Terça-feira, 17 de março de 2015
RELEITURA
Opinião
Luis Sepúlveda ocupa um cantinho
especial no meu coração literário. E por razões muito simples – é chileno,
encanta-nos com uma prosa simples e melodiosa, é um acérrimo defensor da
ecologia e, não sei se já referi, é chileno J e o seu talento equivale, na minha opinião, ao de outros
“monstros das letras” chilenas e sul-americanas como Isabel Allende, García
Márquez ou Jorge Amado.
De todas as obras que já li, desde História de uma gaivota e do gato que a
ensinou a voar, Encontro de
amor num país em guerra a As
rosas de Atacama, O velho que
lia histórias de amor é aquela a que dedico carinho e atenção mais especiais.
E não é difícil adivinhar por quê. O título em si elucida – é impossível ficar
indiferente à sugestão que dele advém, ou seja, é impossível não querer “entrar”
numa história que terá como protagonista um velho que lê, que dedica parte do
seu tempo livre, de ócio, à leitura de histórias de amor.
A narrativa é curtinha e
transporta-nos para a selva amazónica equatoriana. É lá que vive um punhado de
homens, brancos e indígenas. Uns em comunhão com a natureza, outros usurpando-a
e destruindo-a. Como, infelizmente, seria de esperar… Contudo, por muito que o
Homem detenha as armas mais fortes, mais mortíferas, a natureza de vez em
quando ainda sai vencedora de alguns combates. Ainda consegue, sorrateira e
surpreendentemente, infligir no ser humano a derrota e a humilhação de
deparar-se com o inesperado – a união de todos os elementos que compõem o
elemento mais fraco e que lhe pregam uma partida.
O velho protagonista desta história é
um exemplo de alguém que fugiu de uma vida com poucas condições à procura do
sonho amazónico. Casado com Dolores Encarnación del Santísimo Sacramento
Estupiñán Otavalo (o narrador sempre se refere à mulher do velho com o nome
completo), Antonio José Bolívar Proaño chega à selva munido de um documento que
o assevera como dono de um pedaço de terras, mas cedo se rende às evidências –
não é ele quem possui esse naco de terra, mas sim a selva. A selva nada dá ao
homem gratuitamente, vê-o como um invasor e Antonio José não é exceção. Perde a
mulher pouco tempo depois e cura a dor do luto tentando compreender o “inferno verde que lhe arrebatara o amor e os
sonhos” (pág. 33). Será um início de uma aprendizagem, de um ritual
iniciático que não terminará nunca, mas que o apaziguará e o fará entender,
como nenhum homem branco daquelas paragens inóspitas, que aquele mundo verde
merece respeito e, porque não, vassalagem.
Os livros, as histórias de amor, de “chorar
rios de lágrimas” também contribuíram para esse apaziguamento e respeito pela vida
que a selva lhe proporciona. Antonio José é quase analfabeto, mas retira um
prazer indescritível (como o entendo) de ler lentamente, “juntando as sílabas, murmurando-as a meia voz, como se as saboreasse,
e, quando tinha a palavra inteira dominada, repetia-as de uma só vez. Depois
fazia o mesmo com a frase completa, e dessa maneira se apropriava dos
sentimentos e ideias plasmadas nas páginas.” (pág. 28). De meio em meio
ano, recebe das mãos do dentista que visita a sua povoação livros que lê com
toda a devoção, de pé, na sua choça, muitas vezes enquanto lá fora chove
torrencialmente – “Estava rodeado pela
chuva por todos os lados e o dia oferecia-lhe uma intimidade inigualável.”
(pág. 63)
Contudo, essa intimidade, esse
apaziguamento, esse quotidiano feito de insignificâncias rotineiras são amiúde
perturbados com a chegada de garimpeiros e de outros usurpadores daquele mundo
verde. A última invasão tem consequências devastadoras para ambos os lados da
contenda e não deixa nada nem ninguém indiferente. Nem mesmo Antonio José. Nem
a mim, como leitora…
Li este pequeno tesouro, pela primeira
vez, há mais de 15 anos e o que recordava com nitidez era a sua parte final,
aquela que dolorosamente nos expõe, de uma forma simples e direta, o quanto estamos
a destruir o que faz do nosso planeta um astro habitável. O quanto estamos a
dizimar o que é vital para que continuemos a sobreviver e para que os nossos
descendentes sobrevivam. A verdade é só uma – os outros seres vivos que
preenchem este planeta não precisam de nós. O contrário, sim. Mas,
inexplicadamente parece que nos estamos sempre a esquecer disso – não sobreviveremos
se continuarmos a destruir esse precioso ecossistema.
Deliciei-me com o sabor desta
releitura e só não a pontuo com a nota máxima por inteira culpa minha – a minha
fobia por animais rastejantes e que abundam na Amazónia veio ao de cima em
certas passagens da obra…
Deixo, por fim, o excerto que remata a
obra e que resume a sua mensagem de forma perfeita:
“Antonio
José Bolívar Proaño tirou a sua dentadura postiça, guardou-a embrulhada no
lenço, e, sem parar de amaldiçoar o gringo que estivera na origem da tragédia,
o administrador, os garimpeiros, todos os que insultavam a virgindade da sua
Amazónia, cortou com um golpe de machete um grosso ramo e, apoiando-se nele,
pôs-se a andar na direção de El Idilio [como ironicamente, ou não, se chama o
local onde vive], da sua choça, dos seus romances, que falavam do amor com
palavras tão bonitas que às vezes lhe faziam esquecer a barbárie humana.”
(pág. 110)
NOTA – 9/10
Sinopse
Antonio
José Bolívar Proaño vive em El Idilio, um lugar remoto na região amazónica dos
índios shuar, com quem aprendeu a conhecer a selva e as suas leis, a respeitar
os animais que a povoam, mas também a caçar e descobrir os trilhos mais
indecifráveis.
Um
certo dia resolve começar a ler, com paixão, os romances de amor que, duas
vezes por ano, lhe leva o dentista Rubicundo Loachamín, para ocupar as
solitárias noites equatoriais da sua velhice anunciada. Com eles, procura
alhear-se da fanfarronice estúpida desses "gringos" e garimpeiros que
julgam dominar a selva porque chegam armados até aos dentes.
Descrito
numa linguagem cristalina e enxuta, as aventuras e emoções do velho Bolívar
Proaño há muito conquistaram o coração de milhões de leitores em todo o mundo,
transformando o romance de Luis Sepúlveda num "clássico" da
literatura latino-americana.
Simplesmente encantado com as tuas palavras. Para quem já o leu, como eu, dá vontade de ir já relê-lo.
ResponderEliminarFico feliz pelo facto de as minhas palavras terem esse impacto! Obrigada e boas leituras!
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