Ficha técnica
Título – Eu
confesso
Autor – Jaume Cabré
Editora – Tinta da China
Páginas – 736
Datas de leitura – de 20 de abril a 06 de maio de 2017
Opinião
Há três
dias encerrei a leitura desta obra. Tive-a nas mãos durante dezasseis dias.
Tardei em lê-la mais do que qualquer obra que li este ano, no ano passado e
muito provavelmente há dois anos. Não pelo seu número considerável de páginas.
Já li mais páginas em menos tempo. Eu
confesso fez-me companhia durante dezasseis dias porque não é, de
maneira nenhuma, uma obra fácil. Nem para alguém tão sedento como eu, que busca
incessantemente leituras exigentes, que me provoquem e me aturdam.
Aturdimento
é assim a palavra mais adequada para descrever-vos como ainda me sinto hoje,
três dias depois de ter desfolhado a página final da obra de Cabré. Aturdida
com a genialidade e complexidade do seu estilo, com uma narrativa que de uma
frase para outra ou mesmo na mesma frase muda de um narrador de primeira pessoa
para um de terceira (sendo que ambos são o protagonista da história), salta no
espaço e no tempo (muitas vezes de século) e com um protagonista superdotado,
inteligentíssimo, mas imperfeito como todos nós, repleto de contradições,
dúvidas e atos ou altruístas ou covardes.
Adrià
Ardévol nasce a trinta de abril de 1946 no seio de uma família com posses. É o
único filho de um casal barcelonês mas cedo nos confessa que “Nunca houve amor em nossa casa. Eu fui uma
mera consequência circunstancial na vida dos dois.” Deambula pela casa (e
consequentemente pela sua infância) recebendo migalhas de atenção dos
progenitores que se digladiam em frequentes disputas sobre a que é que o filho
(que nada mais quer do que ter uma mãe que lhe faça de vez em quando uma
carícia no cabelo e um pai que se orgulhe dele) terá que dedicar a sua
inteligência – se ao estudo de variadíssimas línguas estrangeiras se aos
virtuosismos de um violino.
A infância
de Adrià, os seus estratagemas para perceber melhor quem são os seus pais, por
que se casaram, o fascínio que sente pela loja de antiguidades do pai e por
ouvir conversas proibidas são apenas o ponto de partida para uma narrativa que transpira
complexidade e que pode desanimar o leitor menos experiente nas páginas
iniciais. Admito que, mesmo munida do caderninho que sempre me acompanha em
qualquer leitura, eu própria me senti atordoada na primeira parte, onde as
constantes mudanças de narrador, de espaço, de tempo e de personagens me
apanharam de surpresa e me fizeram recordar o quão exaurida fiquei com mais de
metade da obra de Vargas Llosa – Conversa
n’A Catedral. Contudo, tal como aconteceu com o magnífico livro do
escritor peruano, também não deixei que a complexidade e densidade do estilo de
Cabré me afetassem e fui desbravando capítulo atrás de capítulo e habituando-me
às referidas reviravoltas. E fui lentamente afeiçoando-me a Adrià.
Tal
como o título indica, esta obra é uma longuíssima confissão que engloba, como é
óbvio, a vida de Adrià, desde a infância até à terceira idade e que engloba
também a vida dos seus pais, dos seus amigos, dos seus amores, das suas
aventuras e desventuras. Mas seria muito redutor afirmar que Eu confesso é apenas isso. É
igualmente uma longuíssima reflexão sobre o ser humano e o seu lado mais negro,
a maldade, a dor, a tortura que se inflige a outro ser humano pelas razões mais
mesquinhas e mais abjetas. Muitas vezes justificadas por questões religiosas,
políticas ou meramente pessoais. Desde a Inquisição ao extermínio nazi,
passando pelo franquismo ou pelas ideias extremistas muçulmanas, tudo interfere
com a suposta pacata vida de Adrià para deixar bem claro que “… a história de qualquer coisa explica o
estado presente da coisa qualquer.” (pág. 309)
Eu confesso é ainda um hino de louvor à
importância de conhecer idiomas, do quanto somos mais ricos se soubermos
cultivar a nossa língua materna e as outras ditas estrangeiras. É igualmente uma
ode em prosa do quanto a música nos eleva a outros patamares, no quanto um
acorde de violino nos arrebata até às lágrimas e exprime o que não é exprimível
em palavras. É por fim uma obra que, através do seu protagonista e da sua
interminável biblioteca (digna da mais visceral inveja), reflete o que deveria
ser um dogma, uma verdade que não admite contestação – os livros são sabedoria,
são conhecimento, são entretenimento, são uma porta para uma mentalidade mais
aberta e mais tolerante. A propósito, não resisto a deixar aqui mais um
fragmento dos muitíssimos que registei no caderninho: “… todos os dias leio e todos os dias me apercebo de que ainda tenho tudo
por ler. E de vez em quando tenho de reler, apesar de só reler o que me merece
o privilégio de ser relido.” (pág. 542) Soberbamente certeiro!
Há
ainda muito mais para dizer sobre esta obra, nomeadamente a belíssima e
dolorosamente imperfeita história de amor de Adrià e da sua amada. Mas prefiro
não me alongar. Prefiro deixar que Cabré vos surpreenda e vos aturda como me
fez a mim. Prefiro que os leitores que lerão esta opinião embarquem nesta
odisseia de mais de setecentas páginas, que façam a sua própria viagem e sintam
que nem no seu desfecho o autor deixa de ser genial.
Concluo,
justificando-me, justificando por que razão não atribuo a Eu confesso a nota máxima. Apenas lhe reservo um 9/10 e faço-o
citando Adrià – Mea culpa. Sim, sinto
que fui eu quem não esteve à altura da mestria do autor, já que confesso que,
por exemplo, alguns pormenores se foram perdendo à medida que avançava na
leitura e algumas personagens se misturaram, ganharam contornos de outras. Mea culpa…
Tento
redimir-me, recomendando vivamente esta obra e, já agora, a outra que muito
quero ler deste autor – As vozes do
rio Pamano.
NOTA –
09/10
Sinopse
Na Barcelona franquista, o
pequeno Adrià cresce num amplo e sombrio apartamento; o pai está determinado a
transformá-lo num humanista poliglota, a mãe, num violinista virtuoso.
Brilhante, solitário e tímido, o rapaz procura satisfazer as ambições desmesuradas
que depositam nele, até ao dia em a morte violenta e misteriosa do pai o leva a
questionar a origem da fortuna familiar. Meio século depois, Adrià recorda a
sua vida, indissociável do turbulento percurso de um violino excecional. Da
Inquisição ao nazismo, de Barcelona ao Vaticano, vai-se desvelando a cruel
história europeia: uma cadeia de eventos iniciada na Idade Média, com
repercussões trágicas até à atualidade.
A mistura de discurso/narrador/tempo histórico é como diz, alucinante, só comparável à obra máxima do MVLlosa. Quase caí no chão com o Capitulo 24, o jantar entre o Inquisidor e o Prior-mor no séc. xiv em paralelo com o jantar do comandante de Auschwitz e o médico supervisor dos campos, a fusão é total, psicológica, ideológica, linguística, chega à fusão dos apelidos dos intervenientes!!!
ResponderEliminarUm livro que também é sobre a doença de Alzheimer, palavra que apenas surge uma vez ao longo das mais de 700 páginas "imperador assassino, Alzheimer, o Grande". A lucidez da escrita é assombrosa, #724 “adeus Adrià, despeço-me já de mim mesmo, por precaução”.
Foi o meu livro naquele ano (2015, acho), também me assustei no início, mas fiquei rendido, completamente siderado. Acho que é isto uma verdadeira obra de arte, o trabalhão do autor, a qualidade a todos os níveis. De tal maneira que me obriguei a procurar outras obras dele e poucos meses depois estava precisamente como “as vozes do rio pamano” que refere. É igualmente precioso, escrito anteriormente, não tão apurado como “eu confesso” mas uma abordagem ao pós-guerra civil espanhola interessantíssima. Não tem um índice de personagens como este pelo que recomendo umas notas em caderno para orientação facilitada. Curiosamente seria até interessante lê-lo no atual contexto que tanto se fala de Fátima, pois aborda também os meandros da canonização de figuras do povo, e todo o aproveitamento pessoal e politico que pode estar por trás.
Cumprimentos
miguel
Olá, Miguel, e muito obrigada pelo seu comentário muito pertinente.
EliminarPercebe-se pelo que diz e pelo "tamanho" do comentário o quanto Cabré o marcou e o deixou siderado, mesmo já se tendo passado pelo menos dois anos. É realmente uma obra de arte que todos devem ler, porque a experiência é provavelmente irrepetível.
Quero muito ler "As vozes do rio Pamano", apesar de o Miguel não ser o único a afirmar que não é tão bom como "Eu confesso". Sou uma apaixonada pela Guerra Civil espanhola e aliar esse período histórico à mestria de Cabré é, por si só, uma tentação demasiado apetecível.
Obrigada pelo seu comentário e espero vê-lo por aqui mais vezes.
Continuação de boas leituras.
Ana, eu ando sempre a meter o nariz no teu cantinho, mas só comento quando tenho uma opinião ou a tua leitura me entusiasma. Como agora! Pronto, já tenho mais um livro para ler quando me reformar... Eu adoro livros como este, que me deem luta, com várias perspetivas e saltos temporais. Ainda no outro dia li um que me maravilhou, "Todos os Pássaros no Céu" da Evie Wyld, com capítulos intercalados no presente e no passado, sendo que este é contado numa ordem cronológica invertida e só no fim tudo faz sentido.
ResponderEliminarPaula
Eu sei, Paula, mas uma das coisas de que mais gosto deste cantinho é a interação com aqueles que o visitam :) Por isso, vou "exigindo" de vez em quando essa atenção...
EliminarAdoro a ideia de livros para a reforma! Também vou deixando alguns, sobretudo aqueles clássicos, como os de Proust ou de outros monstros da literatura.
Tenho muita curiosidade em saber mais sobre esse livro de que falas! Deve ser mesmo desafiante. Vou tomar nota!
Obrigada por seres intrometida!
Olá querida Ana,
ResponderEliminarTenho muita vontade de ler este autor, mas confesso que tenho algum receio. Tenho medo de não gostar, que seja denso. Mas só vejo opiniões positivas sobre ele, por isso vou ter mesmo que o ler. Mas acho que vou começar por um mais pequeno. Para não intimidar.
Beijinhos e boas leituras
Isa, tens razões para ter algum receio, porque não é mesmo uma leitura fácil. É densa, complexa e muito, muito exigente, mas obrigatória! Quando se sentires preparada, arrisca e vais ver que me vais dar razão!
EliminarBeijinhos e leituras muito saborosas!
Olá, Ana,
ResponderEliminarAdorei a tua opinião :D não conhecia ainda este romance, mas fiquei de olho. cada vez gosto mais de me sentir espicaçada ao longo da leitura :D
beijinhos e que venham mais boas leituras
Olá, Su!
EliminarObrigada, sabem sempre bem os elogios :)
Se queres ser espicaçada, este é o romance ideal, porque é de deixar-nos sem fôlego! Recomendo-o, mas aviso desde já que vais precisar de cábulas, porque todo o pormenor é importante neste "calhamaço" de mais de 700 páginas!
Beijinhos, leituras muito saborosas e volta sempre!
OK, Cabré tornou-se urgente. Obrigada, Ana, por esta fantástica partilha!
ResponderEliminarSim, merece tornar-se urgente para aqueles que, como tu, o apreciarão devidamente e lhe farão justiça!
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