Ficha técnica
Título – A casa quieta
Autor – Rodrigo Guedes
de Carvalho
Editora – Publicações
Dom Quixote
Páginas – 264
Datas de releitura – de 22
a 26 de agosto de 2016
RELEITURA
Opinião
Entramos
numa casa quieta. Entramos numa casa quieta pela morte de alguém que amamos.
Alguém que já não pressente a nossa chegada, que já não atravessa o corredor
para perguntar-nos como é que correu o nosso dia, alguém que já não preenche um
vazio permanente.
Vivemos
numa casa quieta. Com divisões a mais. Com quartos habitados apenas por tralha
inútil mas que resistimos em deitar fora e que se encontram sempre com as
portas fechadas. Uma casa onde se ouve o silêncio e os ruídos do exterior – a
chuva a cair, um autocarro que passa. Uma casa que nunca estremeceu com os
gritos, as birras, a balbúrdia e o entusiasmo contagiante das crianças, dos
filhos.
Crescemos
numa casa quieta. Crescemos subjugados pela presença dominadora e autoritária
de um progenitor que governou a sua vida e a dos seus segundo planos, normas e
rotinas meticulosamente traçados.
Almejamos
que, a partir de hoje, a nossa existência seja como uma casa quieta,
silenciosa, muda, que conserve em divisões bem trancadas um passado de
desilusões, de sofrimentos, de medos, de desalentos, de desânimos e que nos
resguarde perante um presente de prostração, desistência, abandono, no qual as
palavras, os diálogos são desnecessários, escusados.
Sou
fã assumida de Rodrigo Guedes de Carvalho e esta é a segunda obra sua que releio
(ver aqui a opinião da releitura de Daqui a nada). Sabia de antemão que iria voltar a encontrar um estilo muito
pessoal, embora com nítidas associações ao estilo antuniano, com uma escrita
que me agrada sobremaneira, íntima, profunda, com características oralizantes,
se assim se pode dizer, e onde o universo interior das personagens se sobrepõe
às suas ações. Para além disso, recordava da primeira leitura um friso
cronológico “ao contrário”, ou seja, lembrava-me que na primeira parte da obra os
capítulos andariam para trás no tempo e que as partes posteriores nos fariam
recuar ainda mais para, no final, voltarmos ao tempo presente – 2005. Recordava
ainda que a morte de um ente querido seria o principal mote da trama.
A
leitura ou releitura de qualquer obra que despolete o meu interesse pede entrega total,
sem redes, sem máscaras. Só assim haverá a ligação, a união plena entre leitora
e obra. Existem quase sempre condicionantes – expectativas, opiniões de outros
leitores, comparações com outras obras – do mesmo autor ou não – timing da leitura, etc. É impossível (ou
praticamente) enveredarmos numa leitura virgens, impolutos. Muitas das vezes
esses condicionantes que referi sentam-se ao meu lado e são espectadores, meros
figurantes. Contudo, noutras destacam-se e dão um salto, transformando-se em
personagens com algum relevo e interferindo com a magia de um momento que deveria
ser único, apenas meu.
Com
A casa quieta, os condicionantes subiram
ao palco mal percorri as primeiras páginas e sob a forma de bloqueios aos
fantasmas, infelizmente muito reais, e que assombram a vida de todos aqueles
que perderam um ente querido na batalha contra o cancro. Subiram ao palco com força
e persistência. Imiscuíram-se subtilmente e não mais abandonaram a cena. O que
deveria ter sido uma releitura emotiva, saborosa apesar do fel agregado aos seus
temas (não apenas essa maldita doença) foi uma leitura regada por alguma
indiferença, por alguma apatia e por algum inconsciente distanciamento.
Hoje,
após se terem passado algumas horas do encerramento da releitura, continuo com
a sensação de que a releitura não presta a devida homenagem à escrita, ao
talento e ao amor que tenho à obra de Rodrigo Guedes de Carvalho. Sinto-me
culpada, obviamente, mas sinto que essa culpa é involuntária, que não fui capaz
de enxotar para um canto longínquo medos, que não desliguei de realidades que
já aconteceram ou que podem acontecer e que nem deixei que inúmeras passagens
de uma beleza indescritível (sublinhadas aquando da primeira leitura) me
embalassem e me conduzissem para onde tanto queria ir com esta releitura – para
aquele cantinho só meu, para onde sempre viajo com o encanto e o sabor dos meus
livros.
Perante
tudo o que referi até agora, recomendo esta obra apenas a quem quiser saborear
uma escrita lindíssima, poética e muito íntima e procurar uma narrativa sem
filtro, repleta de dores, traumas, com personagens complexas e muito humanas,
muito próximas de nós.
Deixo,
por fim, alguns trechos que fui sublinhando, ou melhor, encontrando sublinhadas
da minha primeira leitura:
“É então isto a morte. Abrires os olhos à
espera de uma revelação e esbarrares no nada.” (pág. 15)
“As viagens, pela sua incomparável
probabilidade aberta, eram a sua melhor memória. Mas era sobretudo o seu
significado que a trazia eternamente grata.” (pág. 123)
“…éramos um todo, éramos ainda assim um todo,
que se partiu, caiu ao chão e partiu-se, perto de um banco de jardim, numa
cidade que amamos…” (pág. 147)
“Tu eras. E passo a citar. Uma voz (…) Eras
as luzes acesas. (…) Tu eras. Passo a citar. Nós. Ainda há pouco vi que já não
somos mais. (…) Eras a casa à minha espera. Ainda há pouco cheguei, poisei as
chaves e a minha casa já não é a minha casa ou pelo menos. Já não importa, não
és.” (págs. 256, 257)
NOTA
– 7,5/10
Sinopse
"Quero acreditar que já não estarias em casa
por alturas em que cheguei mas não sei dizer. A verdade é que não te procurei.
Mais uma vez. Penso que fiz as coisas do costume, penso hoje quando penso nisso
que fiz as coisas do costume, terei deixado o sobretudo ao acaso, abri o
frigorífico fechei abri uma outra vez, sem saber bem o que procuro, acontece-me
quase sempre. As coisas do costume. Vagueei sem saber bem, o sobretudo caído
alguém há-de arrumar, tu tratas disso. Do frigorífico abro fecho abro outra vez,
quero pouco, não sei que quero, deixei de beber prometi-te acho que te prometi,
não sei que beba."
Olá Ana,
ResponderEliminarConfesso que desconhecia que este era o segundo livro do Rodrigo Guedes de Carvalho. Já o tinha visto, mas nunca me despertou a atenção.
Fiquei curiosa agora com a tua opinião.
Beijinhos e boas leituras
Olá!
EliminarCronologicamente este foi o segundo livro que Rodrigo Guedes de Carvalho publicou e vale mesmo a pena conhecê-lo. Não é de fácil leitura, por tudo, mas recomendo-o, apesar de esta releitura não ter sido tão frutífera como gostaria.
Beijinhos e boas leituras.
Lembro-me de ter gostado da escrita do Rodrigo Guedes de Carvalho quando o li, há uns 8 anos, mas não sei por que razão nunca mais procurei nada depois deste livro. Há algum que me recomendes dele?
ResponderEliminarPaula
Paula, recomendo-te "Daqui a Nada" (do qual já publiquei a opinião correspondente) e "Mulher em Branco". São muito bons.
EliminarBeijinhos e boas leituras.