sábado, 28 de fevereiro de 2015
Opinião
No último dia deste mês chuvoso acabei
de ler aquele que considero o melhor romance de João Tordo. Sem dúvida nenhuma.
Comprei-o na última edição da Feira do
Livro do Porto e tive a sorte de fazê-lo no dia em que lá estava o autor para
uma sessão de autógrafos. Assim, Biografia
involuntária dos amantes tornou-se no primeiro livro autografado que “aterrou”
na minha estante J Por si só, esse autógrafo já faz
desta obra uma obra especial. Mas, felizmente, a mesma possui muitas mais
razões para que a classifique como notável e digna de este jovem e mais que
promissor escritor nacional.
Mais uma vez e como acontece em outros
romances de Tordo, Biografia involuntária
dos amantes oferece-nos uma narrativa que se espalha por vários
espaços, tempos e um protagonista que honra os seus “antepassados”, ou seja, os
seus companheiros bibliográficos de passadas obras “tordianas”. Mas convém
assinalar que há diferenças. Pela primeira vez, Tordo aventurou-se e pôs um dos
narradores na pele de uma mulher. E há mais. O amor é o ingrediente principal,
aquele à volta do qual tudo se passa, tudo avança e recua, tudo faz sentido.
“Juntos
matámos o javali”. É com esta frase curta e inesperada (mas que nos aguça a
curiosidade) que a narrativa se inaugura. A partir dela, podemos apreender que
o narrador será autodiegético (ou homodiegético) e que aquele incidente, a
morte de um javali será um acontecimento significante, que funcionará como
pretexto para o novelo de posteriores ações, reflexões e memórias. Muitas memórias.
Com o desenrolar da ação, constatei
que o seu primeiro grande espaço é a belíssima região galega e que deambularia
por duas das suas cidades – Santiago de Compostela, onde trabalha o narrador, e
Pontevedra, onde reside. Bom, neste ponto tenho que abrir uma espécie de
parêntesis e confessar que sou uma apaixonada pela cidade de residência do
narrador – conheço Pontevedra relativamente bem (já lá estive três vezes) e não
consigo impedir que o seu centro histórico, as suas ruelas estreitas, as suas
deliciosas praças me conquistem, me seduzam uma vez e outra e outra. Sendo
assim, é mais do que óbvio que segui (como se fosse a sua sombra) as deambulações
que o narrador fez frequentemente pela sua cidade e que visualizei recantos,
ruas, praças, estátuas, cruzeiros, cafés que me são familiares e que me agradam
sobremaneira. As duas consequências imediatas que disso resultaram são fáceis
de adivinhar – quando li essas passagens, essas descrições das caminhadas por
Pontevedra, fartei-me de suspirar (em voz alta e verbalmente J) por uma nova visita ao seu centro
histórico (e já agora às suas livrarias – duas pelo menos) e apercebi-me de que
já me tinha rendido a Biografia
involuntária dos amantes.
Contudo, ainda havia muito na sua narrativa
que me iria seduzir, prender, agarrar, conquistar. O seu narrador e protagonista,
por exemplo. Dele não sabemos o nome. Sabemos apenas que é professor
universitário, que é o animador de um programa de rádio noturno, que está
divorciado e que tem uma filha adolescente, com quem mantém uma relação
conflituosa e distante. Sabemos ainda que é um homem na casa dos cinquenta e
que se sente preso a uma vida sem sabor, a uma vida insossa, desencantada, cinzenta
e previsível como o é o tempo atmosférico na Galiza. É um homem cobarde, que
tem consciência dessa cobardia, mas que nada faz para combatê-la, nem quando
essa falta de coragem de iniciativa o afunda mais. Contudo, tudo sofre uma reviravolta
com o acontecimento que inaugura a narrativa da obra – um desastre na AP-9 que
provoca uma vítima mortal – um javali que se atravessou no caminho do narrador
e do seu amigo e poeta mexicano Saldaña Paris.
Esse acidente será o momento desencadeador
de um rol de memórias partilhadas entre os dois homens, tendo como elemento
principal o casamento desfeito entre Saldaña Paris e Teresa, uma portuguesa que
entretanto havia falecido de cancro e lhe havia deixado uma espécie de diário
dos seus últimos dias de vida. Este documento autobiográfico não só
transtornará de forma quase irreversível a existência do poeta mexicano, como
também fará tremer os alicerces da vidinha sensaborona e frustrada do narrador,
já que será a desculpa ideal para que este deixe tudo e todos para trás e parta
numa espécie de demanda para descobrir quem é na verdade Saldaña Paris, quem
foi a sua falecida esposa e, finalmente, para descobrir-se a si mesmo.
O desenlace da obra permitir-nos-á
saborear o gozo de uma curiosidade (que vai crescendo e crescendo à medida que
avançamos página a página) finalmente satisfeita e acreditar que nunca nada
está perdido, que devemos não baixar os braços e que devemos lutar por nós,
pelos nossos e que temos que aceitar as lições que o dia-a-dia nos traz.
Concluindo, o que fui expondo até ao
momento reflete o porquê de tanto ter sido conquistada e de tanto ter gostado
de Biografia involuntária dos amantes.
Não dececiona, de maneira nenhuma, os leitores habituais de João Tordo e possui
ingredientes mais do que suficientes para atrair novos “amantes” da sua
escrita. Vale realmente a pena!
Não resisto a deixar ainda três notas
finais:
- para quem já leu O ano sabático, Biografia involuntária dos amantes
reserva uma “pequenina” surpresa!
- por muito que odeie e não suporte
dias chuvosos (sobretudo aqueles cuja chuva é miudinha, constante e acompanhada
de nevoeiro e MUITA humidade), não consegui deixar de sentir que esses dias são
algo mais que nos une à Galiza, que a fronteira política que separa “o meu”
Norte dessa comunidade autónoma espanhola não passa disso mesmo, de uma
fronteira política…
- a “Dica” desta semana revelou-me que
João Tordo está prestes a lançar uma nova obra e que promete – O luto de Elias Gro J
NOTA – 10/10
Sinopse
Numa
estrada adormecida da Galiza, dois homens atropelam um javali. A visão do
animal morto na estrada levará um deles — Saldaña Paris, um jovem poeta
mexicano de olhos azuis inquietos — a puxar o primeiro fio do novelo da sua
vida. Instigado pelas confissões desconjuntadas do poeta, o seu companheiro de
viagem — um professor universitário divorciado — irá tentar descobrir o que
está por trás da persistente melancolia de Saldaña Paris.
Depois deste maravilhoso comentário, já sei o que vou ler a seguir.
ResponderEliminarNão te vais arrepender, podes ter a certeza! Boas leituras!
EliminarRendida a esta opinião. Estive também a deitar um olho à lista ali à esquerda de autores que já leste e comentaste e acho que me vou perder em reviews antigas :D
ResponderEliminarAinda bem, consegui aquilo que pretendo - fazer com que mais gente leia esta obra maravilhosa!
EliminarEstás à vontade, Bárbara, tu perde-te, mulher :D