RELEITURA
Ficha técnica
Título – Vir
ao mundo
Autora – Margaret Mazzantini
Editora – Bertrand Editora
Páginas – 532
Datas de leitura – de 28 de maio a 17 de junho de 2017
Opinião
“Respiro fundo múltiplas vezes e acaricio a
lombada, a capa. Da leitura que terminei há umas horas [No país da nuvem
branca] já quase nada resta. Deixou a porta escancarada para esta releitura
que será a primeira deste ano e sem dúvida a mais significativa, a mais
ansiada, a mais premente.
Acompanhar-me-á um permanente
nó na garganta.”
Isto
foi o que registei no meu caderninho das leituras mal retirei da estante aquele
que é um dos livros da minha vida. Até ao momento não havia feito nenhuma
releitura em 2017, porque conscientemente ou não estava a preparar-me para
receber de novo a história de Gemma e de Diego, a história de um amor dolorosamente
belo que abalroou a vida de dois jovens italianos que casualmente se conhecem
em Sarajevo, no ano em que aí se celebraram os Jogos Olímpicos de Inverno.
Comprei
esta obra em 2012. Comprei-a após ter lido Não te movas e me ter completamente apaixonado pela escrita emocional e
belíssima de Margaret Mazzantini. A primeira leitura de Vir ao Mundo demorou praticamente um mês, não por causa do
número de páginas da obra, mas porque a avalanche de sensações e sentimentos
que experimentei desde as suas palavras iniciais foi sufocante, cortou-me o
fôlego vezes sem conta, trouxe à superfície angústias, medos e dores que senti
como se fossem minhas, só minhas.
A releitura
ocorreu quase cinco anos depois e, uma vez mais, foi impossível fazê-la à
velocidade normal de uma qualquer leitura. Vir
ao mundo acompanhou-me em casa, no trabalho, por todos os lados durante
21 dias e despoletou tudo de novo – o nó na garganta, o peso no estômago, os
nós dos dedos brancos da força com que cerrava os punhos, o encostar e abalar
do livro junto ao meu peito e as lágrimas que correram infindáveis vezes, de
forma descontrolada, como correm agora que bato as teclas para escrever este
texto. Um texto que tem que ser perfeito, que desesperadamente transpareça o
quanto este livro é também ele soberbamente perfeito, o quanto a sua leitura
dói, nos faz sofrer, uivar em silêncio de incompreensão, de injustiça, de
compaixão, de tristeza, de mágoa e dor pelos protagonistas da sua narrativa,
sejam eles pessoas ou espaços.
Como
referi, Vir ao mundo conta-nos
a história de Gemma e de Diego. Mas a sua narrativa não se centra apenas na sua
história de amor. É isso e muito mais. É a história de um amor completo, doce, pleno,
sofrido, mas que não termina. É a história de Gemma, de uma mulher que sabe que
só se sentirá completa se for mãe, mãe de um filho de Diego – “ – Quero um filho com uns pés assim. (…) – O que têm de belo estes pés? – São os dele…” É a história de uma
maternidade desesperadamente buscada, de uma maternidade que só será realidade
no corpo de uma outra mulher, de alguém que não seja “incompatível com a vida” de
alguém que não tenha “uma esterilidade de noventa e sete por cento… uma
esterilidade total.” É a história dessa maternidade finalmente alcançada,
de uma maternidade que já dura há dezasseis anos, mas que apenas Gemma sentiu
como verdadeira, como concreta bem depois do nascimento de Pietro – “Terei de esperar pelo dia em que ele, na
terceira classe, me há-de baptizar.” É a história de Gojko, de Aska, de
Sebina e de Armando, personagens que nos invadem o coração. Um com a sua
ironia, o seu sentido de humor, a sua amizade indestrutível e um sentido de
lealdade comovente. Outra com a sua inocência atrevida, os seus sonhos, a sua
rebeldia, a sua música e a sua juventude. Outra com a sua meninice, o seu
temperamento forte, a sua aura de esperança e a sua vontade de lutar. Outro com
a sua doçura, a sua timidez e a sua forma tão suave e delicada de trazer luz à
vida de quem o rodeia.
Vir ao mundo reúne todas estas histórias – de
crianças, adolescentes, jovens e menos jovens. Mas há um espaço, uma cidade que
as protagoniza e que une na mais absoluta perfeição o que já por si seria uma
narrativa com contornos perfeitos. Ao longo das 532 páginas da obra
calcorreamos a cidade de Sarajevo. Calcorreámo-la em 1984, no apogeu dos Jogos
Olímpicos de Inverno. Calcorreámo-la em 1991, 1992, em pleno cerco da guerra
civil dos Balcãs e calcorreámo-la em 2008, como capital da recente e
independente Bósnia-Herzegovina. E apaixonámo-nos por ela, rendemo-nos aos seus
encantos. Uma cidade que era o espelho da tolerância, da pacífica e harmoniosa
convivência entre povos de etnias e religiões diferentes, que em 1984 olhava
com confiança para o futuro, que abria devagarinho as suas portas para o mundo
e que em 1991, 1992 é devastada, arrasada por uma guerra de contornos brutais,
que assiste incrédula e indefesa ao massacre que abate os seus habitantes como
se fossem lebres – “… aquela cidade
transformada num campo de lebres a dizimar.” “Sarajevo é um grande campo de
tiro ao ar livre. Uma reserva de caça.” Uma cidade que em 2008 renasceu das
cinzas, mas que ainda está em convalescença, que ainda mostra feridas por
cicatrizar. A cidade de Gojko, a cidade de Aska, a cidade de Sebina, a cidade
de sarajevitas que não esquecem, que ainda choram os seus mortos, mas que
paulatinamente vão começando a viver de novo – “ _ Certo dia, passei junto de um prado vermelho de papoilas e, pela
primeira vez, não pensei em sangue, fiquei encantado com aquela beleza tão
frágil. Era suficiente menos de um machado, de um míssil maljutka, era suficiente
um sopro de vento. Aquele prado estava ali parado para nós, estava à nossa
espera a seguir à curva. Um campo imenso pontuado de línguas vermelhas, como
corações caídos do céu sobre a erva. Ia de carro com a minha mulher. Parámos e
começámos a chorar. Primeiro, eu; depois, ela também veio atrás de mim como um rio.
Foi um pranto que lentamente nos esvaziou, nos ressarciu. E a partir dessa
tarde começámos a respirar com o peito. Conseguíamos suportar a nossa
respiração. Durante anos esteve retida na garganta, não conseguia parar… Dois
meses mais tarde, a minha mulher estava grávida.”
Por
tudo o que referi, é quase redundante dizer que a releitura de Vir ao mundo foi esmagadora. Foi
esmagadora porque reavivou a vontade quase incontrolável que sinto de conhecer
Sarajevo. Foi esmagadora porque me trouxe tudo o que busco numa leitura. Foi
esmagadora porque, como mãe, senti as dores, o desespero, a loucura, o egoísmo,
os medos e as angústias de Gemma como minhas. Foi esmagadora porque me voltei a
render ao amor dos dois protagonistas da narrativa. Foi esmagadora porque criei
laços inquebráveis com todas as personagens. Foi esmagadora porque a escrita de
Mazzantini é magistral, dolorosamente bela. E foi ainda esmagadora por causa da
banda sonora que nos vai acompanhando ao longo da história e da qual fazem
parte canções como estas – I wanna marry
you, de Bruce Springsteen; Where the
streets have no name, dos “meus” U2; Losing
my religion, dos REM.
Concluindo,
repito o que já referi – este é um dos livros da minha vida e que adoraria que
fosse lido por todos aqueles que ainda não o leram e não conhecem Margaret
Mazzantini. É um verdadeiro crime que esta autora tenha deixado de ser
traduzida para português, apenas porque a venda dos seus livros não foi
economicamente rentável… Espero, para bem de todos, que essa situação seja
revertida num futuro próximo. Eu continuo a lê-la – já li em espanhol mais três
obras suas, mas seria maravilhoso que todos pudéssemos saborear os seus livros
na nossa língua, apesar de a edição que reli ter algumas gralhas
incompreensíveis…
Há uns
meses a minha querida companheira do blogue “Jardim de Mil Histórias” pediu-me que participasse na rubrica “O
livro da minha vida”. Ainda não lhe havia respondido… Talvez porque estava à
espera desta releitura. Sendo assim, aqui o tens, Isa!
Leiam Vir ao Mundo! Por favor!
NOTA –
10/10 ou se preferirem 11/10
(Deixo-vos o link da opinião que escrevi para o blogue aquando da primeira vez que li esta obra que sempre me vai assombrar)
Sinopse
Gemma deixa para trás a sua
vida e entra num avião com o filho de dezasseis anos, Pietro. Destino:
Sarajevo, uma cidade entre o Ocidente e o Oriente, ainda cicatrizada pelas
feridas de um passado recente. À sua espera no aeroporto está Gojko, um poeta
bósnio, velho amigo, que durante os dias festivos das Olimpíadas de Inverno de
1984 apresentou Gemma ao amor da sua vida, Diego, um fotógrafo que captava
cenas de beleza estonteante nos reflexos de poças de água.
Este romance conta a história do seu amor, de dois jovens em tempos frenéticos e envelhecidos pela guerra. Uma história de amor tão apaixonada e imperfeita como apenas o amor verdadeiro pode ser, num ambiente contemporâneo e devastador do mundo em guerra e em paz.
Este romance conta a história do seu amor, de dois jovens em tempos frenéticos e envelhecidos pela guerra. Uma história de amor tão apaixonada e imperfeita como apenas o amor verdadeiro pode ser, num ambiente contemporâneo e devastador do mundo em guerra e em paz.
Olá Ana,
ResponderEliminarUau!! Já está na lista! Desconhecia por completo, mas agora já está para ler.
É por isso que gosto deste teu cantinho :)
Beijinhos e boas leituras
Olá, querida!
EliminarEste livro tem mesmo que ser lido por mais pessoas! Merece-o! Espero que o encontres e que te deleites! Fico à espera dessa leitura!
Beijinhos e leituras muito saborosas!
11/10, sem dúvida! Nunca esperei comover-me tanto com este livro e levei-o para férias, por isso, estava sempre a parar para não chorar à frente da família. No final, quando a Gemma chega a casa do Gojko, tive um pressentimento muito mau e pensei: "Isto é muito injusto, recuso-me a ler mais!" Mas lá me acalmei e terminei a leitura, mesmo sendo um daqueles livros que me dividiu: tanto queria acabá-lo, para ver se podia respirar de alívio no fim, como queria que o livro tivesse mais 300 páginas para não ter de me despedir dele. Sim, este foi o comentário mais piegas de todos os tempos!
ResponderEliminarE já viste a adaptação ao cinema? Só vi o trailer, porque quero manter as coisas como as imagino, mas o sotaque espanhol da Penelope Cruz incomoda-me um bocado.
Paula
Paula, como eu entendo este teu comentário piegas... Também eu, mesmo agora, com a releitura, queria chegar ao final da obra e ao mesmo tempo não queria desprender-me dela. Tudo isso e muito mais é sinónimo do 11/10, de uma obra que se nos entranha e de nós mais não sai!
EliminarComecei a ver a adaptação ao cinema e, embora a mim, que tenho uma ligação profissional ao espanhol, não me incomode o sotaque da Penélope Cruz, não tenho muita vontade de ver o filme, porque acho que me vai "estragar" a ligação preciosa que tenho à obra - é como tu dizes, quero manter as coisas como as imagino... Contudo, tenho amigas que já viram o filme e dizem que é excelente! Fica para um dia destes!
Já leu O PROCESSO de Kafka? Para mim é um dos livros da minha vida, lido por volta dos 25 anos. Obrigatório.
ResponderEliminarOlá, Joaquim! Não, não li, mas planeio lê-lo um dia destes.
EliminarObrigada pela sugestão.