Ficha técnica
Título
– Se o passado não tivesse asas
Autor
– Pepetela
Editora
– Publicações Dom Quixote
Páginas
– 372
Datas
de leitura – de 16 a 23 de novembro de 2016
Opinião
A escrita de Pepetela evoca
serenidade, suavidade, minutos passados em contemplação. Se o passado não tivesse asas é apenas a segunda obra que
leio deste autor angolano, mas tal como havia acontecido com O tímido e as
mulheres voltei a embalar com a cadência melódica e algo monocórdica de
mais uma história centrada em Luanda.
A narrativa salta no tempo entre duas
protagonistas carismáticas e determinadas – Himba é uma menina que vê a sua
vida sofrer uma mudança drástica quando a sua família é vítima de um ataque de
guerrilhas do qual ela é a única sobrevivente. Consegue, com a ajuda de
soldados, terminar a viagem que o seu pai havia planeado para fugirem à guerra
e chega à capital do país apenas com a roupa que traz vestida e na bagagem um
instinto de sobrevivência que a levará a bater a algumas portas que se lhe
fecham na cara e a embrulhar-se de coragem para enfrentar uma nova vida, uma
vida de rua, de fome, de frio e de dor. Dezassete anos mais tarde, travamos
conhecimento com Sofia, uma mulher em plena ascensão económica, cujos dias são
passados de casa para o restaurante do qual é sócia. Das restantes facetas da
sua existência quase nada sabemos, apenas que nutre uma afeição muito forte
pelo seu irmão mais novo, com quem ainda vive.
À medida que me fui adentrando na
narrativa senti que estava a penetrar territórios e acontecimentos desconhecidos
e ao mesmo tempo que estava a voltar a uma casa em que já havia sido muito bem
recebida. Embalei-me então nesse ambiente familiar e durante uma semana
deambulei com Himba pelas praias e outras zonas da ilha de Luanda, condoí-me do
sofrimento pelo qual nenhuma criança deve passar, comprovei, uma vez mais, o
quanto Angola é um país de contraste, de riquezas que escorrem dos bolsos de
uns e nunca alcançam os bolsos de outros e aqueci estes últimos dias de
temperaturas geladas com personagens verdadeiramente bondosas como “a senhora
boa das trancinhas”.
Foi assim uma leitura quentinha,
serena, sem muitos sobressaltos, com uma realidade dura, dorida, mas que chega
até nós pela mão de um autor que sabe manejá-la, filtrá-la através de um estilo
raiado de uma crueza suave e ao mesmo tempo assertiva. Foi um regresso saboroso
ao mundo de Pepetela, com personagens cativantes, que vão crescendo e
amadurecendo ao longo da narrativa, moldadas pelo contexto em que vão vivendo.
Gostei particularmente de Himba enquanto criança, da sua introspeção, da sua
precocidade e encantei-me com Kassule, com a sua determinação, a sua ligeireza
e a sua integridade nunca beliscada por todas as convulsões que assolaram a sua
vida.
Resumindo, Se o passado não tivesse asas não desiludiu. Tão-pouco
deslumbrou, mas fez-me recordar outras histórias, como a de Capitães de Areia, de Jorge
Amado, e aqueceu os meus momentos de leitura com os ares quentes e tumultuosos
do dia-a-dia recente de um país que ainda está a tentar afirmar-se e a tentar
encontrar o seu lugar numa amálgama de riquezas incalculáveis e consequentes
lutas corruptas e desiguais.
Gostei.
NOTA – 08/10
Sinopse
A terrível luta diária pela
sobrevivência dos meninos de rua, em plena guerra, contrasta com a fartura
desmesurada dos jovens da nova burguesia de Luanda.
Himba, treze anos acabados de fazer,
perde-se do resto da família, vendo-se de repente sozinha no mundo. Sem outros
meios que não sejam a sua inteligência, consegue chegar a Lunda, onde conhece
Kassule, um menino de dez anos que perdeu uma perna devido a estilhaços de uma
mina. Ambos órfãos vítimas da guerra, dependendo do lixo dos restaurantes,
unem-se para conseguirem subsistir, lutando pela sobrevivência dia a dia.
Sofia, que há muito aguarda uma
oportunidade para mudar de vida, aceita gerir um restaurante, onde também dá
conselhos sobre temperos. À medida que o restaurante vai ganhando clientes da
classe alta de Luanda, também a ambição de Sofia vai sendo alimentada. E está
disposta a agarrar todas as oportunidades que lhe garantam uma vida melhor, a ela
e ao irmão Diego, um artista de rua que sonha expor em galerias.
Se
o Passado não Tivesse Asas
cruza duas histórias, duas grandes personagens femininas, numa narrativa
original com um desfecho imprevisível, que retrata os últimos vinte anos da
história de Angola.
Olá Ana,
ResponderEliminarGosto muito do Pepetela e da sua escrita. Este não conhecia.
Gostei muito da tua opinião, como sempre :) faz-me sempre querer ler mais :)
Beijinhos e boas leituras
P.S.: e estou MUITO curiosa com o livro que estás a ler ;)
Olá, Isa!
EliminarObrigada pelas tuas palavras elogiosas! Pepetela lê-se muito bem e não te arrependerás se deres uma oportunidade a esta obra!
Quanto à que estou a ler agora, posso adiantar que é daquelas leituras, daquelas que exigem tudo de nós e que nos compensa, e muito, essa exigência!
Beijinhos e leituras saborosas!
Oh, Ana, do que tu me foste lembrar, os Capitães de Areia... Tinha-o bem recalcado nas minhas boas memórias de adolescente! Tenho de o reler um dia.
ResponderEliminarPaula
Oh, Paula, sentiste o mesmo que eu então - essa nostalgia boa que nos obriga a querer reler os Capitães um dia destes!
EliminarA ver qual de nós faz mais cedo a vontade a essa nostalgia!
Beijinhos e leituras saborosas!
Tu não me desafies, que eu vou já procurar o livro!
EliminarBrincadeirinha, que agora estou com outro desafio teu, a Lua de Joana, e os dias passam a correr, como sempre.
Beijinhos
Paula
A correria é mesmo inimiga de muita coisa boa, como a leitura!
EliminarEspero que gostes da Lua de Joana e que desfrutes da sua leitura.
Quanto aos Capitães eles estarão sempre à nossa espera, não te preocupes!
Beijinhos e bom resto de semana mais curtinha!
Boa noite desde o Brasil. Achei bem lembrado o livro Capitães da Areia, que era um dos primeiros romances que li em português, junto com o Mayombe de Pepetela. Se não me engano, já li todos os romances de Pepetela, 22 em total, e muita da obra de Jorge Amado, também. Se o Passado não Tivesse Asas não decepciona -- e não deixa de surpreender. Agora começa a esperar até o próximo romance deste autor que me encanta desde que conheci há quase trinta anos.
ResponderEliminarOlá, Bill, seja bem-vindo!
EliminarPepetela e Jorge Amado são dois excelentes exemplos do quanto se escreve bem em português e do quanto esta língua une os mais variados "cantinhos" do mundo.
É maravilhoso lê-los ou relê-los - sabemos que, seja uma obra nova ou uma que já habita a estante há algum tempo, marcará a nossa vida de uma forma ou de outra.
É só dar-lhe uma oportunidade como darei, sem dúvida, a Capitães de Areia para que me encante de novo.
Beijinhos e volte sempre!