Meu pé de Laranja Lima, de José Mauro Vasconcelos

Quinta-feira, 23 de outubro de 2014






Sinopse
O leitor vai encontrar a história comovente do menino Zezé, de seis anos, um rapaz pobre, inteligente, sensível e carente. Com a falta de afeto que não encontra na família, o endiabrado rapaz vai pelas ruas fazendo mil travessuras. Zezé aprende tudo sozinho, é o descobridor das coisas. Descobre a ternura e o carinho no amigo Portuga. Inventa para si um mundo de fantasias em que o grande confidente é o Xururuca, o pé de Laranja Lima. Mas a vida ensina-lhe tudo demasiado cedo, e Zezé descobre o que é a dor e a saudade - Por que contam coisas às criancinhas?...

Opinião
Quinta-feira à noite, já deitadinha na cama, acabei de ler Meu pé de laranja lima. E ao ler as últimas páginas deste enternecedor romance não controlei o choro… As lágrimas correram-me pela cara abaixo e, por muito que as tentasse controlar, não fui capaz… Nem consegui controlar os soluços que tiveram o poder de abanar a cabeceira da cama e fazer com que o meu maridinho interrompesse a sua leitura e me dirigisse a olhadela habitual… a olhadela divertida e carinhosa que sempre me dirige quando choro “baba e ranho” ao ler um livro, ao ver um filme, ao assistir a alguma reportagem “sensível”, enfim… A seguir, fez-me a pergunta, a pergunta mil vezes repetida – “Se sabes que te vai fazer chorar, por que é que lês esse género de livros?...” E eu dei-lhe a resposta, a mil vezes repetida resposta – Porque essa alternativa não se põe, não se pode pôr para alguém como eu, que sabes que vê a leitura como mais uma porta para viver e entender a vida, a vida tal como ela é, com todas as suas facetas, reais, alegres, entusiasmantes, intensas, apaixonadas, sensaboronas, rotineiras, insignificantes, cruas, tristes, dolorosas… E se tiver que chorar ao ler um livro, que assim seja, porque estou a sofrer as dores da personagem, estou a relembrar dores minhas, a comparar a realidade com a ficção e, dessa forma, a usufruir da vida, da minha e da dos outros, e a crescer como pessoa!... É essa a magia da literatura!
         Meu pé de laranja lima é um romance autobiográfico e conta-nos a infância de Zezé, um miúdo especial e ao mesmo tempo traquinas, sonhador, inocente como é normalmente um miúdo de cinco, seis anos. Provém de uma família pobre e numerosa, que sofre com o desemprego do pai e a vida desalentada e cansada da mãe. Contudo, Zezé faz de tudo para fugir a essa realidade negra e inventa para si, e para o seu irmão mais novo, um mundo imaginário, onde o quintal e o galinheiro fazem parte de um Jardim Zoológico, os galhos das árvores são selas de cavalos de cowboys e um pé de laranja lima é o seu melhor amigo e confidente. Infelizmente, nem sempre o imaginário é um escape perfeito e aí Zezé apanha surras monumentais, que o levam a acreditar no que todos dizem dele – que é o afilhado do diabo e que por isso nunca receberá prendas no Natal…
         Por tudo isto e por muito mais, é IMPOSSÍVEL não gostar, não sentir um carinho enorme e não sofrer com Zezé… O meu coração ficou apertadinho quando li as passagens que descreviam essas surras, no entanto maravilhou-se com as passagens que testemunhavam a brilhante inteligência de um miúdo pobre, carente, mas que aprende a ler sozinho, que é posto na escola aos cinco anos para que a família pudesse descansar durante essas horas letivas, que se torna no melhor aluno da sala, que rouba uma flor todos os dias para deixá-la na jarra da secretária da professora (que nunca havia recebido tal miminho, talvez por não ser bonita), que trabalha um dia inteiro de engraxador para poder compensar o pai e comprar-lhe o maço de tabaco de que ele tanto gosta, que toma conta “direitinho” do seu irmão mais novo e que FINALMENTE descobre o que é ser amado e acarinhado (como um filho o deve ser por um pai) no momento em que se torna amigo do “Portuga”, Manuel Valadares.
         As passagens que descrevem esta amizade são as mais belas e as mais dolorosas da obra, talvez porque, tal como diz o autor nas dedicatórias e no último capítulo, Manuel Valadares mostrou-lhe, aos seis anos de idade, o significado da ternura… E como o fez! E fê-lo de uma forma singela, pura, mágica, como Zezé bem o merecia…
         Pelo que foi dito até aqui, é mais do que óbvio que esta obra (que me fez lê-la com sotaque brasileiro – era impossível não o fazer, o texto “chegava” à minha cabeça com esse sotaque açucarado J) ganhou um cantinho muito especial na minha estante e só posso recomendar vivamente a sua leitura a todos que se queiram apaixonar pelo Zezé e assim conhecer uma história intemporal e MUITO ENTERNECEDORA!!!
         Tenho que agradecer à minha querida amiga Beta que me recomendou a sua leitura (gracias, cariño) e aos meus compadres que me ofereceram a obra!

“Você precisa saber que o coração da gente tem que ser muito grande e caber tudo que a gente gosta.” (pág. 123)


“Agora sabia mesmo o que era a dor. Dor não era apanhar até desmaiar. Não era cortar o pé com caco de vidro e levar pontos na farmácia. Dor era aquilo que doía o coração todinho, que a gente tinha que morrer com ela, sem poder contar para ninguém o segredo.” (pág. 174)

A Jangada de Pedra, de José Saramago

Sábado, 18 de outubro de 2014



RELEITURA

Sinopse
         «Em A Jangada de Pedra (...) o escritor recorre a um estratagema típico. Uma série de acontecimentos sobrenaturais culmina na separação da Península Ibérica que começa a vogar no Atlântico, inicialmente em direção aos Açores. A situação criada por Saramago dá-lhe um sem-número de oportunidades para, no seu estilo muito pessoal, tecer comentários sobre as grandezas e pequenezas da vida, ironizar sobre as autoridades e os políticos e, talvez muito especialmente, com os atores dos jogos de poder na alta política. O engenho de Saramago está ao serviço da sabedoria.» (Real Academia Sueca, 8 de Outubro de 1998)



Opinião
         Não é novidade para ninguém, sobretudo para quem me conhece, que Saramago é um dos meus deuses literários, talvez aquele que ocupa o lugar mais destacado na hierarquia dos autores de que mais gosto e mais admiro. O que talvez poucos saibam é que me estreei com Saramago ainda não tinha 20 anos, frequentava o 12º ano e fi-lo com esta obra que terminei de reler pela segunda vez.
         Recordo-me perfeitamente que foi uma estreia bastante custosa, que o estilo tão peculiar de Saramago me estranhou muito a princípio, que "empanquei" logo nas primeiras linhas que descrevem o risco que Joana Carda fez no chão com uma vara de negrilho e as consequências que daí advieram... Mas se há algo que me caracteriza como leitora é a persistência e, por essa razão, e por haver algo que me dizia que a leitura da obra ia ser especial, não desisti com esse primeiro obstáculo... E ainda bem que não fiz, porque, se a princípio me estranhou, só eu sei o quanto depois se entranhou em mim tudo o que envolve a Obra saramaguiana!
         Outra característica que me descreve como leitora ou mesmo como pessoa é o facto de ser bastante (para não dizer muito) cética e de olhar com desconfiança para tudo o que não seja verosímil ou realista. Por essa razão nunca fui "muito à bola" com livros ou filmes de ficção científica e repletos de elementos de fantasia. Contudo, com os livros de Saramago, esse ceticismo não está presente e envolvo-me com todas as minhas fibras de leitora em histórias que partem, por exemplo, da separação física da Península Ibérica da Europa, de uma cegueira branca e contagiosa ou da morte que "se apaixona" e deixa de fazer o seu trabalho... Sendo assim, qual o porquê desta contradição? Bom, primeiro porque estamos a falar de Saramago, de um autor com aquele poder de levar-nos a entrar nas suas narrativas e a não querer sair de lá e depois porque ele usa estes cenários de fábula com o seu intemporal propósito - de transmitir-nos algo mais, de fazer-nos pensar mais além do que é contado, de compreendermos que há uma moral, uma mensagem que se quer "apregoar" e passar a todos.
         A narrativa de A Jangada de Pedra inicia-se com a descrição de acontecimentos insólitos que ocorrem a cinco personagens que vivem em pontos distintos da Península Ibérica. Ora, esses acontecimentos são o prenúncio do que se passará a seguir - uma fenda nos Pirenéus, que se tornará cada vez maior e mais funda, que culminará na separação da Península Ibérica da Europa e que a transformará numa jangada de pedra que vogará (aparentemente sem destino) pelas águas do Oceano Atlântico. Este anómalo acidente geológico será assim o ponto de partida para uma narrativa de 330 páginas, na qual o narrador (com as características muito próprias de um narrador saramaguiano) vai dialogando connosco, vai tecendo comentários constantes (com bastante ironia, já se sabe J) sobre a forma como os governos peninsulares vão lidando com o desenrolar das situações; como o povo vai vivendo, umas vezes deslumbrado, curioso, aterrorizado ou outras vezes resignado e até indiferente; como o resto do mundo reage face à viagem da “jangada de pedra” e, finalmente, como o referido narrador acompanha uma viagem mais individual e errante que é levada a cabo por terras portuguesas, andaluzas, galegas e castelhanas pelas 5 personagens que abrem a narrativa.
         É conhecida a simpatia que Saramago nutria pela ideia de uma Ibéria Unida e, como tal, podemos considerar que esta obra é uma homenagem a uma Península Ibérica unida, forte, independente, desapegada da Europa e inclusive do rochedo britânico que é Gibraltar. Mas também é, na minha modesta opinião, uma chamada de atenção para o quanto ainda seria necessário fazer para que essa ideia se transformasse em realidade.
         Além de tudo o que já foi mencionado, Saramago possui uma faceta de que gosto mesmo muito – a maneira como constrói as personagens, como, no caso deste livro, “fá-los” empreender uma viagem em grupo para se descobrirem enquanto pessoas, enquanto indivíduos que necessitam comungar com outros. E para um homem/autor que tinha aquele aspeto sisudo e até distante, é surpreendente e encantador o carinho que consagra à construção das personagens femininas, à força e carácter que lhes dá, associadas a uma sensibilidade tão própria do género!

         Para finalizar este comentário que vai longo, tenho que dizer que li parte desta obra ao mesmo tempo que explorava com os meus alunos em sala de aula o magnífico filme de Alejandro Amenábar – “Mar Adentro” e não consegui deixar de relacionar as duas obras-primas, lendo muitas vezes ao som da magistral banda sonora do filme. Aqui vos deixo uma das músicas que mais mexeu e mexe comigo:


Inés y la Alegría, de Almudena Grandes

Sábado, 24 de agosto de 2013





Sinopse:
Toulouse, verano de 1939. Carmen de Pedro, responsable en Francia de los diezmados comunistas españoles, se cruza con Jesús Monzón, un cargo menor del partido que, sin ella intuirlo, alberga un ambicioso plan. Unos años después, en 1944, Monzón, convertido en su pareja, ha organizado el grupo más disciplinado de la Resistencia contra la ocupación alemana, prepara la plataforma de la Unión Nacional Española y cuenta con un ejército de hombres dispuestos a invadir España. Entre ellos está Galán, que ha combatido en la Agrupación de Guerrilleros Españoles y que cree, como muchos otros en el otoño de 1944, que tras el desembarco aliado y la retirada de los alemanes, es posible establecer un gobierno republicano en Viella. No muy lejos de allí, Inés vive recluida y vigilada en casa de su hermano, delegado provincial de Falange en Lérida. Ha sufrido todas las calamidades desde que, sola en Madrid, apoyó la causa republicana durante la guerra, pero ahora, cuando oye a escondidas el anuncio de la operación Reconquista de España en Radio Pirenaica, Inés se arma de valor, y de secreta alegría, para dejar atrás los peores años de su vida.

Opinião
"La Historia inmortal hace cosas raras cuando se cruza con el amor de los cuerpos mortales".
Este é o mote/a frase que nos acompanha durante as 715 páginas da obra e que, sem dúvida alguma, é a inspiração de todo o seu desenrolar. E quanta verdade encerra esta frase tão inspirada e inspiradora!...
Almudena inicia com esta obra um projeto constituído por seis livros (que se poderão ler de uma forma independente, embora tenham determinados elementos e passagens que fazem a ligação entre todo o projeto, mas que não prejudicam uma leitura não cronológica), ao qual chama de "Episodios de una Guerra Interminable" e que nos levará a conhecer acontecimentos, situações e momentos pouco conhecidos da recente História de Espanha.
Estes Episodios, segundo a própria autora, são uma homenagem y um ato público de amor a um dos seus escritores de eleição e à sua obra-prima -  "Episodios Nacionales" de don Benito Pérez Galdós. Abarcarão, nas seis obras que os integram, quase 40 anos de luta ininterrupta de personalidades reais e de personagens fictícias e anónimas que, com coragem, determinação, raiva e convicção, não desistirão de tentar pôr fim a uma ditadura e repressão ferozes que dominaram Espanha desde 1939 até 1975.
Inês é uma dessas personagens anónimas que, apesar de descender de uma família rica e burguesa, aliada do regime de Franco, sente na pele a falta de liberdade e luta contra a mesma primeiro alojando republicanos em sua casa durante a Guerra Civil, o que resulta no seu encarceramento após a vitória de Franco. Posteriormente, já do outro lado das grades mas ainda assim presa dentro das paredes da casa do seu irmão, Inés não resiste a seguir o chamamento dos seus camaradas e foge quando ouve clandestinamente o anúncio de uma invasão que será levada a cabo pelos republicanos exilados em França e que sonham regressar ao seu país - Habíamos luchado en Francia, pero no por Francia. En Francia, pero no para Francia. En Francia o donde fuera, pero sólo para volver, para volver a casa. (pág. 333).
Esta fuga de Inés e consequente reunião com os seus camaradas será o ponto de partida para uma história como só Almudena nos pode oferecer - tendo como pano de fundo a invasão fracassada do "Valle de Arán", um episódio da História espanhola muito pouco conhecido e convenientemente esquecido pelas duas frações - franquistas e comunistas - esta narrativa que combina personagens fictícias e verídicas convida-nos a juntar-nos a um grupo de militares e um punhado de corajosas mulheres que serão aqueles que mais sofrerão e mais sentirão na pele e no seu íntimo o fracasso da invasão cuidadosamente planeada mas que acaba em redondo fracasso, não pela oposição oferecida pelo exército do regime (apanhado de surpresa), mas consequência das lutas e desavenças internas no partido comunista...
Aliada a este pano de fundo histórico temos o amor de Inés y de Galán (bem como o amor de outros compatriotas) que serão o motor para que nunca desistam, para que lutem sempre pelos seus ideais, pelo sonho de voltar a viver numa Espanha livre. E é esta junção de "la Historia inmortal y del amor de los cuerpos mortales" que me fez apaixonar-me irremediavelmente por mais uma obra da minha Almudena J
Inés é uma mulher que desde o início cativa qualquer leitor, a sua força, as suas ganas de liberdade, a paixão que põe em tudo o que faz, principalmente na cozinha (local que a relaxa, que a faz sentir-se útil e bem consigo mesma) e o amor arrebatador que a une a Galán, são características que fazem dela uma personagem inesquecível! Uma personagem que conquista ainda mais afeto e admiração por nos dar a conhecer uma visão mais feminina de uma luta e de uma guerra intermináveis, de alguém que não perde o ardor revolucionário que a sempre guiou, mesmo fazendo parte do que podemos chamar a retaguarda, ser um exemplo de todas as mulheres que nunca baixaram os braços, que sempre apoiaram os seus amados, inclusive quando estes punham em risco as suas vidas.
Para finalizar esta opinião que já vai longa, uma referência à forma como está estruturada a obra - podemos dizer que está dividida em duas grandes partes - temos 4 capítulos "ficcionais", ou seja, que remetem para a história de Inés e dos seus camaradas e, intercalados com estes, 3 capítulos cujo título aparece entre parêntesis e que são dedicados às personagens verídicas, como a lendária "Pasionaria", ao partido comunista e suas ações no pós Guerra Civil. Como leitora, apesar de entender o porquê da inclusão destes "parêntesis", considero que, numa futura (re)leitura, irei optar por ler todos os 4 capítulos de ficção seguidos e só depois lerei os dedicados à História, aos factos verídicos, porque, assim, não sentirei tanto a quebra no ritmo da narrativa e de certeza que ficarei a ganhar com o desenrolar sem interrupções "del amor de los cuerpos mortales de Inés y de Galán" J

Agora só me resta esperar pelo segundo volume destes "Episodios" - El Lector de Julio Verne!!!

A invenção do amor, de José Ovejero

Quinta-feira, 02 de outubro de 2014




Sinopse
Uma história de amor inventado, absolutamente real. Do seu terraço, Samuel observa a agitação quotidiana de Madrid, repetindo para si próprio que tudo está bem. Sobreviveu aos quarenta, a "idade maldita", não tem filhos, e as mulheres entram e saem da sua vida sem nunca pronunciarem as palavras "para sempre". Uma madrugada, alguém lhe comunica por telefone que Clara, sua ex-namorada, morreu num acidente. De ressaca, Samuel é incapaz de explicar que não conhece nenhuma Clara. Impelido por um misto de curiosidade e enfado, decide ir ao velório. É então que, fascinado pela possibilidade de usurpar a identidade da pessoa com quem o confundem, Samuel ficciona uma história de amor com Clara, que vai partilhando com Carina, a irmã desta.
Samuel vê nesse jogo de ilusões a possibilidade de reinventar a sua existência e sentir-se vivo, por fim. À medida que a memória de Clara vai ganhando verdadeira forma na sua cabeça, vai crescendo também a atração que sente por Carina - e Samuel começa a perder o controlo do jogo que criou. Irá o amor que inventou ser a sua salvação ou a sua perdição?

Opinião
Esta leitura é mais uma das leituras que são consequência das minhas frequentes visitas à página oficial da Alfaguara espanhola. Vencedor do prémio romance de 2013 da referida editora, A invenção do amor foi-me oferecido pelo meu afilhado e queridos compadres e recomendado pela minha compincha e amiga literária, Lucinda.
Tal como nos informa a sinopse, este romance de José Ovejero (o primeiro livro deste autor a “merecer” ser traduzido para português) convida-nos a entrar e a conhecer a vida de Samuel, um solteirão de Madrid que vive só, que cultiva laços de amizade de circunstância e que se arrasta todos os dias, ou melhor, quase todos os dias para a empresa que gere com o sócio e colega de faculdade, José Manuel. Leva assim uma existência monótona, desprendida, que é inesperadamente abanada por um telefonema insólito…
Ao contrário do que se espera de alguém que recebe um telefonema e se apercebe de imediato de que o confundiram com outro Samuel, o nosso protagonista não desliga o telefone, não diz ao seu interlocutor que “é engano”, entabula, sim, conversa com quem está do outro lado da linha, encarna o papel desse outro Samuel e começa a viver uma vida dupla, a ser o Samuel, sócio-gerente de uma firma de materiais de cerâmica e a ser o Samuel, cuja ex-namorada morreu num acidente de viação. A partir daí, sentimos, reconhecemos todos os sinais e sintomas de quanto a vida do verdadeiro Samuel é desprovida de tudo o que nos faz sentir vivos e com ganas de desfrutar do presente e aguardar com esperança o que nos reserva o futuro!... E essa é, para mim, a grande mensagem desta obra.
É um livro de leitura fácil, simples, com uma linguagem onde impera a ausência de elementos rebuscados e complexos e que, como tal, na minha opinião, espelha na perfeição a vida despretensiosa, corriqueira e ausente de emoções de Samuel. Dá-nos igualmente a possibilidade de seguir todos os momentos da sua vida (antes e após telefonema) e de compreender o quanto, para algumas pessoas, a expressa vontade de não se comprometer, de não perder a preciosa liberdade individual pode ser contraproducente, conduzi-las a uma existência cheia de nadas e a agarrar-se a ilusões que podem esfumar-se num abrir e fechar de olhos…
Tendo em conta tudo o que referi até agora, tenho que dizer que gostei deste livro, embora sinta que criei demasiadas expetativas e que no final as mesmas saíram um pouco goradas, por apenas isso – expetativas demasiado elevadas. Tenho outro livro deste autor apontado – Añoranza del héroe – e a vontade de comprá-lo não foi, de forma alguma, beliscada J

Deixo aqui duas passagens:
Não faças amor comigo, inventa-o para mim” (pág. 281)

Sempre acreditei que o pensamento é mais original do que a emoção; é mais fácil pensar coisas novas do que senti-las.” (pág. 283)

José e Pilar, de Miguel Gonçalves Mendes

Quinta-feira, 18 de julho de 2013



Sinopse
Durante quatro anos, Miguel Gonçalves Mendes filmou José Saramago e Pilar del Río, na intimidade de Lanzarote, em viagens de trabalho por todo o mundo, em festas com os amigos e a família. Desse intenso registo resultaram, primeiro, o filme, José e Pilar, e agora, o livro que se compõe, essencialmente, de material inédito: centenas de horas de conversa que exploram os grandes temas - da política ao amor, passando pelo trabalho, a literatura e a morte.

Aclamado pela crítica e pelo público nacional e internacional, o filme teve estreia comercial em Portugal, Espanha, Itália, México e Brasil, onde recebeu o Prémio do Público da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Foi ainda nomeado nas categorias de Melhor Documentário, Melhor Banda Sonora Original e Melhor Montagem pela Academia Brasileira de Cinema, como também na categoria de Melhor Filme pela SPA.

Opinião
As conversas inéditas com “o meu” José e a sua Pilar chegaram até mim primeiro através do filme exibido na televisão e, posteriormente, como “regalito de cumpleaños” das minhas queridas amigas pitufinas. Quando desembrulhei o livro, dois sentimentos antagónicos assaltaram-me simultaneamente – por um lado, fiquei deliciada com a perspetiva de voltar a entrar na vida familiar e rotineira do meu maior génio literário e por outro, não pude deixar de sentir muita nostalgia, melancolia e tristeza, porque já cá não estás…
Contudo, à medida que a leitura avançava, esses sentimentos de carga negativa foram-se evaporando e voltei a sentir o meu Saramago, vivo, pertinho, pertinho de mim!... (Re)descobri igualmente Pilar del Río, às vezes demasiado crua nas suas afirmações, mas, mesmo assim, com muita razão naquilo que diz!
Registo aqui opiniões dos dois que não resisti a sublinhar porque obviamente me tocaram pela sua força, pela sua energia e pela sua verdade:

"(...) aquilo que escapa, aquilo que é indizível, aquilo que pertence à categoria do inefável, aquilo que não se pode expressar por palavras, é aí, é aí que está o amor." (Saramago)


"Es que no quiero que me queden cosas sin hacer hoy, porque no sé si mañana voy a estar. Y quiero vivir con toda la ilusión del mundo, como si fuera el primero... Que lo importante de la vida es cumplir cada día, vivirlo, llenarlo." (Pilar)