Ficha técnica
Título – Obrigada pelo lume
Autor – Mario
Benedetti
Editora – Cavalo de
ferro
Páginas – 225
Datas de leitura – de 04
a 10 de julho de 2016
Opinião
Num
dia em que os valores patrióticos estão ao rubro e que o orgulho de uma nação
nos une, desfolhei a última página de mais uma brilhante obra do meu amado
Mario Benedetti.
Obrigada pelo lume é a quarta obra que saboreio de um
dos meus escritores favoritos, mas, ao contrário das restantes, é aquela que
mais nos aproxima do povo uruguaio e da visão negativista que partilhamos dos
nossos países e do que nos define.
A
ação desenrola-se nos meados do século XX e, mais uma vez, mergulhamos numa narrativa
profundamente emocional, onde o narrador dá primazia a monólogos de um
protagonista que, aos 44 anos, é um homem desencantado com a vida, com os
outros, com um pai que odeia e sobretudo consigo próprio. Ao longo das 225
páginas que compõem o romance, vamos seguindo os passos de Ramón Budiño, calcorreando
as ruas, praças e outros espaços de Montevideu e penetrando na alma, história e
visão de um povo e país que tantas semelhanças possuem connosco.
No
arranque da obra, juntámo-nos ao protagonista e a um punhado de uruguaios.
Encontram-se expatriados (a maioria momentaneamente) em terras do Tio Sam e o
discurso que saltita entre os convivas recorda muito o menosprezo e o
sentimento de inferioridade que o portuguesinho sente face a si mesmo, aos seus
e aos outros.
“Eu não deveria vir aos Estados Unidos,
porque cada vez que cá venho fico com febre. A pensar no Uruguai, sabes, a
pensar no quão limitados somos. Aqui tudo é grande e tudo se faz em grande.
(…)
“Nós temos uma
filosofia de Tango (…) A querida, a esposa, o mate, o futebol, a aguardente de
cana, o velho bairro Sul, muito sentimentalismo. E assim não se vai a nenhum
lado. Somos brandos, percebes?”
(pág. 17)
Fecho
os olhos e de imediato sou bombardeada com comentários equivalentes a estes que
apenas são camuflados em momentos como os que vivemos hoje, dia 10 de julho,
pelo menos até ao final da noite. Tanto somos bestiais como, num ápice, retrocedemos
e transformámo-nos em bestas. Talvez ainda não nos tenhamos cumprido apenas por
isso mesmo – porque o queixume, o lamento, a depreciação são parte integrante
de nós, porque nunca nada nos parece perfeito e principalmente porque pouco ou
nada fazemos para reverter a situação…
A
imagem que retive do Uruguai de Benedetti aproxima-se assim perigosamente da
que caracteriza o nosso país à beira-mar plantado. Como tal, experimentei
sentimentos contraditórios – solidariedade, compaixão e desalento… Contudo, Obrigada pelo lume não se resume
apenas a um retrato do país natal do autor e dos seus conterrâneos como povo e
parceiros na construção da sua História e identidade. É isso e muito mais.
Tal
como aconteceu com a leitura de A trégua, Primavera con una esquina rota e La borra del café, voltei a maravilhar-me com a arte e mestria com que Benedetti
aborda e se adentra na alma e no íntimo das personagens. É sublimemente poética
e inspiradora a forma como nos ligamos a Ramón, a personagem mais destacada e
como vamos relembrando, perspetivando e questionando os nossos pensamentos,
atos e sonhos perante aquilo que vamos lendo. Neste caso, estamos perante uma
personagem desencantada, que odeia quase visceralmente o seu Velho, bem como
tudo o que ele representa na sua vida presente, as amarras sanguíneas que os
unem, a sua própria cobardia para quebrá-las e a obsessão que o preenche e que
o acorrenta, não permitindo que viva uma existência em pleno.
Ramón
é assim sinónimo de um presente estagnado, de alguém que anseia quebrar as amarras
que o prendem a um Velho que representa talvez um passado repressivo,
desprezível e autoritário. É igualmente a imagem de um homem que se acomodou a
uma vida rotineira, a um casamento entorpecido, sem chama nem ânimo, a uma
relação fria e distante com o irmão mais novo e inclusive com o filho e a
desejar abrigar-se no olhar e nos braços da cunhada. É por fim a representação
de um homem que tem a noção de que apenas alcançará a sua liberdade, a sua
totalidade, buscando valentia para aniquilar quem sabe aquele que é o seu maior inimigo.
Com
esta obra regressei ao mundo de Benedetti que tanto venero. Foi um regresso
pintado com cores distintas, ou seja, mergulhei numa história povoada de cores
mais cinzentas, mais escuras, onde impera o lado mais negativo, a tristeza, a
frustração, a revolta, a cobardia e principalmente o asco por si mesmo.
Contudo, a ternura, a doçura, a inocência e a nostalgia por algo que não volta,
a magia de raros momentos de fusão entre dois seres que preferem quebrar as
regras a vacilar, hesitar e a questionar vão entrelaçando-se com todo esse
cinzentismo e desalento e vai permitindo que reencontremos aquele que considero
ser o verdadeiro Mario Benedetti, alguém que nunca se vergou perante as
adversidade e que adoçou e elevou a literatura sul-americana a patamares
sublimes.
Mario
Benedetti deve ser lido por todos que adoram penetrar nos meandros que compõem
a vida humana e Obrigada pelo lume (reeditada pela Cavalo de Ferro, que também
publicou A trégua e recentemente A borra do café) é uma boa porta para o mundo
deste fantástico autor uruguaio. Não deixem de o conhecer!
NOTA
– 09/10
Sinopse
Ramón Budiño viveu
toda a sua vida à sombra do pai, Edmundo, homem poderoso e autoritário, que ele
odeia e deseja ver morto. «Eliminar o velho» talvez seja mesmo a maior obsessão
da medíocre vida de Ramón. A sua história, marcada por um vaivém entre o presente
e o passado, por um questionar sobre tudo o que o rodeia, a pátria, a
revolução, o amor, o sexo, o seu lugar na sociedade e, sobretudo, pela falta de
coragem para «eliminar o velho» é o espelho de um país que não tolera gestos
dramáticos, e que está mergulhado numa grave crise politica e social sem um fim
à vista.
Mais um texto a aguçar a vontade de conhecer um autor :) Na verdade nunca li nada de M.Benedetti e tenho percebido, pelos teus posts, que ando a perder muito boas experiências de leitura...
ResponderEliminarSofia, eu adoro Benedetti e, por isso, sou suspeita quando digo que deves mesmo lê-lo! A Cavalo de Ferro tem 3 obras publicadas em português e todas valem muito a pena!
EliminarArrisca, não te vais arrepender ;)
Olá Ana,
ResponderEliminarMais uma vez não conhecia este escritor, nem o livro. Mas, mais uma vez, fiquei curiosa. Ainda bem que gostaste.
Uma verdadeira lufada de ar fresco este teu espaço :) continua assim :)
Beijinhos e boas leituras
Obrigada, Isa, és uma querida :)
EliminarBenedetti merece ser lido por todos, pois acho sinceramente que ninguém fica imune aos encantos da sua escrita :)
Arrisca. Aconselho-te vivamente!
Beijinhos e muitas e boas leituras!