Ficha
técnica
Título
– O outro pé da sereia
Autor
– Mia Couto
Editora
– Editorial Caminho
Páginas
– 454
Datas
de leitura – de 10 a 17 de dezembro de 2016
Opinião
É com alguma desilusão que digo que
este livro de Mia Couto não me agarrou.
Comprei-o numa promoção numa ida aos
supermercados Continente porque me senti imediatamente atraída pela citação que
ilustra a contracapa e porque Mia Couto é Mia Couto, ou seja, um daqueles
autores que por si só é sinónimo de mestria, de encantamento e de um estilo
original, que nos aquece com passagens deliciosamente certeiras como estas:
“A
viagem não começa quando se percorrem distâncias, mas quando se atravessam as
nossas fronteiras interiores.” (pág. 87)
“ (…) as pessoas é que abrigam a casa, a ternura é que sustenta o teto.”
(pág. 93)
“E
confessou que, às vezes, ela ir para ali sentar-se só para reviver os tempos em
a família se arredondava, no grávido círculo da felicidade.” (pág. 101)
“A
saudade é uma tatuagem na alma: só nos livramos dela perdendo um pedaço de nós.”
(pág. 262)
Entrei na leitura da obra às escuras,
sem saber nada sobre o que trataria a sua narrativa. Apenas tinha detetado que esta
deveria estar repartida, já que o tipo de letra dos capítulos variava de vez em
quando. Ao consultar o índice confirmei que a maior parte da história se
passaria no ano 2002 e que ocasionalmente retrocederíamos no tempo (quase cinco
séculos) e que passaríamos por Goa e por territórios africanos da costa leste
do continente homónimo.
À medida que fui desbravando a obra
fui sentindo uma mistura de sensações e sentimentos – depressa compreendi que a
divisão temporal que a atravessa tem a sua razão de ser no quanto o
colonialismo moldou a essência do continente e das gentes de África, no quanto
o mesmo despoleta nos colonizadores e nos colonizados uma amálgama de emoções,
reações e vontades e no quanto no seio dos autóctones corre a ideia de que o
peso do passado é apenas isso, um peso e que, como tal, incomoda e cansa:
“– Irrita-me,
senhor Benjamim, esse discurso da afirmação dos negros.
– Irrita-o porquê?
– O que diria você se encontrasse uns brancos
proclamando o orgulho de serem brancos: não diria que eram nazis, racistas?
–
Não pode comparar, meu amigo. São percursos diferentes…
–
Ora, diferente, diferentes… Por que somos tão complacentes connosco próprios?
–
A verdade é só uma, afirmou Benjamim, nós, os negros, temos que nos unir…
–
É o contrário.
–
O contrário, como? Sugere que devemos desunir?
–
Nós temos que lutar para deixarmos de ser pretos, para sermos simplesmente
pessoas.” (págs. 256,
257)
Fui também contactando com um considerável
leque de personagens, residentes em aldeolas quase riscadas do mapa, estagnadas
e “nostalgiando” épocas e momentos já devorados pelo tempo e gentes que, em
pleno auge dos Descobrimentos, destapam, por um lado, a ânsia de espalhar a
palavra e a fé dos brancos e, por outro, a previsível inutilidade desse esforço
em querer cristianizar povos com crenças e fés tão enraizadas. Fui querendo
conhecer mais profundamente algumas dessas personagens porque o entusiasmo
perante uma história pressupõe que o leitor cria algum tipo de laço com uma ou
mais figuras que a habitam. E aí é que esta obra de Mia Couto falhou comigo,
pois não me aproximei de nenhuma, nem mesmo das protagonistas.
Essa indiferença que se encostou a mim
durante os correspondentes dias de leitura poderá também estar relacionada com
o meu lado cético e que não permite que eu creia no misticismo e ares mágicos
que povoam as crenças e hábitos de personagens como Mwadia, o seu marido, a sua
mãe e outras. As realidades e as rotinas estão num lado tão oposto àquele que
me é familiar que, por muito que me tente contrariar-me a mim mesma e abrir-me
a esse estilo de estar e crer na vida, não consigo…
Resumindo, reitero que esta obra é
mais uma ode ao brilhantismo do estilo de Mia Couto, é uma janela para mundos e
tempos distintos, transmite de forma acutilante e suave (passe a antítese)
lições de História recente e menos recente, mas que, pelas razões que expus, a
mim não me agarrou. Espero que em outros leitores a reação seja completamente
diferente e que vá ao encontro de muitas das opiniões positivas que, terminada
a leitura, encontrei pela internet fora.
NOTA – 07/10
Sinopse
Viagens
diversas cruzam-se neste romance: a de D. Gonçalo da Silveira, a de Mwadia
Malunga e a de um casal de afro-americanos. O missionário português persegue o
inatingível sonho de um continente convertido, a jovem Mwadia cumpre o
impossível regresso à infância e os afro-americanos seguem a miragem do
reencontro com um lugar encantado. Outras personagens atravessam séculos e
distâncias: o escravo Nimi, à procura das areias brancas da sua roubada origem.
A própria estátua de Nossa Senhora, viajando de Goa para África, transita da
religião dos céus para o sagrado das águas. E toda uma aldeia chamada Vila
Longe atravessa os territórios do sonho, para além das fronteiras da geografia
e da vida.
As
diferentes viagens entrecruzam-se numa narrativa mágica, por via de uma mesma
escrita densa e leve, misteriosa e poética de um dos mais consagrados
escritores da língua portuguesa.
Olá Ana
ResponderEliminarNunca li nada de Mia Couto, embora tenha Mulheres de Cinza na estante há uns meses. E agora no Natal oferecem-me este livro. Talvez comece por ele, para depois não me desapontar.
Beijinhos e boas leituras
Olá, Sara!
EliminarEstreei-me no mundo de Mia Couto com "Jerusalém" e foi uma estreia muito positiva. Aliás, foi por ter gostado tanto que arrisquei e comprei esta obra. Mas não posso dizer que sejam equivalentes, pelo menos para mim. Espero que a tua experiência seja bem melhor.
Beijinhos, leituras saborosas e um excelente 2017!
Olá Ana,
ResponderEliminarLi apenas um livro do Mia Couto há muito tempo. Nunca mis li nenhum livro dele. Mas tenho curiosidade. Mas não sei porquê, vai ficando sempre para trás. Mas pela tua opinião leio primeiro outros dele :)
Beijinhos e boas leituras
Sim, é melhor não reatares a relação com Mia Couto com esta obra ;)
EliminarTenho a certeza de que encontrarás outro que te entusiasmará!
Beijinhos e leituras muito saborosas.