Sábado, 18 de outubro de 2014
RELEITURA
Sinopse
«Em A
Jangada de Pedra (...) o escritor recorre a um estratagema típico. Uma
série de acontecimentos sobrenaturais culmina na separação da Península Ibérica
que começa a vogar no Atlântico, inicialmente em direção aos Açores. A situação
criada por Saramago dá-lhe um sem-número de oportunidades para, no seu estilo
muito pessoal, tecer comentários sobre as grandezas e pequenezas da vida,
ironizar sobre as autoridades e os políticos e, talvez muito especialmente, com
os atores dos jogos de poder na alta política. O engenho de Saramago está ao
serviço da sabedoria.» (Real Academia Sueca, 8 de Outubro de 1998)
Opinião
Não
é novidade para ninguém, sobretudo para quem me conhece, que Saramago é um dos
meus deuses literários, talvez aquele que ocupa o lugar mais destacado na
hierarquia dos autores de que mais gosto e mais admiro. O que talvez poucos
saibam é que me estreei com Saramago ainda não tinha 20 anos, frequentava o 12º
ano e fi-lo com esta obra que terminei de reler pela segunda vez.
Recordo-me
perfeitamente que foi uma estreia bastante custosa, que o estilo tão peculiar
de Saramago me estranhou muito a princípio, que "empanquei" logo nas
primeiras linhas que descrevem o risco que Joana Carda fez no chão com uma vara
de negrilho e as consequências que daí advieram... Mas se há algo que me
caracteriza como leitora é a persistência e, por essa razão, e por haver algo
que me dizia que a leitura da obra ia ser especial, não desisti com esse
primeiro obstáculo... E ainda bem que não fiz, porque, se a princípio me
estranhou, só eu sei o quanto depois se entranhou em mim tudo o que envolve a
Obra saramaguiana!
Outra
característica que me descreve como leitora ou mesmo como pessoa é o facto de
ser bastante (para não dizer muito) cética e de olhar com desconfiança para
tudo o que não seja verosímil ou realista. Por essa razão nunca fui "muito
à bola" com livros ou filmes de ficção científica e repletos de elementos
de fantasia. Contudo, com os livros de Saramago, esse ceticismo não está presente
e envolvo-me com todas as minhas fibras de leitora em histórias que partem, por
exemplo, da separação física da Península Ibérica da Europa, de uma cegueira
branca e contagiosa ou da morte que "se apaixona" e deixa de fazer o
seu trabalho... Sendo assim, qual o porquê desta contradição? Bom, primeiro
porque estamos a falar de Saramago, de um autor com aquele poder de
levar-nos a entrar nas suas narrativas e a não querer sair de lá e depois
porque ele usa estes cenários de fábula com o seu intemporal propósito - de
transmitir-nos algo mais, de fazer-nos pensar mais além do que é contado, de
compreendermos que há uma moral, uma mensagem que se quer "apregoar"
e passar a todos.
A
narrativa de A Jangada de Pedra
inicia-se com a descrição de acontecimentos insólitos que ocorrem a cinco
personagens que vivem em pontos distintos da Península Ibérica. Ora, esses
acontecimentos são o prenúncio do que se passará a seguir - uma fenda nos
Pirenéus, que se tornará cada vez maior e mais funda, que culminará na separação
da Península Ibérica da Europa e que a transformará numa jangada de pedra que
vogará (aparentemente sem destino) pelas águas do Oceano Atlântico. Este
anómalo acidente geológico será assim o ponto de partida para uma narrativa de
330 páginas, na qual o narrador (com as características muito próprias de um
narrador saramaguiano) vai dialogando connosco, vai tecendo comentários
constantes (com bastante ironia, já se sabe J)
sobre a forma como os governos peninsulares vão lidando com o desenrolar das
situações; como o povo vai vivendo, umas vezes deslumbrado, curioso,
aterrorizado ou outras vezes resignado e até indiferente; como o resto do mundo
reage face à viagem da “jangada de pedra” e, finalmente, como o referido
narrador acompanha uma viagem mais individual e errante que é levada a cabo por
terras portuguesas, andaluzas, galegas e castelhanas pelas 5 personagens que
abrem a narrativa.
É
conhecida a simpatia que Saramago nutria pela ideia de uma Ibéria Unida e, como
tal, podemos considerar que esta obra é uma homenagem a uma Península Ibérica
unida, forte, independente, desapegada da Europa e inclusive do rochedo
britânico que é Gibraltar. Mas também é, na minha modesta opinião, uma chamada
de atenção para o quanto ainda seria necessário fazer para que essa ideia se
transformasse em realidade.
Além
de tudo o que já foi mencionado, Saramago possui uma faceta de que gosto mesmo
muito – a maneira como constrói as personagens, como, no caso deste livro, “fá-los”
empreender uma viagem em grupo para se descobrirem enquanto pessoas, enquanto
indivíduos que necessitam comungar com outros. E para um homem/autor que tinha
aquele aspeto sisudo e até distante, é surpreendente e encantador o carinho que
consagra à construção das personagens femininas, à força e carácter que lhes
dá, associadas a uma sensibilidade tão própria do género!
Para
finalizar este comentário que vai longo, tenho que dizer que li parte desta
obra ao mesmo tempo que explorava com os meus alunos em sala de aula o
magnífico filme de Alejandro Amenábar – “Mar
Adentro” e não consegui deixar de relacionar as duas obras-primas,
lendo muitas vezes ao som da magistral banda sonora do filme. Aqui vos deixo uma
das músicas que mais mexeu e mexe comigo:
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