e as pernas cobertas com a ponta do lençol. Apoiei-me nas grades, debrucei-me e afastei-lhe o cabelo. Não se mexeu. Respirava devagar, com os lábios entreabertos e um quase insensível movimento do peito. Parecia fria, apesar do calor, o corpo contraído, a cabeça colada aos joelhos. Tinha os lençóis húmidos em redor das coxas. Na penumbra, a sua pele esbatia-se contra o tecido branco.» 
Este é o início de uma história inesperada, dura, com o «esplendor das coisas ameaçadas».