Ficha
técnica
Título
– Os dez livros de Santiago Boccanegra
Autor
– Pedro Marta Santos
Editora
– Teorema
Páginas
– 494
Datas
de leitura – de 27 de novembro a 07 de dezembro de 2016
Opinião
Leitura exigente, leitura que me
desassossegou como poucas já o fizeram. Leitura que me escolheu numa das
últimas visitas que fiz à biblioteca municipal, pois, apesar de ir munida de
papelinho com títulos e correspondentes autores, fui atraída para uma bancada
de sugestões de leituras da qual me aproximei e, ato imediato, agarrei uma obra
finalista do Prémio Leya, com um título e capa intrigantes e carregados de
fascínio.
Sabia, após a leitura da sinopse, que
este livro me tinha encontrado porque me queria desafiar, iria desafiar-me a
trazer ao de cima toda a experiência de anos sem fim de leituras, a
apetrechar-me com essa bagagem de leitora inveterada e a preparar-me para algo
quase inédito. Convenhamos então que as expectativas, os níveis de ansiedade e
de entusiasmo eram elevadíssimos e que não me importo de revelar já que o autor
conseguiu elevá-los ainda mais.
O livro está, como o título indica,
dividido em dez livros. A cada um deles, exceto o último, está associado o nome
de uma personagem, mas engane-se quem pressupõe que cada um desses livros
apenas se centra em cada uma das respetivas personagens que o intitulam. Nada
disso. Numa obra em que o óbvio, o linear, a realidade deixam de ser encarados
como tal num desfolhar de página, também não seria de esperar que as
personagens de cada parte se enclausurassem no livro que o autor dedica às
mesmas. Esse deambular de personagens, um vertiginoso para trás e para frente
no tempo (tanto estamos em 2016 como de repente recuamos vários séculos) uma
deslocalização geográfica que nos faz pisar cidades e locais portugueses,
norte-americanos, franceses, albaneses, turcos, birmaneses são capazes de pôr
qualquer leitor impotente, aturdido. Mas essa impotência e esse aturdimento
antiteticamente acabam por ser o elemento que não nos deixa pousar o livro, que
nos impele a seguir com a sua leitura e a terminá-la como a começámos –
desassossegados, tontos, perturbados e completamente desarmados.
O leque de personagens parece não
terminar nunca. Obriguei-me frequentemente a voltar atrás em busca de
esclarecimentos, em busca de ligações, de laços familiares ou de outra índole.
Obriguei-me a abrandar o ritmo de leitura. Nem sempre o consegui porque ou
desesperava à procura de respostas ou tentava estar atenta à explosão de
detalhes que cada livro me oferecia sobre a personagem que o intitulava ou
sobre outra que se infiltrava num livro que não o seu. Viciei-me na dor de
Santiago, na sua surdez seletiva, na sua carapaça de suspeita indiferença face
a tudo e todos que o rodeiam, condoí-me com a busca desenfreada pela morte de
uma rapariga de apenas 17 anos, arrepiei-me de medo perante a pessoa em que se
torna Aamon Daro, enchi-me de ternura pelo avô de Santiago e não fui capaz de
sentir-me indiferente perante nenhuma das restantes personagens que preenchem
as quase 500 páginas da obra.
Para além de tudo que já mencionei,
reitero que Os dez livros de Santiago
Boccanegra é também uma obra ímpar por aliar a uma trama estonteante e
personagens inesquecíveis referências a momentos históricos de vários países
antípodas na sua geografia e nas tradições e modos de vida, referências a
artistas associados às mais diversas artes (pintura, música, literatura) e
excertos de canções que compõem uma banda sonora tocante e precisa, que nos faz
recordar bandas como os Evanescence ou cantores como Simon and Garfunkel e o
nosso Sérgio Godinho.
Por fim, tenho que referir que o
estilo áspero, cru, pungente e muito bem condimentado por uma pesquisa muito
exaustiva de um autor que se consagrou como jornalista e guionista permite-nos
ser surpreendidos a cada passo e leva-nos a acreditar em acasos tão
extraordinários como os que povoam o final apocalíptico da obra.
Sendo assim, não é de admirar que eu
recomendo que se atrevam a ler estes Dez livros. Não é uma leitura nada fácil,
irá parecer-vos amiúde que estão a ser abalroados por um comboio de emoções, de
factos separados no tempo e no espaço e que se misturam num virar de página,
mas se ansiarem por uma leitura verdadeiramente desafiante como eu anseio, irão
de certeza deixar-se ser enredados por este romance de Pedro Marta Santos.
Deixem-se, por favor, ser apanhados!
Não lhe atribuo a nota máxima por duas
razões – primeira porque a correria destes últimos dias do ano impossibilitaram
que me refugiasse na sua leitura e conseguisse captar todos os seus detalhes
(acho que será um bom motivo para uma futura releitura); a segunda tem a ver
com o meu lado cético que não me permite crer em tudo o que se passa ao longo
da obra – por muito que o combata, esse ceticismo consegue amargar-me o sabor
de romances como este.
NOTA – 09/10
Sinopse
Santiago
Boccanegra, neto de marinheiros, sobreviveu à poliomielite lendo Moby Dick e
vingou-se dos duros que o perseguiam na escola fazendo-se boxeur. Trabalha
agora como segurança de um hotel de Lisboa, onde Laura Rutledge, única
sobrevivente de um desastre aéreo, se perde como prostituta de luxo. Depois da
tragédia que lhe é infligida nas Montanhas Malditas, o misterioso albanês Aamon
Daro cultiva papoilas na Birmânia e, com o lucro do ópio, colecciona obras de
arte, que gosta de encenar ao vivo. Jin, uma tímida adolescente norte-coreana,
apaixona-se graças a uma canção dos Beatles e é obrigada a fugir para o
Ocidente. Num caderno enterrado com a musa do poeta Dante Gabriel Rossetti
aparece um soneto posterior ao óbito – e talvez seja de Pessoa. Um rapazinho
com um tumor cerebral compõe música nos lençóis do hospital sem nunca a ter
aprendido. Saint-Exupéry, desaparecido no deserto líbio após a queda do seu
avião, encontra, além da raposa que o ignora, uma criança de uma tribo que se
julgava extinta. Estas e muitas outras personagens reais e ficcionais vão
formar uma enigmática teia em que os fios soltos acabam por unir-se num final
surpreendente, a que não faltarão aves, música, morte e redenção.
Um livro brutal. Passou-me a ferro!
ResponderEliminarMetáfora adequadíssima, Márcia! É isso mesmo!
EliminarOlá Ana
ResponderEliminarNão conhecia, mas fiquei encantada com a tua opinião.
Beijinhos e boas leituras
Obrigada, Sara!
EliminarArrisca, que vale a pena, apesar da sua "brutalidade"!
Beijinhos e leituras saborosas!