O apocalipse dos trabalhadores, de Valter Hugo Mãe

Domingo, 02 de março de 2014




Sinopse
A resistência de Maria da Graça e de Quitéria, duas mulheres-a-dias e carpideiras profissionais que, a braços com desilusões e desconfianças várias acerca dos homens, acabam por cair de amores quando menos esperam. Com isso, mudam radicalmente o que pensam e querem da vida.
Este é um romance sobre a força do amor e como ela se impõe igual a uma inteligência para salvar as personagens das suas condições de desfavor social e laboral.
Passado na recôndita cidade de Bragança, este livro é um elogio à força dos que sobrevivem, dos que trabalham no limiar da dignidade e, ainda assim, descobrem caminhos menos óbvios para a mais pura felicidade.

Opinião
Terminei de ler esta obra em frente à lareira e enroscada numa manta J Tão bom!!!
É o terceiro livro que leio de Valter Hugo Mãe. E, como seria de esperar, não me desiludiu. Não o considero tão bom como o meu favorito até agora, O Filho de mil homens. Mas, mesmo assim, muito recomendável, sobretudo para quem já se rendeu à escrita deste prometedor escritor ou para quem ainda não teve o prazer de o descobrir.
Em O apocalipse dos trabalhadores reina a realidade de gente comum, anónima, trabalhadora e sofredora. E reina a mestria da escrita do seu autor, que transforma a vida de duas mulheres-a-dias, nos faz entrar em suas casas, nas suas rotinas e sobretudo nos seus sonhos, nos seus medos, nos seus desafios, nas suas desilusões e na cumplicidade que as une e que as faz não soçobrar.
Maria da Graça e Quitéria são as personagens principais. Vivem das limpezas que fazem em casa de outras pessoas e ganham um dinheirinho extra como “carpideiras” de velórios onde faltam familiares e amigos que chorem pelo defunto. Apesar de a vida ter sido pouco solidária com estas mulheres, não deixam de sonhar com uma vida melhor e principalmente com a força de um amor que as faça sentir realizadas e completas. Maria da Graça está presa a um casamento e vai iludindo o coração com uma relação sexual pseudo-forçada que mantém com o Sr. Ferreira. Por sua vez, Quitéria encontra o amor num imigrante ucraniano, mais novo do que ela e que a princípio não sabe uma palavra da língua lusa.
São principalmente as duas personagens femininas e  a do ucraniano que nos acompanham, preenchem uma narrativa que nos faz tomar mais uma vez consciência da precariedade do trabalho, do quanto o interior de Portugal sofre com a pouquíssima oferta laboral e do quanto, paradoxalmente, ainda há quem imigre para o nosso país porque o seu próprio país está em piores condições.
Com tudo isto, poderíamos assumir que este romance é triste e amargurado. Sim, é-o, mas a tristeza e a amargura são muitas vezes camufladas, abafadas por momentos que provocam o riso, como aqueles que Maria da Graça e Quitéria protagonizam em noites que passam a velar defuntos desconhecidos em locais isolados ou em conversas cúmplices que aquecem as suas vidas sofridas e maltratadas.

É, por fim, um romance, tal como nos diz a sinopse, que elogia a força interior e exterior dos trabalhadores, dos que labutam sem descanso e que sonham com a força do amor, que pode aparecer quando menos se espera e de quem menos se espera. E é, por que não, um retrato do nosso Portugal mais genuíno e castiço.

Os Pássaros de Seda, de Rosa Lobato Faria

Quinta-feira, 22 de janeiro de 2015




Sinopse
Graças à qualidade eterna do carácter de minha mãe e ao consequente travão que ela pôs à entrada do "progresso" naquela casa, a Pedra Moura guardou para sempre a sua transcendência de lugar mágico.
O reino dos contos de fadas e dos autos de Natal, o mundo dos antigos aromas e sabores, o sítio da infância, o refúgio ideal para nascer e para morrer.
Assim terminam as memórias de Mário, um dos protagonistas de Os Pássaros de Seda, um livro sobre a condição humana, que opõe os valores perenes da infância, do maravilhoso e do amor à precariedade das paixões e dos transes da fortuna.
Um magnífico romance que, depois de O Pranto de Lúcifer, confirma a sua autora como uma presença incontornável no panorama da nova ficção portuguesa.

Opinião
Antes de mais uma produtiva conversa literária com a minha querida Betinha, apenas conhecia Rosa Lobato Faria do mundo dos palcos e das telenovelas. Sabia que, para além da atuação, se dedicava à escrita de letras para canções do Festival RTP da Canção e que muita gente a apreciava como autora de um bom punhado de romances. Mas eu tenho que admitir que nunca me tinha atraído a ideia de conhecer esse outro lado de uma senhora cuja fisionomia me transmitia uma sensação de alguém distante e pouco carinhoso.
         Essa sensação foi sendo deixada para trás ao testemunhar o entusiasmo com que a Betinha me falou das suas experiências como leitora de alguns dos romances da autora. E tive que deixar-me contagiar! Apontei alguns títulos e, na primeira oportunidade, “vasculhei” estantes das mais variadas livrarias em busca de um título em particular – Os Pássaros de Seda. Mas nada consegui – ou me diziam que estava esgotado ou que poderia encomendá-lo mas sem garantias… Enfim, quase desisti… Até que me lembrei dos maravilhosos alfarrabistas que existem no Porto… No dia 31 de julho, saí da Rua do Bonjardim com um sorriso enorme, com o livro nas mãos e mais uma recomendação de que iria adorar entrar no mundo das obras da “Rosinha”.
         Os Pássaros de Seda é um romance muito feminino. É também um romance muito português, recheado de tradições, paisagens da fabulosa região do Alto Alentejo, cheiros, sabores e personagens que nos fazem viajar no tempo. Viajamos até um Portugal do antes de 25 de abril e entramos em casas de famílias abastadas, como a do doutor Proença, ou seguimos a jovem Margarida, grávida do seu filho, que é “adaptada” primeiro por um casal de ancianos simpatiquíssimo e depois pelo seu tio Zebra, para quem “Uma coisa é a lei, outra é a gente a falar e acredita que se a criança não se adaptar à família e a família à criança, não há lei que lhes valha.” (pág. 46).
         No universo desta obra reinam sobretudo as mulheres. Mulheres com uma personalidade forte, determinadas, que não tropeçam perante as adversidades e que conquistam o seu lugar e o direito a serem felizes.
Margarida constrói um lar, um “ninho” onde as suas crias sempre se sentiram e sentirão protegidas e acarinhadas. É um lugar mágico, vigiado pelo fantasma da moura encantada, o refúgio ideal para nascer, morrer e renascer quando tudo parece perdido.
Diamantina, a personagem principal, passa a sua infância nesse ninho, rodeada de amor, mimo, companheirismo e, não menos importante, ouvindo, noite após noite, as histórias fantásticas e encantatórias que lhe oferece o tio Zebra. Tudo isto lhe moldará a personalidade e representará um papel fundamental no seu crescimento enquanto mulher e enquanto criadora de bordados e pássaros de seda até aí nunca vistos – “Para mim, os pássaros de seda são assim as asas de quem tem um dom. E aquele cor-de-fogo, com as asas abertas e os olhos que veem muito para lá do horizonte, é o tio Zebra, com o seu condão das histórias e dos impossíveis.” (pág. 65)
Junto a estas mulheres, dando-lhes apoio, amando-as nos bons e maus momentos, protegendo-as e aconselhando-as vamos encontrando exemplos de homens que não nos deixam indiferentes, que não me deixaram indiferente. É o caso de Mário, em cujas memórias se baseia este romance e o já referido e maravilhoso tio Zebra, homem sem idade, dono de uma vida que parece não ter início nem fim e que nos oferece momentos de magia e encantamento com as suas pequenas mas belíssimas e riquíssimas histórias.
Aliada a esta mão cheia de personagens cativantes está a beleza da escrita desta autora. Uma escrita não muito elaborada, mas ao mesmo tempo poética, recheada de pormenores corriqueiros, mundanos e que nos fazem refletir sobre as relações e memórias que construímos com quem nos rodeia. Uma escrita que nos lembra a vida. E por isso uma escrita que me agarrou, que me prendeu. Uma escrita que me pede que vá à procura de mais obras desta autora J


NOTA – 8/10

Os Peixes da Amargura, de Fernando Aramburu

Quinta-feira, 30 de janeiro de 2014




Sinopse
Para lidar com o transtorno de uma filha hospitalizada e inválida, um pai atém-se às suas rotinas e passatempos, como cuidar dos peixes no seu aquário; um casamento acaba em enfado, ante o instigar dos fanáticos contra o vizinho, à espera que este se mude; um homem faz o possível para evitar que o ignorem e vive aterrorizado porque todos lhe voltam as costas; uma mulher decide partir com os filhos, sem perceber porque a acusam.
Em jeito de crónica ou reportagem, de testemunhos na primeira pessoa, de cartas ou relatos contados aos filhos, Os Peixes da Amargura reúne fragmentos de vidas nas quais, sem dramatismo aparente, só emerge a emoção - simultaneamente uma homenagem ou denúncia - de forma indireta ou inesperada, a que seja mais eficaz. 
Num estilo ilusoriamente simples, Os Peixes da Amargura transporta-nos para um quotidiano inquietante, onde o prosaico convive com o arrepiante, tendo por pano de fundo um País Basco e a sombra tenebrosa da ETA. 
Pela variedade e originalidade dos narradores e abordagens, a riqueza dos personagens e as suas diferentes experiências, Aramburu transforma uma imagem inesquecível dos anos de chumbo e sangue num romance de tremendo impacto.

Opinião
Numa das habituais conversas “literárias” com “a minha” Nancy confidenciei-lhe que estava deslumbrada com as descobertas que vinha fazendo da literatura castelhana e que muitas delas se deviam às páginas oficiais de editoras, bem como a outras a que estou associada em redes sociais. Mencionei ainda que, numa das últimas deambulações pela página da Alfaguara espanhola, “havia tropeçado” em livros de um autor basco e que os mesmos me haviam espicaçado a vontade de ler, pela primeira vez, algo escrito por um basco. Aqui, a Nancy disse-me o que estou sempre ansiosa por ouvir – que tinha uma obra de um autor dessa região autónoma, uma coletânea de contos, que abordava “um quotidiano inquietante, onde o prosaico convive com o arrepiante, tendo por pano de fundo um País Basco e a sombra tenebrosa da ETA”. É óbvio que fiquei de imediato em pulgas!!! Como poderia não ficar?...
Não sou grande admiradora de contos. Penso sempre que são como dar um docinho a uma criança e tirá-lo a meio, quando se está a lamber a boca, a saborear a doçura e já a salivar de prazer J Mas tenho que confessar que todos os contos de Os Peixes da Amargura conseguiram, apesar do seu título “amargo”, deixar-me um sabor pleno e muito aprazível na alma. Porque transmitem-nos emoções, convidam-nos a entrar na vida quotidiana da gente basca, de homens e mulheres que conviveram e convivem de perto com a luta fratricida por um objetivo, pelo nacionalismo e independência de uma região que se sente sufocada pelo poder central.
A obra é composta por dez contos e, no seu conjunto, através de uma linguagem simples, que não cai na lamechice, mas que nos comove e nos faz experimentar sentimentos distintos, agarrou-me, cativou-me e deixou-me com vontade não só de relê-lo muito brevemente como de adquirir a sua versão traduzida para português J!

1.   “Os Peixes da Amargura” – o conto que abre a obra é também aquele que lhe dá o nome. Debruça-se sobre uma família cuja filha foi uma vítima inocente de um ataque bombista. Todos os seus parágrafos acabam intencionalmente com a palavra “triste”. Porque esse é o sentimento que nos domina ao lê-lo…

2.   “Mães” – a dor de uma mãe que perde o filho, morto por um guarda civil, em contraste gritante com a dor de uma mulher e mãe de outro guarda civil que, como represália, é barbaramente assassinado. “… uma mistura de desânimo e de compaixão ao ver que existem pessoas convencidas de que, para criar o país dos seus sonhos, têm de causar forçosamente dor ao próximo.” (pág. 45)

3.   “Maritxu” – uma mãe viúva. Um filho “gudari” (soldado da causa basca) preso por ter estado envolvido num ataque bombista. Uma mãe que faz visitas assíduas à prisão, mas que se sente dividida – “Que matem guardas e bufos, vá lá. Mas crianças, não”. (pág. 57)

4.   “O melhor eram os pássaros” – um dos meus favoritos. Relato doloroso de uma mulher, que está prestes a ser mãe e que se dirige a esse filho ainda por nascer, para contar-lhe como foi o dia em que perdeu para sempre o seu pai. “Tiraram-vos o avô, filho. Tiraram-vos um dia numa terra distante, vai fazer vinte anos”. (pág. 72) “Roubaram-me o pai, mas sou eu quem decide a lembrança que guardo dele” (pág. 77)

5.   “A colcha queimada” – a noite de um casal de meia-idade é de novo abalada pelo ataque a um vizinho vereador, o qual desencadeia uma desavença mais num matrimónio já desgastado pela vida em comum.

6.   “Relatório de Creta” – o meu conto favorito. O poder do verdadeiro amor que tudo consegue, até mesmo “curar” um filho, já adulto, que presenciou o assassinato do seu “aitá”, do seu pai. “À noite, depois do beijo de despedida, perguntei-lhe se queria que lhes trouxesse alguma coisa de San Sebastián. «Traz-me o meu pai.»” (pág. 121)

7.   “O inimigo do povo” – Como um rumor, um mal-entendido, algo que apenas presenciámos pode desencadear uma onda de ódio e de desprezo por alguém até aí nosso amigo, compincha habitual de tardes passados num bar. “… da próxima vez há de ser pior, amigos asquerosos dos fascistas, não vamos parar de malhar até se porem ao piro.” (pág. 145)

8.   “Pancadas na porta” – narração do dia-a-dia de um “gudari” preso numa solitária. É mais uma prova do quanto o estilo e a escrita de Aramburu são inteligentes e sedutores porque conseguem que o leitor até sinta compaixão por um assassino.

9.   “O filho de todos os mortos” – outro dos meus favoritos. Mais um adolescente a quem roubaram o direito de nascer e crescer na companhia do pai. “– Ouve, amá, porque me dás sempre dois beijos e os contas? – Um é meu, o outro de quem nunca te pôde beijar.” (pág. 185). Ao terminar este conto, de novo me questionei – como é possível que alguém que assassina outro seja aclamado e homenageado publicamente como um herói?...

10.        “Depois das chamas” – escrito como um texto dramático, é um exemplo de como se pode fazer comédia através da tragédia.

Resumindo, Aramburu conquistou-me, sem dúvida. A sua escrita é realmente ilusoriamente simples, mas que nos chega ao coração, nos faz derramar algumas lágrimas (eu que o diga), indignar-nos com a crueldade e cegueira de alguns e compadecer-nos com o sofrimento e tristeza de outros. E, não menos importante, ensinou-me algumas palavras de basco, uma das línguas europeias mais difíceis, mas que não importava nada de aprender J

Recomendadíssimo!!! Gracias, Nancy J

O Ano da Seca, de Víctor Álamo de la Rosa

Segunda-feira, 12 de janeiro de 2015




Sinopse
         Uma ilha, um amor adolescente, uma fantasia, um mito e uma seca torturante. A visão mágica da vida de uma comunidade de pescadores nas Ilhas Canárias.
O Ano da Seca decorre na Ilha Menor - retrato da ilha canária de El Hierro -, onde uma seca desesperante greta quer a geografia insular, quer as almas dos seus habitantes: enquanto os vulcões ardem, explodem os sentimentos feridos de personagens debruçadas sobre o abismo das paixões, sobre o segredo profundo dos seus corações exauridos até ao limite.
Romance coral onde cruzam os seus destinos dois amantes demasiado jovens, um visionário que escreve nas paredes, um cão apaixonado até ao tutano, e mesmo a presença fantasmagórica de um bebé morto que ameaça todos os habitantes da ilha... Com uma força expressiva verdadeiramente surpreendente, Víctor Álamo de la Rosa afirma-se como um dos narradores mais singulares da recente literatura espanhola. O inusitado desenvolvimento metafórico e a perícia linguística deste romance salpicam o leitor, inundando-o de sensações. Experiência no limite, leitura inesquecível.

Opinião
O Ano da Seca é uma obra estranha. Ou, como é referido num dos comentários que figura na capa, é uma obra singular.
Tive este romance pela primeira vez nas minhas mãos num local que dificilmente associaria a livros – uma estação de serviço da autoestrada A1. Recordo-me que três coisas me prenderam a atenção e me fizeram de imediato anotar o seu título no meu caderninho (aquele em que aponto os livros que eu, o maridinho e o filhote queremos ler/comprar) – a sua fabulosa capa (tão antónima do conteúdo da obra), a sinopse e, não menos importante, o prefácio escrito pelo meu “Saramaguinho” J
Não é novidade que, desde há uns tempos, me dedico com muito prazer a descobrir a literatura que se faz por terras de “nuestros hermanos”. Considero, no entanto, que a proximidade geográfica que nos une, como povos ibéricos que somos, não tem sido aproveitada no que à literatura diz respeito. As nossas editoras “teimam” em publicar nomes que são e serão, sem dúvida, êxitos de venda e “menosprezam” outros que ocupam lugares cimeiros nos tops de venda espanhóis e internacionais… Compreendo que o fator económico é quem governa a vida (muitas vezes penosa) das editoras, mas, por outro lado, não posso deixar de sentir que nós, os leitores, é que saímos prejudicados, sobretudo aqueles, como o meu maridinho, que não dominam a língua espanhola para poder ler obras maravilhosas, inesquecíveis ainda não traduzidas para português…
Tendo em conta este panorama, Víctor Álamo de la Rosa e o seu Ano da Seca foram uma exceção. Uma exceção talvez ajudada pelo prefácio escrito por José Saramago… Traz-nos, como nos é referido na sinopse, uma narrativa que se desenrola num espaço insular e que nos possibilita fazer um retrato do seu povo, tanto o pesqueiro como aquele que se dedica à agricultura ou outros ofícios que se possam levar a cabo naquele pedaço de rocha vulcânica “perdido” no Oceano Atlântico. Incide sobretudo num ano em que uma terrível seca assolou a ilha e que teve consequências nefastas na vida de todos. Obrigou uns a emigrarem clandestinamente em busca de uma vida melhor, outros a desesperarem por umas gotas de água potável, eles que ironicamente se viam rodeados desse líquido precioso, mas impróprio para matar a sede!...
Além, em direção à última fronteira que flutua no fundo do horizonte marinho, cresce a esperança. Mas aí está a grande troça do mundo, o riso solene de um deus sem piedade chama-se mar, mar oceano. E é água. Não outra coisa. Justamente água, o que também complica, impede a esperança. Toda essa água estendida sobre azul que não se apieda desta terra que a muito custo sobrevive morrendo, lenta.
É a ausência de água o que empurra e é um intransponível, inavegável muro de água o que impede a fuga. É a grande partida de um pequeno deus perverso.” (pág. 24)
O seu capítulo inicial não nos deixa indiferentes, bem pelo contrário. De uma forma crua, relata-nos o culminar de uma relação amorosa de dois adolescentes que iremos conhecer mais aprofundadamente com o evoluir da obra. Mostra-nos igualmente o que, na minha opinião, é uma mistura da mentalidade de uma Espanha insular (e não só) em plena ditadura franquista e o quanto o comportamento humano se transtorna com a influência da natureza, do que esta nos dá e nos tira.
Aquilino e Efigenia são um exemplo perfeito de quanto o amor entre dois adolescentes pode ser poderoso, sexual e, ao mesmo tempo, imaturo e cheio de incertezas e de medos. É com a descrição dos seus encontros (uma descrição bem explícita, que roça o que vai mais além do erotismo ;)) que compreendemos o porquê de José Saramago afirmar, no prefácio, que Víctor de la Rosa “narra com segurança de profissional, avançando pelos difíceis caminhos da identidade erótica da paixão.” O que une esses adolescentes é uma busca desenfreada pelo descobrir do corpo do outro, do seu próprio corpo e dos prazeres que a visão e comunhão de dois corpos podem desencadear na vida dos dois.
Essa busca é realmente narrada com segurança e profissionalismo, mas considero que o autor “desleixou” a dita segurança e profissionalismo em um determinado momento em que cai no exagero e “mancha” o que até aí era uma narrativa de amores eróticos muito aceitável e fidedigna. Refiro a um episódio em que o casal deixa de ser constituído apenas por seres humanos e permite a entrada de um animal. Dispensável, no meu ponto de vista. Completamente dispensável.
No princípio desta opinião disse que este romance é singular, estranho.  É-o porque se, por um lado, está pontuadíssimo de passagens muito bonitas, que nos dão a perceber que o autor é dono de um estilo intenso, lírico, que nos toca e cativa, por outro, possui ou momentos menos felizes (como o que já mencionei), que fazem com que o fio condutor da história se estique e se parta ou, contraditoriamente, partes que nos fazem questionar, que nos fazem sentir que falta algo, que a continuidade se quebra, que fica algo por explicar… Não sei se entendem o que quero afirmar com esta última parte, mas… houve momentos de estranheza que me acompanharam ao longo da leitura, mas que, felizmente, foram contrabalançados por outros de empatia e dedicação.
Seria impossível terminar esta opinião sem fazer referência ao delicioso prefácio de autoria de José Saramago e em particular a um parágrafo com o qual me identifiquei a cem por cento:
Apesar de tudo, os escritores ajudam, acompanham, e é até possível que transformem algum leitor que tenha decidido acolher-se à leitura para fazer dela um ato de amor, um exercício de comunicação entre duas pessoas reais, autor e leitor unidos no objeto tangível que é o livro, na vontade criadora que é a prática da leitura.” (José Saramago)
É de deixar-nos sem palavras…


NOTA – 6/10

Cinco quartos de laranja, de Joanne Harris

Quarta-feira, 07 de janeiro de 2015




RELEITURA

Sinopse
Framboise regressa à pequena cidade onde nasceu, na província francesa, e abre aí um restaurante que rapidamente se torna famoso, graças às receitas de um velho caderno que pertencera à sua mãe. Essa espécie de diário contém igualmente uns estranhos apontamentos cuja decifração lançará uma nova luz sobre os dramáticos acontecimentos que marcaram a infância da protagonista nos dias já longínquos da ocupação nazi. Framboise recorda os sabores e os sentimentos da sua infância, numa França marcada pela dor e pela penúria da guerra, e muito especialmente um episódio que marcou a vida da família e constitui, para ela, a perda definitiva da inocência. Agora, já no Outono da vida, chegou a hora de enfrentar a difícil verdade.

Opinião
Primeira leitura do novo ano. Ou melhor, primeira releitura do novo ano. E de uma autora que me é muito querida – Joanne Harris.
Cinco quartos de laranja é talvez a minha obra preferida desta autora. Não consigo explicar muito bem porquê, já que possui os mesmos ingredientes de tantas outras, como o famosíssimo Chocolate e correspondentes volumes da trilogia homónima ou mesmo A Praia Roubada – uma protagonista que foge de um passado conturbado, que se “refugia” na cozinha, na magia, conforto e prazer que retira da confeção de receitas passadas de geração em geração e que demonstra em tudo o que faz que está disposta a lutar contra o mundo, se tal for necessário. Framboise Dartigen é realmente o reflexo de tudo isto e, na minha opinião, de muito mais. É uma personagem complexa, sofredora, dorida, enraivecida, torturada por um passado carregado de lembranças pungentes e que condicionaram a sua vida até ao momento presente. E é uma personagem a quem, de imediato, estendi a mão. Para, mesmo perante a sua esquivez e olhar desconfiado, mostrar compreensão, solidariedade. Empatia.
Cinco quartos de laranja está dividido em cinco partes e os seus capítulos fazem-nos viajar do passado para o presente e vice-versa. Apresentam-nos, através de Framboise (protagonista e narradora), a família Dartigen, composta pela mãe Mirabelle e pelos seus três filhos – Cassis, o mais velho, Reine-Claude e Framboise, a mais nova. Nos dias da ocupação nazi, vivem numa quinta situada junto às margens do rio Loire e perto da aldeia de Les Laveuses. O pai Yannick havia sido morto pelos alemães na frente da guerra e a sua morte ditou uma transformação na vida da sua família, pois fez desaparecer o elemento pacificador, aquele que ainda ia conseguindo aplacar os ataques de fúria e desespero de Mirabelle.
Desde o início da obra somos confrontados com uma imagem que não deixa dúvidas – o ambiente vivido na quinta Dartigen é tenso, carregado de fúrias acumuladas, de medos, de silêncios cortados por ordens, ameaças e de sentimentos de desprezo, ódio, insegurança, … Contudo, tudo isto é contrabalançado pelos aromas e sabores deliciosos da comida que, com tanto amor, a seca, distante, fria e rígida Mirabelle confeciona para os seus e para vender no mercado das aldeias próximas. A sua cozinha está assim povoada de duas realidades opostas – por um lado, o aconchego que emana do fogão sempre aceso e da comida aí feita e, por outro, uma mesa onde se sentam uma adulta e três crianças que se agridem com palavras, com olhares, com gestos, que só sabem lidar dessa forma entre eles…
Perante o ambiente sufocante que vivem dentro das quatros paredes, as crianças procuram refúgio fora delas. E é o rio Loire que lhes providencia esse refúgio. É nas suas margens que Cassis, Reine e sobretudo Framboise passam o seu tempo livre, mergulhando, saltando dos ramos mais altos, pescando e criando jogos em que se desafiam e desafiam constantemente a força e os elementos mais traiçoeiros do rio. Será igualmente junto do Loire que a nossa protagonista viverá os melhores e os piores momentos da sua infância, aqueles que moldarão o seu carácter e marcarão definitivamente a perda da sua inocência… Aqueles que talvez tenham feito com que Framboise nunca mais se tenha dirigido ao rio desde que regressou, já com mais de sessenta anos, à sua aldeia natal, à sua casa, à sua quinta…
         Voltando ao que referi no início desta opinião, o que determinou a minha vontade de reler Cinco quartos de laranja foi a certeza de que uma sua segunda leitura não me defraudaria. E realmente não me defraudou. Tornei a estender a mão a Framboise; a estar a seu lado; a saborear a liberdade proporcionada pelo rio Loire; a maquinar com ela todos os estratagemas para que essa liberdade não lhe fosse tirada; a dar-lhe força e determinação para confrontar os irmãos e principalmente a mãe; a comungar com a sua desesperada busca por migalhas de amor, de atenção, de confiança, de afeto; a ampará-la nas descobertas que o presente e a herança da mãe lhe ofereceram para encerrar, de uma vez por todas, as portas do passado e, mais do que tudo, estendi-lhe a mão e sorri de contentamento por compreender que Framboise deixou de resistir (“Resistir é como nadar contra a corrente, é cansativo e inútil”) e deixou-se abrir os braços à esperança, aos dias vindouros, ao que aquele que penso que simboliza o quinto quarto de laranja lhe poderá trazer de sabor e deleite à sua vida J

         Por tudo isto, só posso concluir dizendo que vale a pena embrenharem-se na leitura deste saboroso livro, que, tal como as laranjas, nos mostra que a vida pode ter momentos ácidos, mas que estes sempre se misturarão e serão suplantados pela doçura do que nos faz feliz!

NOTA - 9/10

Coração tão Branco, de Javier Marías

Domingo, 12 de janeiro de 2014



Sinopse
Durante um almoço de família, Teresa, acabada de regressar de lua-de-mel, vai à casa de banho, olha-se ao espelho, desabotoa a blusa e mata-se com um tiro no coração. Muitos anos depois, este segredo continua a fascinar Juan, cujo pai foi casado com Teresa antes de casar com a sua mãe. Jovem e recém-casado, e ainda pouco adaptado à mudança de estado civil, Juan procura descobrir o motivo por trás do suicídio de Teresa. Só uma pessoa sabe porque Teresa o fez e guardou para si esse segredo obscuro durante muitos anos. À medida que procura saber mais, Juan sentirá um mal-estar crescente, uma sensação de «desastre iminente» em relação ao seu próprio casamento. A chave desse mal-estar, porém, pode estar no passado, uma vez que o pai haveria de se casar três vezes antes de ele poder nascer… Um romance hipnótico sobre o segredo, o dito e o não-dito, o casamento, a suspeita e a tentação. Uma história de corações brancos, que se vão tingindo e acabam por ser o que nunca quiseram ser.

Opinião
Este é o segundo livro de Javier Marías que leio e cada vez estou mais empolgada com este escritor castelhano!!! Tal como Os Enamoramentos, Coração tão Branco é um livro que nos prende a atenção desde o seu início – a tragédia que ocorre no seio da família do protagonista ainda este não era nascido possui todos os ingredientes para cativar-nos, para deixar-nos em polvorosa porque queremos saber o que esteve por detrás do suicídio de alguém recém-casado e supostamente feliz. Contudo, tenho que confessar que, por muito intrigante e emocionante que seja o início da obra, o que mais me arrebatou foi o que caracteriza o estilo deste fantástico autor, a estrutura complexa da obra, com um desfiar, do princípio ao fim, dos pensamentos do narrador sobre variadíssimos assuntos – casamento, relações humanas, segredos, suspeitas, o poder das palavras. Enfim, é um romance (como o é Os Enamoramentos e espero que sejam as outras obras do autor que ainda tenho que descobrir J) denso, intricado, onde o pensamento e a divagação se sobrepõem à ação, mas sem a prejudicar. Um romance que me estimula, que puxa por mim, que me faz crescer enquanto leitora e enquanto pessoa!
Tal como referi antes, o capítulo inicial reporta-se a um acontecimento trágico na família do narrador e que sempre o deixou intrigado, sobretudo porque envolveu diretamente o seu pai, que era o marido de Teresa, a mulher que se matou com um tiro no coração. A reconstrução dos factos através de testemunhos fará assim parte do desenvolvimento da narrativa, bem como a descrição dos primeiros tempos de outro casamento, do casamento do protagonista que parte com a sua mulher, Luisa, em viagem de lua-de-mel para La Habana. Será principalmente aí, na ilha cubana, que penetraremos no íntimo do nosso narrador/protagonista e desfrutaremos dos seus pensamentos e divagações sobre, por exemplo, o casamento, sobre o que se segue na vida de alguém casado, de alguém que poderá dessa forma perder a sua individualidade e/ou começar a ver a vida de outro prisma, do prisma de quem já não será uno, mas sim a metade de uma parte… Compreenderemos igualmente o quanto o casamento pode ser uma prisão, um grilhão que nos torna escravos, com tal uma falta de liberdade que poderá motivar alguém a cometer um crime…
O matrimónio do narrador servirá ainda como o exemplo perfeito do comportamento que cada um dos seus componentes toma. Amando profundamente o outro, temos consciência da plena importância do que partilhamos, do que dizemos, do que fazemos, mas também do que calamos, do que escondemos, do que esquecemos, do que fazemos por ignorar e para manipular, consciente ou inconscientemente, quem está ao nosso lado e prometemos amor, fidelidade e sinceridade.
Sendo assim, quando, no final da leitura, descobri o que na verdade provocou o suicídio de Teresa, senti que o propósito desta obra magistral de Marías não foi essa descoberta, que a mesma foi apenas algo mais que se adicionou ao que considero a essência de Coração tão Branco – entrar na nossa alma, perturbar (de forma positiva) a nossa forma de pensar, de ver as coisas, fazer-nos refletir e compreender o quão complexo é o comportamento do ser humano.
Concluo afirmando que, sem dúvida, as obras de Javier Marías me conquistaram por completo e que anseio, que QUERO ler os seus outros romances, os já publicados e os que sei que irá publicar!

Não resisto a deixar aqui algumas passagens que ilustram na perfeição a densidade e riqueza da prosa de Marías:
“(…) pensar no futuro, que é um dos maiores prazeres concebíveis para qualquer pessoa, se não mesmo a salvação diária de todos nós: pensar vagamente, errar com o pensamento direcionado para o que há de vir ou poderá vir, perguntarmo-nos sem excessiva precisão ou interesse o que será de nós já amanhã ou daqui a cinco anos, por aquilo que não prevemos.” (pág. 22)

Assim dorme (…) a maioria dos casais e namorados, os dois voltam-se para o mesmo lado quando se dão as boas-noites, de modo que um passa a noite inteira de costas voltadas para o outro e sabe que está amparado por ele ou por ela, por esse outro, e, a meio da noite, ao acordar sobressaltado por um pesadelo ou sentindo-se incapaz de conciliar o sono (…) basta-lhe dar meia-volta e ver então, à sua frente, o rosto daquele que o resguarda, que se deixará beijar em tudo o que no rosto for beijável (…)” (pág. 88)

A língua ao ouvido é também o beijo que melhor convence a quem se mostra avesso a ser beijado, às vezes não são os olhos, nem os dedos, nem os lábios a vencer a resistência, mas apenas a língua que indaga e desarma, a que sussurra e beija, a que quase obriga.” (pág. 90)