Cortei as tranças, de António Mota


Ficha técnica
Título – Cortei as tranças
Autor – António Mota
Editora – Edinter
Páginas – 172
Datas de leitura – de 24 a 26 de novembro de 2016

Opinião
Gosto das histórias de António Mota por culpa do meu filhote, que trouxe algumas da biblioteca da escola para ler na companhia da mamã. Lembro-me particularmente bem de Sonhos de Natal que se lê de um fôlego só e que me levou às lágrimas. Por isso, e porque continuo a apostar em livrinhos infanto-juvenis que poderei recomendar ao D. e que me fazem regressar a anos mais inocentes e mais simples, trouxe da biblioteca municipal este Cortei as tranças.
Marta é uma menina que vê a sua vida sofrer o pior dos embates quando a sua mãe morre num acidente estúpido. Perante esta amputação do suporte que equilibrava uma existência típica de uma menina de treze anos, a protagonista da obra corta as suas tranças infantis e veste a vida da progenitora. Deixa a escola, trata da lida de casa e quer trabalhar para contribuir para o orçamento familiar. Cresce assim demasiado rápido. Começa a penetrar na rotina dos mais velhos, mas percorre-a aos tropeções, assoberbada de dúvidas e de nostalgias pelo que foi obrigada a arrumar num cantinho onde talvez nunca mais se possa esconder.
A ação de Cortei as tranças desenrola-se no meio rural e aflora não só a adolescência de Marta como também a de sua mãe. Faz-nos saltar para tempos e espaços que parecem já não mais existir e que seguramente se apresentarão como realidades desconhecidas aos miúdos nascidos no século XXI. Desconfio, por essa razão, que a simplicidade de essa vida comezinha e algo datada não seja muito apelativa, não desperte no meu filhote vontade de ler com entusiasmo esta obra, como o vejo a ler com concentração e de dedito a seguir as frases livrinhos mais atuais e mais próximos do que é o seu dia-a-dia e do que são os seus gostos. Confesso que eu própria estava à espera de algo mais, de mais emoção, de um lado mais introspetivo e de um protagonismo mais evidente de uma miúda que se apresenta como uma rapariguinha que revejo em muitas com as quais convivo diariamente – despreocupada, com alguma alergia à escola e consequentes doses de rebeldia e que, com a morte da vida, teria que despenhar-se num buraco aparentemente sem fundo…
Resumindo, não foi uma leitura tão saborosa como foram as suas antecessoras – A lua de Joana e O mundo em que vivi. Contudo, já tenho em vista outras obras do autor, porque são recomendadas no Plano Nacional de Leitura e porque quero que António Mota me volte a emocionar como o fez com Sonhos de Natal. Expectativas algo elevadas? Creio que não…
Por fim, deixo um reparo a algo que me desagradou – no exemplar que li (da Edinter) deparei-me com várias frases onde uma “desavergonhada” vírgula se intrometia entre o sujeito e o predicado. Não sei se essa sem-vergonhice acontece apenas no referido exemplar da Editora em questão ou se repete em outras, mas espero bem que não e que já tenha sido erradicada de edições posteriores. Estamos a falar de uma obra recomendada, como já disse, para alunos de 12, 13 anos.

NOTA – 07/10

Sinopse
Marta, protagonista da história, vê-se obrigada a crescer vertiginosamente. Perde a mãe. Corta as tranças. Era preciso parecer mais velha. Um terrível acidente corta-lhe os sonhos.
Livro recomendado pelo Plano Nacional de Leitura.

Se o passado não tivesse asas, de Pepetela


Ficha técnica
Título – Se o passado não tivesse asas
Autor – Pepetela
Editora – Publicações Dom Quixote
Páginas – 372
Datas de leitura – de 16 a 23 de novembro de 2016

Opinião
A escrita de Pepetela evoca serenidade, suavidade, minutos passados em contemplação. Se o passado não tivesse asas é apenas a segunda obra que leio deste autor angolano, mas tal como havia acontecido com O tímido e as mulheres voltei a embalar com a cadência melódica e algo monocórdica de mais uma história centrada em Luanda.
A narrativa salta no tempo entre duas protagonistas carismáticas e determinadas – Himba é uma menina que vê a sua vida sofrer uma mudança drástica quando a sua família é vítima de um ataque de guerrilhas do qual ela é a única sobrevivente. Consegue, com a ajuda de soldados, terminar a viagem que o seu pai havia planeado para fugirem à guerra e chega à capital do país apenas com a roupa que traz vestida e na bagagem um instinto de sobrevivência que a levará a bater a algumas portas que se lhe fecham na cara e a embrulhar-se de coragem para enfrentar uma nova vida, uma vida de rua, de fome, de frio e de dor. Dezassete anos mais tarde, travamos conhecimento com Sofia, uma mulher em plena ascensão económica, cujos dias são passados de casa para o restaurante do qual é sócia. Das restantes facetas da sua existência quase nada sabemos, apenas que nutre uma afeição muito forte pelo seu irmão mais novo, com quem ainda vive.
À medida que me fui adentrando na narrativa senti que estava a penetrar territórios e acontecimentos desconhecidos e ao mesmo tempo que estava a voltar a uma casa em que já havia sido muito bem recebida. Embalei-me então nesse ambiente familiar e durante uma semana deambulei com Himba pelas praias e outras zonas da ilha de Luanda, condoí-me do sofrimento pelo qual nenhuma criança deve passar, comprovei, uma vez mais, o quanto Angola é um país de contraste, de riquezas que escorrem dos bolsos de uns e nunca alcançam os bolsos de outros e aqueci estes últimos dias de temperaturas geladas com personagens verdadeiramente bondosas como “a senhora boa das trancinhas”.
Foi assim uma leitura quentinha, serena, sem muitos sobressaltos, com uma realidade dura, dorida, mas que chega até nós pela mão de um autor que sabe manejá-la, filtrá-la através de um estilo raiado de uma crueza suave e ao mesmo tempo assertiva. Foi um regresso saboroso ao mundo de Pepetela, com personagens cativantes, que vão crescendo e amadurecendo ao longo da narrativa, moldadas pelo contexto em que vão vivendo. Gostei particularmente de Himba enquanto criança, da sua introspeção, da sua precocidade e encantei-me com Kassule, com a sua determinação, a sua ligeireza e a sua integridade nunca beliscada por todas as convulsões que assolaram a sua vida.
Resumindo, Se o passado não tivesse asas não desiludiu. Tão-pouco deslumbrou, mas fez-me recordar outras histórias, como a de Capitães de Areia, de Jorge Amado, e aqueceu os meus momentos de leitura com os ares quentes e tumultuosos do dia-a-dia recente de um país que ainda está a tentar afirmar-se e a tentar encontrar o seu lugar numa amálgama de riquezas incalculáveis e consequentes lutas corruptas e desiguais.
Gostei.

NOTA – 08/10

Sinopse
A terrível luta diária pela sobrevivência dos meninos de rua, em plena guerra, contrasta com a fartura desmesurada dos jovens da nova burguesia de Luanda.
Himba, treze anos acabados de fazer, perde-se do resto da família, vendo-se de repente sozinha no mundo. Sem outros meios que não sejam a sua inteligência, consegue chegar a Lunda, onde conhece Kassule, um menino de dez anos que perdeu uma perna devido a estilhaços de uma mina. Ambos órfãos vítimas da guerra, dependendo do lixo dos restaurantes, unem-se para conseguirem subsistir, lutando pela sobrevivência dia a dia.
Sofia, que há muito aguarda uma oportunidade para mudar de vida, aceita gerir um restaurante, onde também dá conselhos sobre temperos. À medida que o restaurante vai ganhando clientes da classe alta de Luanda, também a ambição de Sofia vai sendo alimentada. E está disposta a agarrar todas as oportunidades que lhe garantam uma vida melhor, a ela e ao irmão Diego, um artista de rua que sonha expor em galerias.

Se o Passado não Tivesse Asas cruza duas histórias, duas grandes personagens femininas, numa narrativa original com um desfecho imprevisível, que retrata os últimos vinte anos da história de Angola.

Uma escuridão bonita, de Ondjaki


Ficha técnica
Título – Uma escuridão bonita
Autor – Ondjaki
Editora – Editorial Caminho
Páginas – 112
Data de leitura – 15 de novembro de 2016

Opinião
Olhei a capa e reparei em dois pares de pés virados um para o outro. Folheei as páginas e encantei-me com o negro das mesmas em contraste com um punhado de palavras e ilustrações que as iluminavam. E soube de imediato, com aquela certeza tão certeira que de vez em quando me inunda, que teria que mergulhar nesta escuridão bonita debaixo dos cobertores, com apenas um ponto de luz e rodeada de negrura e silêncio. Porque sabia que ia ser deliciosamente arrepiante dividir a escuridão com esta pequena estória, “em concha e aconchego, como se dois mundos, nessas gotas de negrume, fossem um só.” (pág. 25)
E assim foi. Em menos de uma hora embalei-me com a magia, a poesia e a doçura de palavras e imagens. Bebi o encantamento que transpira de uma estória recheada de inocência, de ansiedade, de desejos, de tremuras e de uma previsibilidade que em nada “amarga” o sabor inesquecível e perene que nos marca o travo durante e após termos chegado ao seu fim. Tive que combater constantes tentações de sublinhar passagem atrás de passagem, porque trouxe Uma escuridão bonita da última visita à biblioteca municipal da terrinha. Fui remediando essa tentação dizendo para mim mesma que semelhante preciosidade é motivo mais do que suficiente para um próximo gasto monetário numa livraria qualquer.
De uma realidade que é a realidade de todos os dias de uma Luanda parca de rendimentos, chega-nos uma noite banal, quotidiana, onde mais uma vez a luz foi abaixo. Os olhos adaptam-se a uma escuridão forçada e penetram numa beleza mais palpável, mais audível, mais cheirada. Disfarçam-se defeitos, medos, anseios, vontades e permite-se que os sonhos ganhem asas e até se cumpram. Como o sonho de partilhar um beijo com alguém de quem apenas vislumbramos sombras e brilhos.
Não sei mais que diga. Talvez não seja preciso dizer mais nada. Apenas partilhar algumas das muitas passagens que me arrebataram e me fazem querer ler tudo aquilo a que possa deitar a mão de um autor que terá que habitar com lugar de destaque na minha estante:
Afinal uma pessoa também pode dizer coisas sem ser com voz de falar. Foi a primeira descoberta assim estranha que eu fiz nessa noite duma bendita, bonita, falta de luz.” (pág. 16)
O silêncio é uma esteira onde nos podemos deitar.” (pág. 18)
A mão dela estava perto da minha. Senti uma comichão de ausência na proximidade daquele calor, sabia que os dedos dela estavam ali, e continuava a falar para não saber, no coração, que todo o meu corpo pedia uma carícia calada.” (pág. 18)
Um dia perguntaram à minha avó Dezanove o que era poesia. Primeiro ela ficou muito tempo calada, então pensaram que ela não tinha resposta. Mas ela depois falou: a poesia não é a chuva, é o barulho da chuva.” (pág. 62)
Depois das mãos e dos lábios, os nossos corações acelerados eram um único chuvisco de contenteza. Até acreditei que dentro de nós havia um cheiro de terra depois de chover.” (pág. 103)

Completamente deslumbrada e ainda em estado de encantamento, peço-vos que leiam e descubram Ondjaki. É um pecado dos mais escabrosos se não o fizerem!

NOTA – 10/10

Sinopse
"O palco sagrado das conversas eram dois: na varanda ou no quintal. Testemunhas: os mosquitos e os morcegos. Banda sonora: alguma televisão com som alto a dar bonecos ou telenovela.
Se não houvesse luz? Brincadeira gritada de Cinema Bu, todos contra todos, nas vozes de descrever os filmes que ainda nem tínhamos visto."

Uma Escuridão Bonita é, talvez, a simples estória de um beijo.

Lo que dicen tus ojos, de Florencia Bonelli


Ficha técnica
Título – Lo que dicen tus ojos
Autora – Florencia Bonelli
Editora – Suma de Letras
Páginas – 388
Datas de leitura – de 08 a 15 de novembro de 2016

Opinião
Aventurei-me pela primeira vez no mundo das leituras digitais. Como referi no balanço mensal de outubro, fui presenteada por uma seguidora do blogue com quase uma dezena de livros em formato e-book e, para homenageá-la e matar a curiosidade e explorar algo completamente novo, decidi mandar às favas a maníaca ordem cronológica das leituras e estrear-me com uma obra de uma das autoras favoritas da Cristina, “a Mãe-Natal do meu blogue”.
Confesso que não conhecia Florencia Bonelli nem nunca tinha estado com nenhuma das suas obras nas mãos. Sei que tem algumas editadas em português, mas até hoje tinha escapado às minhas frequentes visitas e pesquisas em livrarias. Sendo assim, foi com alguma expectativa que liguei o tablet e me adentrei numa realidade duplamente desconhecida – a de fazer uma leitura sem cheiros, dependente da carga da bateria do aparelho e com páginas que se viram com um pequeno arrastar de dedos e a de conhecer uma nova escritora.
Lo que dicen tus ojos é uma obra com características vincadamente românticas. Os amores, desamores, paixões, carícias, desgostos alimentam uma trama que se desenrola nos anos sessenta e em três espaços fundamentais – Argentina, Suíça e Arábia Saudita.
A protagonista – Francesca de Gecco – reúne em si todas as características que fazem dela uma personagem inesquecível, uma jovem mulher determinada, curiosa, forte, apaixonada pela vida e que não tem receio algum de abraçar todos os desafios que a mesma tem para oferecer-lhe. Recebe com intensidade máxima a paixão que explode entre si e o filho varão da família aristocrática para quem a sua mãe trabalha e é com uma estoica grandeza de carácter que deixa tudo e todos que compunham a sua existência até então para fugir do desgosto que lhe inflige o seu amado e a sua cobardia. Essa fuga levá-la-á primeiramente a terras suíças e posteriormente à Arábia Saudita, onde verá os seus dias subjugados a um amor digno de figurar nas páginas de Mil e uma noites.
Não posso, contudo, afirmar que só de amor se compõem as quase 400 páginas desta obra. À medida que acompanhamos os passos de Francesca vamos igualmente tomando consciência das tradições, modos de vida, preconceitos e cores que caracterizam a sociedade argentina dos anos sessenta e vamos sobretudo penetrando num país cuja cultura e religião parecem, à partida, estar nos antípodas daquilo que rege o quotidiano de um cidadão “ocidental”. Para além deste aspeto mais sociológico, há na obra várias referências históricas às lutas económicas pelo controlo da exploração e venda do preciosíssimo “ouro negro” e a conflitos internos que impossibilitam um crescimento estável de países emergentes como a Arábia Saudita e seus vizinhos.
Florencia Bonelli mistura com bastante mestria todos estes diferentes ingredientes e oferece ao leitor uma narrativa habilmente construída, polvilhada de momentos entusiasmantes e que fazem com que a leitura seja fluída, cativante e nos deixe um sabor docinho quando a encerramos. É impossível ficarmos indiferentes à força tempestuosa da protagonista e muito menos aos sentimentos poderosíssimos e fogosos que a unem ao homem da sua vida. E já que me refiro a Kamal, tenho que admitir que, apesar de parecer “too good to be true”, é dono de todas as qualidades físicas e de carácter que levam uma mulher a render-se e a apenas querer perder-se nos seus braços e não mais sair desse aconchego.
Por fim, deixo uma última referência – a obra abre-nos as portas a uma sociedade que normalmente está vedada aos olhos e conhecimentos de um ocidental. Através de Francesca, que nos serve de guia, transpomos a fronteira do mundo do Médio Oriente, penetramos no modo de vida dos árabes e, por muito que existam crenças e atitudes que nos põem os pelos eriçados, há outras que nos obrigam a deixar cair por terra preconceitos e ideias feitas que nada de bom trazem para as nossas vidas e, já agora, para vida da humanidade.
Por tudo isto, considero esta leitura muito interessante e pegarei com muito gosto em qualquer obra de Florencia Bonelli que me caia no tablet 😏

NOTA – 08/10


Sinopse
Apenas iniciada una brillante carrera en el diario que dirige su padrino y mentor, la joven periodista Francesca de Gecco sufre un terrible desengaño amoroso. Sólo el tiempo y la distancia podrán curar una herida tan profunda, y por eso la muchacha acepta un puesto en la embajada de su país en Ginebra. Sin embargo, esa ciudad sólo será la primera etapa de un viaje mucho más largo.

Al otro lado del mundo, en los palacios más deslumbrantes del desierto de Arabia, Francesca encontrará una segunda oportunidad para ser feliz. Lo que dicen tus ojos, la primera novela de Florencia Bonelli, es una de las más populares de la autora. Se trata de la poderosa y fascinante historia de la familia Al Saud que ahora tiene su continuación en la saga Caballo de Fuego.

A senda estreita para o norte profundo, de Richard Flanagan


       
 Ficha técnica
Título – A senda estreita para o norte profundo
Autor – Richard Flanagan
Editora – Relógio D’Água
Páginas – 400
Datas de leitura – de 28 de outubro a 07 de novembro de 2016

         Opinião

         “Porque tinham construído em quinze meses um caminho-de-ferro que os ingleses tinham declarado impossível construir em cinco vezes esse tempo.” (pág. 350)

         Na minha frenética caça por livros relacionados com a Segunda Guerra Mundial tropecei numa opinião muito suculenta num dos blogues que vou seguindo – O imaginário dos livros – e que me abriu os horizontes para o mapa deste conflito tão horrendo, mas tão fascinante.
          É óbvio de que se tratou de uma guerra mundial (o próprio nome assim o refere), mas sempre que me debruço sobre a contenda de 39-45 evoco as atrocidades nazis, a resistência francesa, os bombardeamentos de Londres, a invasão da Polónia que tudo despoletou e reajo com algum espanto quando algo me recorda que afinal o conflito foi mesmo mundial e que se alastrou para partes tão longínquas como a Austrália, a Índia, o Sião (atual Tailândia), a Birmânia (atual Myanmar), a China e o Japão.
         Sei que o bombardeamento de Pearl Harbour por parte do império japonês foi o que causou a entrada dos Estados Unidos na guerra, mas confesso que nada sabia sobre o referido império nipónico nem quais foram as demais movimentações bélicas do país do sol nascente e que foram interrompidas com os dois atrozes lançamentos de bombas atómicos sobre o seu território.
         Por tudo isto, por querer colmatar a minha ignorância e porque a opinião que havia lido sobre o livro era extremamente boa (com direito a atribuição a pontuação máxima), não descansei enquanto não adquiri A senda estreita para o norte profundo. Comprei-o em junho, mas a ordem cronológica das minhas leituras ditou que apenas o lesse agora.
         Começo por agradecer à “blogger dona” de O Imaginário dos livros por me ter guiado até a uma obra tão poderosa. Richard Flanagan permitiu-me viajar até lugares recônditos, sair da minha zona de conforto “europeia” e alargar os meus conhecimentos.
         Sei que maravilhar-me com algo tão bárbaro como uma guerra mundial pode provocar estranheza, mas não posso evitá-lo. É, como já afirmei variadíssimas vezes, uma atração, misto de fascínio e repulsa, que me leva a buscar incessantemente mais e mais sobre seis anos de luta armada como até hoje não mais tivemos. Nesta narrativa acompanhei protagonistas de nacionalidades distintas daquelas que habitam outras narrativas que já devorei sobre a referida luta armada. De um lado temos combatentes australianos que, por obedecerem aos longínquos mandamentos da coroa britânica, se veem lançados para palcos bélicos distantes e díspares como o Médio Oriente e as terras pertencentes ao império japonês – terras pantanosas, húmidas e onde quem mais ordena é a natureza. Do outro encontramos o exército nipónico cujo único objetivo é obedecer cegamente aos ditames do seu imperador que pretende construir um caminho-de-ferro entre as terras de Sião e a Birmânia, em tempo recorde, para que assim fosse possível o envio de fornecimentos desde o Japão até Banguecoque por mar e de seguida por comboio.
         Para levar a cabo algo que sempre havia sido visto como impossível, mesmo alargando em cinco vezes mais o período de construção, os japoneses usaram prisioneiros de guerra e trabalho civil. O pai de Richard Flanagan foi um desses prisioneiros e o autor aproveitou esse “legado precioso” e escreveu uma obra dividida em quatro partes que nos põe em contacto com um grupo de soldados australianos que nos faz viver quase em primeira mão os horrores indescritíveis que outros, não fictícios, sofreram durante o tempo em que estiveram sob o jugo implacável do império nipónico e foram obrigados a escavar pedra com ferramentas rudimentares, a transportar bambu, vigas e outros materiais durante milhas e milhas e a viver debaixo de condições sub-humanas, numa selva repleta de bichos, de doenças e de monções que transformavam tudo num monte de lama e putrefação sem fim. A grande parte não sobreviveu. A grande parte morreu carcomida por doenças ou simplesmente porque tinha fome. Outros não resistiram às torturas. Outros simplesmente desistiram.
         A senda estreita para o norte profundo não nos oferece uma leitura fácil. Encolhi-me frequentemente de nojo, arrepiei-me com descrições cruas de condições de vida inimagináveis. Contudo, as 400 páginas não são apenas sobre a construção da apelidada Linha da Morte. É igualmente sobre os limites, as imperfeições, os sonhos e as realidades que nos habitam como seres humanos. Não é uma obra onde facilmente nos deparamos com pinceladas de felicidade e optimismo, mas está muito bem escrita, puxa pela reflexão e pela emoção e com pequenas migalhas leva-nos a compreender o quanto devemos ver o lado bom de tudo aquilo que à partida parece horrível. Darky Gardiner, um dos soldados australianos que tenta sobreviver às condições inumanas da construção da Linha, transmite-nos esse ensinamento – morte de fome, afundado na lama e com um futuro que nada lhe reserva a não ser dias e dias de fome, dor e tortura, concede-se sempre alguns minutos para tentar agarrar-se a algo positivo no meio daquele inferno. Busca esperança onde ela não existe. E vai encontrando réstias da mesma que lhe permitem acordar num novo dia.
         A senda estreita para o norte profundo é igualmente uma história de amores. De amores desencontrados, de amores fúteis e superficiais, de amores arrebatadores, mas impossíveis. É ainda uma narrativa que nos possibilita conhecer atores dos dois lados da contenda e assim tentar entender o que não é entendível. É por fim uma narrativa que ilustra o estilo belo, poético e incongruentemente cru de um autor que merece ser conhecido e lido. Um estilo que nos presenteia com uma das belas e certeiras definições do que é o amor entre um homem e uma mulher:
         “Mas um dia ela explicou-me como cada divisão da casa tinha uma nota. Só tínhamos de a descobrir. Ela pôs-se a cantar trinados de um lado para o outro. E de repente uma nota chegava até nós, como se irrompesse das paredes e subisse do chão, e enchia a divisão com a sua ressonância perfeita. (…) Eram duas coisas completamente diferentes, uma divisão da casa, que se encontravam. E o som batia… certo. (…) Não acha que é parecido com aquilo que chamamos amor, Mr. Evans? A nota que nos é devolvida? (…) Que um dia encontramos alguém, e tudo nos é devolvido sob a forma de uma ressonância estranha? Uma ressonância certa. Que é bela. (…) era assim que nós éramos. O Jack e eu. (…) eu era aquela divisão da casa, e ele era a nota de música, e agora foi-se embora. E ficou tudo em silêncio.” (pág. 332)
         Creio que não necessito acrescentar muito mais. Reitero que é uma leitura dura, amarga, com personagens por quem devotamos carinho, mas que não se podem considerar heróis ou heroínas, já que são apenas reflexos da nossa humanidade, das nossas imperfeições, dos nossos defeitos, das nossas cobardias, dos nossos sonhos muitas vezes não concretizados e das nossas vidas de múltiplas fachadas… Reitero ainda que é uma leitura que vale muito a pena.

         NOTA – 09/10

        
         Sinopse
         Centenas de milhares de prisioneiros de guerra, entre eles numerosos australianos, são forçados pelos japoneses a um trabalho escravo nas selvas da Indochina durante a Segunda Guerra Mundial. O objectivo é construir, num prazo inverosímil e sem maquinaria adequada, uma via-férrea de 450 quilómetros ligando o Sião à Birmânia, o que permitiria atacar a Índia. Até à conclusão da linha em 1943, morreram dezenas de milhares de homens, incluindo um terço dos 22 mil prisioneiros de guerra australianos. Executores fanáticos das ordens imperiais, alguns oficiais japoneses chegavam a recitar haikai antes de torturar ou decapitar os prisioneiros.
         É neste clima de desespero que o cirurgião Dorrigo Evans, prisioneiro neste campo de guerra japonês na Ferrovia da Morte, se vê assombrado pela relação amorosa que manteve com a jovem esposa do seu tio dois anos atrás, enquanto tenta evitar que os homens sob o seu comando morram de fome, de doença, ou sejam simplesmente espancados.
         O romance de Richard Flanagan aborda as diferentes formas que o amor, a morte, a guerra e a verdade podem assumir, à medida que um homem envelhece e tem consciência de tudo o que perdeu.

Balanço mensal - livros lidos e oferecidos em outubro



Da última visita à Feira do Livro do Porto e das consequentes aquisições resultou uma promessa dolorosa – porque me “excedi” no montante gasto tive que prometer ao maridinho que em outubro não compraria nem um livrinho para “forrar” (ainda mais) a estante cá de casa…
Cumpri a promessa. Nos longuíssimos 31 dias deste mês que finalmente acabou (não acham que outubro é um mês muiiiiito comprido?...) controlei o vício, frequentei como habitualmente várias livrarias, pus-me a par das novidades, mas fui estoica, mantive-me firme e venci o vício.
Contudo, tenho que admitir que a abstinência não foi nem de longe tão amarga e sofrida como supus que iria ser porque fui, ou melhor, sou abençoada. Todos aqueles que me rodeiam (amigos, colegas de trabalho, familiares e seguidores do blogue) têm a perfeita consciência do papel vital que os livros desempenham na minha vidinha e por vezes ainda enchem os meus dias de mais alegria quando, de forma completamente inesperada, me presenteiam ou com uma obra em formato físico, de papel, ou com oito em formato digital!
No início do mês caiu no mail associado ao blogue uma claríssima evidência de que o meu cantinho – O sabor dos meus livros – já faz parte da vida de mais pessoas que não apenas aquelas que me são próximas. Cristina Tista, uma seguidora do blogue, escreveu-me um mail oferecendo-me aquela que considero uma das melhores prendas que recebi este ano. Ao mesmo tempo que confessava que as opiniões que vou publicando lhe vão valendo horas muito bem passadas, oferecia-me a possibilidade de enviar-me livros, publicados em espanhol e em formato PDF ou e-book, que constavam da minha wishlist! Ora, compreendem que a minha reação foi, ao princípio, de completo aturdimento e depois de completa felicidade. Naqueles minutos que sucederam à leitura do mail viajei até ao paraíso dos viciados em livros e desfrutei da alegria mais saborosa que uma livrólica pode saborear! No total, Cristina ofereceu-me 8 livros! 8 livros que tanto ansiava ter na minha estante! É certo que até hoje nunca li livros em formato e-book, mas não será isso que me impedirá! Já “aluguei” o tablet do filhote e pretendo estrear-me nas leituras digitais mal termine de ler o livro que agora me faz companhia! Muito, muito obrigada, Cristina!
Como se não bastassem estes miminhos caídos dos céus “tecnológicos”, recebi mais um, desta vez em formato físico e oferecido pela minha querida amiga e colega de trabalho, Lili. Furta-cores é uma coletânea e contos de uma escritora brasileira da qual nunca li nada, mas que, segundo a sinopse, promete saborosas e delicadas viagens pelas mais diversas solidões humanas. ¡Muchas gracias, cariño! ¡Qué regalito precioso!
Aqui vos deixo os 9 livros que inesperadamente chegaram às minhas mãos e estante neste mês em que supostamente não iria haver lugar a novas aquisições:
§  Furta-cores, de Cristina Parga
§  Lo que dicen tus ojos, de Florencia Bonelli
§  Lo que tiene nombre, de Piedad Bonnet
§  Tengo en mí todos los sueños del mundo, de Jorge Díaz
§  La víspera de casi todo, de Víctor del Árbol
§  Los pasos que nos separan, de Marian Izaguirre
§  La vida ante sí, de Romain Gary (Uma vida à sua frente – versão portuguesa)
§  El último adiós, de Kate Morton (O último adeus – versão portuguesa)
§  El ruisenor, de Hannah Kristin (O rouxinol – versão portuguesa)

         Em outubro continuei com o ritmo dos meses anteriores. Li cinco livros, quatro dos quais vindos diretamente das estantes da biblioteca municipal da terrinha.
         Arranquei o mês regressando ao mundo dos livrinhos juvenis e pela nota que atribuí à obra Lua de Joana é compreensível o quanto esta área da literatura, aquela que supostamente é para gente mais nova, mexe comigo e me possibilita regredir no tempo, comparar o que são comportamentos e sentimentos de uma época que ficou lá para trás, sentir nostalgia por uma inocência e noções de tudo ou nada que caracterizam a infância e a adolescência e fazer “a ponte” com a minha vida de hoje, de adulta.
         A esta leitura tão especial seguiu-se uma daquelas que não exigem nada de mim, que me chegam às mãos preparadinhas como um batido de frutas que só necessitamos colocar na boca e engolir. Nunca tinha lido nada de Colleen Hoover e não me arrependo de me ter estreado no seu mundinho de literatura cor-de-rosa e fácil, porque a obra que li – Confesso – cumpriu com o que lhe pedi – uma leitura relaxada, na qual desligamos, ligamos o piloto automático e deixamos levar-nos.
         A terceira obra do mês (a única que habita a minha estante das que li este mês) foi aquela que mais me desapontou, sobretudo porque as expectativas eram elevadas e a história de mais de 600 páginas não as preencheu como pensei à partida que o faria. Uma história de amor e trevas é reveladora do estilo do autor, que me agradou muito em determinadas passagens e me dececionou em outras. Sei que terei que deixar passar algum tempo antes de decidir-me em dar-lhe uma nova oportunidade.
         Depois de A lua de Joana tinha obrigatoriamente que voltar ao mundo juvenil. E fi-lo com outra obra à qual atribuí também nota máxima. O mundo em que vivi é maravilhosamente inocente e ao mesmo tempo uma triste e cruel amostra da realidade bárbara que só nós, seres humanos, somos capazes de criar. Ilse Losa escreve lindamente e quero ler muito mais obras suas.
         Terminei o mês com uma nova estreia. Aventurei-me no mundo dos contos de Alice Munro, aclamada com um Prémio Nobel da Literatura. Gostei do tom despretensioso de Amada Vida, do partir do banal para criar arte literária, mas senti que a essa banalidade e falta de pretensiosismo lhe faltava adicionar sentimento, alma, ingredientes que lhes trouxessem vida. Suponho que a intenção da autora é ser fiel ao banal e ao corriqueiro da existência da maior parte de nós, mas espero mais do que isso dos romances, dos contos, da ficção.
         Resumindo, outubro foi um mês extremamente positivo, não só porque as leituras que o preencheram foram boas e muito boas, como também pelos presentes que caíram inesperadamente dentro de um sapatinho “pré-natalício”!
         Deixo-vos por fim o link que vos permite aceder à opinião completa das obras lidas este mês:
§  A lua de Joana, de Maria Teresa Maia Gonzalez
§  Confesso, de Colleen Hoover
§  O mundo em que vivi, de Ilse Losa
§  Amada vida, de Alice Munro