Título
– A senda estreita para o norte
profundo
Autor – Richard Flanagan
Editora
– Relógio D’Água
Páginas
– 400
Datas
de leitura – de 28 de outubro a 07 de novembro de 2016
Opinião
“Porque
tinham construído em quinze meses um caminho-de-ferro que os ingleses tinham
declarado impossível construir em cinco vezes esse tempo.” (pág. 350)
Na minha frenética caça por livros
relacionados com a Segunda Guerra Mundial tropecei numa opinião muito suculenta
num dos blogues que vou seguindo – O
imaginário dos livros – e que me abriu os horizontes para o mapa deste
conflito tão horrendo, mas tão fascinante.
É
óbvio de que se tratou de uma guerra mundial (o próprio nome assim o refere),
mas sempre que me debruço sobre a contenda de 39-45 evoco as atrocidades nazis,
a resistência francesa, os bombardeamentos de Londres, a invasão da Polónia que
tudo despoletou e reajo com algum espanto quando algo me recorda que afinal o
conflito foi mesmo mundial e que se alastrou para partes tão longínquas como a
Austrália, a Índia, o Sião (atual Tailândia), a Birmânia (atual Myanmar), a
China e o Japão.
Sei que o bombardeamento de Pearl
Harbour por parte do império japonês foi o que causou a entrada dos Estados
Unidos na guerra, mas confesso que nada sabia sobre o referido império nipónico
nem quais foram as demais movimentações bélicas do país do sol nascente e que
foram interrompidas com os dois atrozes lançamentos de bombas atómicos sobre o
seu território.
Por tudo isto, por querer colmatar a
minha ignorância e porque a opinião que havia lido sobre o livro era
extremamente boa (com direito a atribuição a pontuação máxima), não descansei
enquanto não adquiri A senda estreita
para o norte profundo. Comprei-o em junho, mas a ordem cronológica das
minhas leituras ditou que apenas o lesse agora.
Começo por agradecer à “blogger dona”
de O Imaginário dos livros por
me ter guiado até a uma obra tão poderosa. Richard Flanagan permitiu-me viajar
até lugares recônditos, sair da minha zona de conforto “europeia” e alargar os
meus conhecimentos.
Sei que maravilhar-me com algo tão
bárbaro como uma guerra mundial pode provocar estranheza, mas não posso
evitá-lo. É, como já afirmei variadíssimas vezes, uma atração, misto de
fascínio e repulsa, que me leva a buscar incessantemente mais e mais sobre seis
anos de luta armada como até hoje não mais tivemos. Nesta narrativa acompanhei
protagonistas de nacionalidades distintas daquelas que habitam outras
narrativas que já devorei sobre a referida luta armada. De um lado temos
combatentes australianos que, por obedecerem aos longínquos mandamentos da
coroa britânica, se veem lançados para palcos bélicos distantes e díspares como
o Médio Oriente e as terras pertencentes ao império japonês – terras
pantanosas, húmidas e onde quem mais ordena é a natureza. Do outro encontramos
o exército nipónico cujo único objetivo é obedecer cegamente aos ditames do seu
imperador que pretende construir um caminho-de-ferro entre as terras de Sião e
a Birmânia, em tempo recorde, para que assim fosse possível o envio de
fornecimentos desde o Japão até Banguecoque por mar e de seguida por comboio.
Para levar a cabo algo que sempre havia
sido visto como impossível, mesmo alargando em cinco vezes mais o período de
construção, os japoneses usaram prisioneiros de guerra e trabalho civil. O pai
de Richard Flanagan foi um desses prisioneiros e o autor aproveitou esse
“legado precioso” e escreveu uma obra dividida em quatro partes que nos põe em
contacto com um grupo de soldados australianos que nos faz viver quase em
primeira mão os horrores indescritíveis que outros, não fictícios, sofreram
durante o tempo em que estiveram sob o jugo implacável do império nipónico e foram
obrigados a escavar pedra com ferramentas rudimentares, a transportar bambu,
vigas e outros materiais durante milhas e milhas e a viver debaixo de condições
sub-humanas, numa selva repleta de bichos, de doenças e de monções que
transformavam tudo num monte de lama e putrefação sem fim. A grande parte não
sobreviveu. A grande parte morreu carcomida por doenças ou simplesmente porque
tinha fome. Outros não resistiram às torturas. Outros simplesmente desistiram.
A
senda estreita para o norte profundo não nos oferece uma leitura fácil.
Encolhi-me frequentemente de nojo, arrepiei-me com descrições cruas de
condições de vida inimagináveis. Contudo, as 400 páginas não são apenas sobre a
construção da apelidada Linha da Morte. É igualmente sobre os limites, as
imperfeições, os sonhos e as realidades que nos habitam como seres humanos. Não
é uma obra onde facilmente nos deparamos com pinceladas de felicidade e
optimismo, mas está muito bem escrita, puxa pela reflexão e pela emoção e com
pequenas migalhas leva-nos a compreender o quanto devemos ver o lado bom de
tudo aquilo que à partida parece horrível. Darky Gardiner, um dos soldados
australianos que tenta sobreviver às condições inumanas da construção da Linha,
transmite-nos esse ensinamento – morte de fome, afundado na lama e com um
futuro que nada lhe reserva a não ser dias e dias de fome, dor e tortura,
concede-se sempre alguns minutos para tentar agarrar-se a algo positivo no meio
daquele inferno. Busca esperança onde ela não existe. E vai encontrando réstias
da mesma que lhe permitem acordar num novo dia.
A
senda estreita para o norte profundo é igualmente uma história de
amores. De amores desencontrados, de amores fúteis e superficiais, de amores
arrebatadores, mas impossíveis. É ainda uma narrativa que nos possibilita
conhecer atores dos dois lados da contenda e assim tentar entender o que não é
entendível. É por fim uma narrativa que ilustra o estilo belo, poético e
incongruentemente cru de um autor que merece ser conhecido e lido. Um estilo
que nos presenteia com uma das belas e certeiras definições do que é o amor
entre um homem e uma mulher:
“Mas
um dia ela explicou-me como cada divisão da casa tinha uma nota. Só tínhamos de
a descobrir. Ela pôs-se a cantar trinados de um lado para o outro. E de repente
uma nota chegava até nós, como se irrompesse das paredes e subisse do chão, e
enchia a divisão com a sua ressonância perfeita. (…) Eram duas coisas
completamente diferentes, uma divisão da casa, que se encontravam. E o som
batia… certo. (…) Não acha que é parecido com aquilo que chamamos amor, Mr.
Evans? A nota que nos é devolvida? (…) Que um dia encontramos alguém, e tudo
nos é devolvido sob a forma de uma ressonância estranha? Uma ressonância certa.
Que é bela. (…) era assim que nós éramos. O Jack e eu. (…) eu era aquela
divisão da casa, e ele era a nota de música, e agora foi-se embora. E ficou
tudo em silêncio.” (pág. 332)
Creio que não necessito acrescentar
muito mais. Reitero que é uma leitura dura, amarga, com personagens por quem
devotamos carinho, mas que não se podem considerar heróis ou heroínas, já que
são apenas reflexos da nossa humanidade, das nossas imperfeições, dos nossos
defeitos, das nossas cobardias, dos nossos sonhos muitas vezes não
concretizados e das nossas vidas de múltiplas fachadas… Reitero ainda que é uma
leitura que vale muito a pena.
NOTA – 09/10
Sinopse
Centenas
de milhares de prisioneiros de guerra, entre eles numerosos australianos, são
forçados pelos japoneses a um trabalho escravo nas selvas da Indochina durante
a Segunda Guerra Mundial. O objectivo é construir, num prazo inverosímil e sem
maquinaria adequada, uma via-férrea de 450 quilómetros ligando o Sião à
Birmânia, o que permitiria atacar a Índia. Até à conclusão da linha em 1943,
morreram dezenas de milhares de homens, incluindo um terço dos 22 mil
prisioneiros de guerra australianos. Executores fanáticos das ordens imperiais,
alguns oficiais japoneses chegavam a recitar haikai antes de torturar ou
decapitar os prisioneiros.
É
neste clima de desespero que o cirurgião Dorrigo Evans, prisioneiro neste campo
de guerra japonês na Ferrovia da Morte, se vê assombrado pela relação amorosa
que manteve com a jovem esposa do seu tio dois anos atrás, enquanto tenta
evitar que os homens sob o seu comando morram de fome, de doença, ou sejam
simplesmente espancados.
O
romance de Richard Flanagan aborda as diferentes formas que o amor, a morte, a
guerra e a verdade podem assumir, à medida que um homem envelhece e tem
consciência de tudo o que perdeu.
Não conhecia, Ana.
ResponderEliminarObrigada pela partilha, fiquei com vontade de o descobrir.
Olá, Márcia!
EliminarÉ uma leitura poderosa que vale bem a pena descobrir!
Beijinhos e leituras muito saborosas!
Olá Ana,
ResponderEliminarJá tenho ouvido falar muito no Flanagan, mas confesso que nunca li. Talvez por falta de vontade, pois nunca vi muitas opiniões dele. Pelo menos não como a tua :)
Já está na lista. Ai ai ai que esta lista não pára de aumentar.
Beijinhos e boas leituras
Isa, que bom culparmo-nos mutuamente pelo crescimento das nossas listas. Significa que esta partilha está cada vez melhor ;)
EliminarRichard Flanagan é uma boa aposta, daquelas que não defraudam quem busca por uma leitura complexa e muito forte. Arrisca!
Beijinhos e leituras muito saborosas!
Olá Ana
ResponderEliminarNão conhecia o livro, e acho que nem o autor. Mas fiquei bastante curiosa, parece mesmo que vale a pena ler.
Beijinhos e boas leituras
Olá, Sara!
EliminarVale mesmo a pena, é dura, mas muito boa! Espero que lhe dês uma oportunidade.
Beijinhos e leituras muito saborosas.
Olá,
ResponderEliminarDeparei-me com o seu blog e senti-me movido a fazer um comentário. Eu também li A Senda Estreita para o Norte Profundo e achei-o, sem qualquer dúvida, um dos melhores livros que alguma vez li. Embora seja sem dúvida um livro que foi difícil para ler às vezes, é, para mim, um dos raros livros que deixa o leitor num estado de reflexão e pensamento há muito tempo depois de o ter lido. Uma obra-prima. Como um australiano, permitiu-me combinar as minhas paixões da leitura e da aprendizagem da língua portuguesa e até podia identificar-me com muitos dos lugares e dos traços australianos descritos no livro. Ainda agora, o livro comove-me quando penso nisso. Merece uma nota de 9/10, embora eu fosse té-lo dado uma nota de 10.
Atenciosamente,
Ralph
Ralph, muito e muito obrigada pelo comentário!
EliminarNeste momento, o blogue está completamente parado, porque "migrei" para o Booktube e não consigo conciliar os dois espaços, com muita pena minha!
Este livro é mesmo maravilhoso e só tenho pena que pouca gente o conheça... Traz-nos tanto para reflectir... Aliás, lendo o seu comentário, apeteceu-me relê-lo!
Um beijinho muito grande e obrigada, mais uma vez!