Os monstros também amam, de Clara Sánchez

Quinta-feira, 17 de abril de 2014




Opinião
Hoje, que estou a desfrutar de uma noite “home alone”, com a casa por minha conta J, acabei de ler Os monstros também amam já no conforto dos lençóis!
A obra é sobre uma jovem grávida – Sandra – que “foge” de Madrid, de uma vida que se estava a tornar claustrofóbica e se refugia numa localidade à beira-mar. Lá, conhece um casal octogenário, que se propõe “cuidar” dela.
Pouco tempo depois, Sandra trava também conhecimento com outro octogenário, Julián, que lhe confidencia que viajou desde Argentina até aquele local, para cumprir o último desejo de um amigo e que esse desejo está intimamente ligado ao casal que tem protegido Sandra, já que os mesmos são, nada mais nada menos que um casal de ex-nazis que nunca foram condenados pelos horrores que praticaram durante a Segunda Guerra Mundial.
Perante este resumo poderia dizer, sem margem para dúvidas, que este romance possui ingredientes fantásticos para uma leitura entusiasmante, sobretudo para alguém como eu, que já confessou vezes sem conta ser um nadinha “viciada” em histórias que girem à volta de um tema tão arrebatador como o é tudo o que se relacione com esse conflito mundial. Contudo, e para grande frustração minha, Os monstros também amam não me conquistou… O que poderia ser uma obra empolgante, repleta de momentos interessantes, de suspense e que assim nos agarraria até ao seu final, peca porque se torna previsível, com passagens pouco credíveis e com algo que, para mim, é quase imperdoável – falta-lhe intensidade psicológica. Como pode uma obra que se propõe abordar temas tão inquietantes (e que mexem com o mais profundo de nós) não explorar tudo isso, não apresentar-nos personagens mais densas, não aprofundar verdadeiramente o seu lado íntimo, as suas emoções, os seus pensamentos, os seus atos?...
Por tudo isto, reina alguma frustração, pois sinto que a leitura desta obra aguçou o meu apetite com o seu título (um pouco enganador e que nada tem a ver com o título original – Lo que esconde tu nombre), com a sua sinopse e inclusive com a sua capa (que, mais uma vez, não tem relação nenhuma com a protagonista) e que, infelizmente, a sua narrativa, ou seja, o seu “prato principal”, se revelou insosso e algo dececionante.
Essa deceção ainda dói mais, porque no dia em que a literatura mundial perde um dos seus grandes nomes, sentir-me-ia muito mais realizada se tivesse “honrado” o prazer e a importância que os livros têm na minha vida com uma daquelas leituras, que me preenchem e me trazem aquele sabor…
¡Hasta siempre, Gabo! Te echaré mucho de menos, a ti a todo que todavía podrías ofrecernos…

NOTA – 06/10

Sinopse

Sandra tem 30 anos, está grávida de um homem que não ama e decide ir viver para uma pequena aldeia costa leste espanhola. Num dos seus passeios pela praia conhece os Christensen, um casal de octogenários noruegueses e estabelece com eles uma relação de proximidade.
Nada faria supor que estas três vidas, unidas por acaso, pudessem ser a razão de viver de Julián, um homem recém-chegado da Argentina que segue, passo a passo, os noruegueses. Um dia Julián aborda Sandra e revela-lhe detalhes do seu passado e do dos seus novos amigos. E conta-lhes que os Christensen não são quem aparentam ser. Repleto de suspense e emoção, Os Monstros Também Amam é, acima de tudo, um romance sobre as ambiguidades do ser humano, entre a maldade e o amor, e sobre a forma como as aparências escondem o lado mais negro de cada um de nós.

O velho que lia romances de amor, de Luis Sepúlveda

Terça-feira, 17 de março de 2015




RELEITURA

Opinião
Luis Sepúlveda ocupa um cantinho especial no meu coração literário. E por razões muito simples – é chileno, encanta-nos com uma prosa simples e melodiosa, é um acérrimo defensor da ecologia e, não sei se já referi, é chileno J e o seu talento equivale, na minha opinião, ao de outros “monstros das letras” chilenas e sul-americanas como Isabel Allende, García Márquez ou Jorge Amado.
De todas as obras que já li, desde História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar, Encontro de amor num país em guerra a As rosas de Atacama, O velho que lia histórias de amor é aquela a que dedico carinho e atenção mais especiais. E não é difícil adivinhar por quê. O título em si elucida – é impossível ficar indiferente à sugestão que dele advém, ou seja, é impossível não querer “entrar” numa história que terá como protagonista um velho que lê, que dedica parte do seu tempo livre, de ócio, à leitura de histórias de amor.
A narrativa é curtinha e transporta-nos para a selva amazónica equatoriana. É lá que vive um punhado de homens, brancos e indígenas. Uns em comunhão com a natureza, outros usurpando-a e destruindo-a. Como, infelizmente, seria de esperar… Contudo, por muito que o Homem detenha as armas mais fortes, mais mortíferas, a natureza de vez em quando ainda sai vencedora de alguns combates. Ainda consegue, sorrateira e surpreendentemente, infligir no ser humano a derrota e a humilhação de deparar-se com o inesperado – a união de todos os elementos que compõem o elemento mais fraco e que lhe pregam uma partida.
O velho protagonista desta história é um exemplo de alguém que fugiu de uma vida com poucas condições à procura do sonho amazónico. Casado com Dolores Encarnación del Santísimo Sacramento Estupiñán Otavalo (o narrador sempre se refere à mulher do velho com o nome completo), Antonio José Bolívar Proaño chega à selva munido de um documento que o assevera como dono de um pedaço de terras, mas cedo se rende às evidências – não é ele quem possui esse naco de terra, mas sim a selva. A selva nada dá ao homem gratuitamente, vê-o como um invasor e Antonio José não é exceção. Perde a mulher pouco tempo depois e cura a dor do luto tentando compreender o “inferno verde que lhe arrebatara o amor e os sonhos” (pág. 33). Será um início de uma aprendizagem, de um ritual iniciático que não terminará nunca, mas que o apaziguará e o fará entender, como nenhum homem branco daquelas paragens inóspitas, que aquele mundo verde merece respeito e, porque não, vassalagem.
Os livros, as histórias de amor, de “chorar rios de lágrimas” também contribuíram para esse apaziguamento e respeito pela vida que a selva lhe proporciona. Antonio José é quase analfabeto, mas retira um prazer indescritível (como o entendo) de ler lentamente, “juntando as sílabas, murmurando-as a meia voz, como se as saboreasse, e, quando tinha a palavra inteira dominada, repetia-as de uma só vez. Depois fazia o mesmo com a frase completa, e dessa maneira se apropriava dos sentimentos e ideias plasmadas nas páginas.” (pág. 28). De meio em meio ano, recebe das mãos do dentista que visita a sua povoação livros que lê com toda a devoção, de pé, na sua choça, muitas vezes enquanto lá fora chove torrencialmente – “Estava rodeado pela chuva por todos os lados e o dia oferecia-lhe uma intimidade inigualável.” (pág. 63)
Contudo, essa intimidade, esse apaziguamento, esse quotidiano feito de insignificâncias rotineiras são amiúde perturbados com a chegada de garimpeiros e de outros usurpadores daquele mundo verde. A última invasão tem consequências devastadoras para ambos os lados da contenda e não deixa nada nem ninguém indiferente. Nem mesmo Antonio José. Nem a mim, como leitora…
Li este pequeno tesouro, pela primeira vez, há mais de 15 anos e o que recordava com nitidez era a sua parte final, aquela que dolorosamente nos expõe, de uma forma simples e direta, o quanto estamos a destruir o que faz do nosso planeta um astro habitável. O quanto estamos a dizimar o que é vital para que continuemos a sobreviver e para que os nossos descendentes sobrevivam. A verdade é só uma – os outros seres vivos que preenchem este planeta não precisam de nós. O contrário, sim. Mas, inexplicadamente parece que nos estamos sempre a esquecer disso – não sobreviveremos se continuarmos a destruir esse precioso ecossistema.
Deliciei-me com o sabor desta releitura e só não a pontuo com a nota máxima por inteira culpa minha – a minha fobia por animais rastejantes e que abundam na Amazónia veio ao de cima em certas passagens da obra…
Deixo, por fim, o excerto que remata a obra e que resume a sua mensagem de forma perfeita:
Antonio José Bolívar Proaño tirou a sua dentadura postiça, guardou-a embrulhada no lenço, e, sem parar de amaldiçoar o gringo que estivera na origem da tragédia, o administrador, os garimpeiros, todos os que insultavam a virgindade da sua Amazónia, cortou com um golpe de machete um grosso ramo e, apoiando-se nele, pôs-se a andar na direção de El Idilio [como ironicamente, ou não, se chama o local onde vive], da sua choça, dos seus romances, que falavam do amor com palavras tão bonitas que às vezes lhe faziam esquecer a barbárie humana.” (pág. 110)

NOTA – 9/10

Sinopse
Antonio José Bolívar Proaño vive em El Idilio, um lugar remoto na região amazónica dos índios shuar, com quem aprendeu a conhecer a selva e as suas leis, a respeitar os animais que a povoam, mas também a caçar e descobrir os trilhos mais indecifráveis.
Um certo dia resolve começar a ler, com paixão, os romances de amor que, duas vezes por ano, lhe leva o dentista Rubicundo Loachamín, para ocupar as solitárias noites equatoriais da sua velhice anunciada. Com eles, procura alhear-se da fanfarronice estúpida desses "gringos" e garimpeiros que julgam dominar a selva porque chegam armados até aos dentes.

Descrito numa linguagem cristalina e enxuta, as aventuras e emoções do velho Bolívar Proaño há muito conquistaram o coração de milhões de leitores em todo o mundo, transformando o romance de Luis Sepúlveda num "clássico" da literatura latino-americana. 

Soldados de Salamina, de Javier Cercas

Sexta-feira, 13 de março de 2015





Opinião

“Embrenhei-me” de novo numa leitura bélica. E de novo na Guerra Civil de Espanha. Só que, desta vez, tratei de conhecer o outro lado, o lado dos “fachas”, dos “falangistas”, o lado vencedor de uma guerra inconcebível. Como todas as outras…
Hoje em dia, se sei alguma coisa sobre esse período negro da História espanhola, devo-o a Almudena Grandes. Aos livros que essa extraordinária autora publicou sobre a Guerra de 36-39, sobre os milhares/milhões de republicanos que perderam ou a sua vida ou a sua pátria ou a sua identidade, sobre os anos terríveis do pós-guerra e da malfadada ditadura franquista. Como tal, não é difícil adivinhar que a minha simpatia sempre esteve desse lado “da trincheira” e que aproveitei a oportunidade, que a minha Nancy me proporcionou, para ler Soldados de Salamina e assim, da forma mais imparcial que pude, abrir os meus horizontes, atravessar a frente de combate e “conviver” com o outro lado, o lado falangista.
Não foi um convívio fácil, pois não consegui ser imparcial. Na verdade, nunca o quis, porque, por muito que dos dois lados se tenham cometido barbaridades (como em qualquer conflito dessas dimensões), resulta-me impossível compactuar com fascistas, com ideais totalitários, ditatoriais, que reduzem um ser humano (só porque não comunga com a mesma ideologia) a um monte destroçado de carne, a quem tudo fazem para que perca a sua identidade, aquilo que o torna alguém, uma pessoa.
Sendo assim, desde o princípio soube que queria, por um lado, tentar abstrair-me dessa falta de imparcialidade e, por outro, tentar acabar de ler o livro o mais rápido possível, porque intuía que ia ser uma leitura incómoda. E a intuição revelou-se (como quase sempre) certeira. E não só pelas razões já expostas, mas também porque Soldados de Salamina não é aquilo que apelidamos de um romance ficcional, que “se aproveita” de factos reais, verídicos e que, tendo-os como base, o autor os trabalha e oferece-nos uma narrativa entusiasmante, que nos cativa do princípio ao fim. É sim uma obra algo monótona, sensaborona e que apenas me empolgou com o seu final, quando os factos históricos são de alguma forma postos de lado e conhecemos não só uma personagem ficcionada (presumo eu) mas deveras humana e ao mesmo tempo heroica e “entramos” ligeiramente no íntimo do narrador, que segundo percebemos na página 145, é o próprio autor.
Contudo, não posso afirmar que estes dias em que estive com esta obra entre mãos tenham sido um desperdício. Pelo contrário. Foram uma aprendizagem, já que aprendi quem foi Rafael Sánchez Mazas, fundador e ideólogo da Falange espanhola, autor da máxima “Arriba España” e quase inexplicadamente sobrevivente de um fuzilamento coletivo às mãos de um grupo de republicanos desesperados face à iminente perda da guerra. Fiquei também a saber que batalha está por detrás do título da obra – a Batalha de Salamina, um confronto entre persas e gregos, em 480 a. C. e que terminou com uma vitória destes últimos. Se os persas tivessem ganho, a evolução da Grécia Antiga teria sido profundamente afetada, bem como o correspondente desenvolvimento do mundo ocidental. É por estes motivos que esta batalha é considerada um dos combates mais importantes da História da humanidade.
E aqui impõe-se a questão – e se, tal como na Batalha de Salamina, na Guerra Civil espanhola não tivessem ganho os nacionalistas, mas sim os republicanos? Que implicações teria essa vitória tido na História e desenvolvimento de Espanha? E na História e desenvolvimento da Europa?...


NOTA – 6/10


Sinopsis

Cuando en los meses finales de la guerra civil española las tropas republicanas se retiran hacia la frontera francesa, camino del exilio, alguien toma la decisión de fusilar a un grupo de presos franquistas. Entre ellos se halla Rafael Sánchez Mazas, fundador e ideólogo de Falange, quizás uno de los responsables directos del conflicto fratricida. Sánchez Mazas no sólo logra escapar de ese fusilamiento colectivo, sino que, cuando salen en su busca, un miliciano anónimo le encañona y en el último momento le perdona la vida.

À minha filha em França, de Barbara & Stephanie Keating

Segunda-feira, 09 de março de 2015




RELEITURA

Opinião
Esta releitura foi (como se ainda necessitasse de provas…) mais um exemplo de como realmente “saborear” uma leitura pela segunda vez sabe mesmo muito bem!
Barbara e Stephanie Keating são duas irmãs irlandesas J que fazem aquilo que não é muito comum no mundo das letras – escrevem romances “a quatro mãos”, vivendo cada uma delas num país diferente – Irlanda e França. Até hoje, a Editora Asa (Leya) publicou quatro desses romances – À minha filha em França e a trilogia Langani. É óbvio que todos “vivem” cá em casa e que todos, sem exceção, merecem ser lidos ou relidos, porque nos proporcionam leituras arrebatadoras, que nos conquistam de uma forma que só posso descrever como sôfrega!
À minha filha em França “mora” cá em casa há mais de 10 anos e é o livro “primogénito” das autoras. Recordo a primeira vez que o li como uma experiência que teria que ser, sem dúvida alguma, repetida. E foi-o com a leitura dos três volumes da trilogia Langani e agora com a releitura de uma história que é apaixonante, que nos toma por completo, que nos seduz e à qual me entreguei de novo como se fosse a primeira vez! Um romance como devem ser todos os romances. Um romance como eu gosto, cá dos meus J
A narrativa abre com uma missiva escrita a 20 de fevereiro de 1970 por Eleanor Kirwan a Solange de Valnay, duas irmãs que até ao momento eram duas estranhas, mas que, através da leitura do testamento do falecido Richard Kirwan, ficam a saber que, em comum, têm o mesmo pai biológico. A notícia tem um efeito catastrófico em ambos os lados do Canal da Mancha e será o elemento catalisador de uma história que nos fará saltar para vários tempos e espaços e acompanhar um leque de personagens muito bem construídas, humanas, com atitudes que se assemelham a qualquer uma de um vulgar ser humano, mas ao mesmo tempo dotadas de um caráter invulgar, excecional e que irremediavelmente nos cativa.
A ação desenrola-se, como já referido antes, entre os dois países onde vivem as duas partes desta família que nada sabiam da existência da outra metade até que se leu a última vontade de Richard Kirwan – “À minha filha em França, Solange de Valnay (…), deixo o remanescente do meu património” (pág. 7). De Dublin “viajamos” à costa irlandesa de Connemara, saltamos o Canal da Mancha e passamos por Paris, Montpellier, St. Joseph de Caunes no sul de França, costa da Bretanha e ainda “damos um salto” a Genebra, Suíça. Que viagem literária extraordinária! Que deleite poder “voar” com a minha imaginação e (re)descobrir países que tanto me fascinam!
Mas, para minha satisfação, o deleite não ficou por aí. Não foi apenas espacial, geográfico. Foi igualmente temporal, histórico. Esta releitura levou-me de novo a ambientes bélicos, à tentadora Segunda Grande Guerra (que sempre me seduziu e seduzirá, de uma forma quase demoníaca) e à luta gloriosa e heroica da Resistência francesa. Voltei a sofrer, a angustiar-me até às lágrimas com a inconcebível caça aos judeus, com as sessões de tortura excruciante que os mesmos e resistentes suportaram, com os relatos de sobreviventes de campos de concentração, enfim, com aquilo que ainda hoje me pergunto pode um ser humano fazer a outro.
  Por fim, a minha satisfação, o meu contentamento de leitora atingiram o pleno com os laços que unem as personagens desta magnífica narrativa e sobretudo com as suas histórias de amor. São amores plenos, sensuais, poderosos e tão apaixonantes, tão extraordinários que ficam na memória, que nos fazem sentir aquela invejazinha boa, que nos fazem ter esperança, acreditar e que fizeram personagens como Richard, Celine, Leah, Seamus e outros querer viver. Viver por, pelo menos, mais um dia.
Por tudo isto, tenho que dar nota máxima a esta releitura. Como poderia não fazê-lo? Adorei cada página, cada linha, cada momento e a vontade de reler as outras obras destas autoras é mais que imensa! Espero ainda que, brevemente, possam editar algum livro novo!...

NOTA – 10/10

Sinopse
Um testamento inesperado, a uma filha desconhecida, que vai alterar a vida de duas famílias. 

Uma extraordinária história de paixões proibidas, de sacrifícios feitos por amor e pela honra, de coragem e heroísmo. Um drama histórico que se movimenta entre a França ocupada, a costa de Connemara e a região francesa das vinhas do Languedoc nos anos setenta.

Biografia involuntária dos amantes, de João Tordo

sábado, 28 de fevereiro de 2015





Opinião
No último dia deste mês chuvoso acabei de ler aquele que considero o melhor romance de João Tordo. Sem dúvida nenhuma.
Comprei-o na última edição da Feira do Livro do Porto e tive a sorte de fazê-lo no dia em que lá estava o autor para uma sessão de autógrafos. Assim, Biografia involuntária dos amantes tornou-se no primeiro livro autografado que “aterrou” na minha estante J Por si só, esse autógrafo já faz desta obra uma obra especial. Mas, felizmente, a mesma possui muitas mais razões para que a classifique como notável e digna de este jovem e mais que promissor escritor nacional.
Mais uma vez e como acontece em outros romances de Tordo, Biografia involuntária dos amantes oferece-nos uma narrativa que se espalha por vários espaços, tempos e um protagonista que honra os seus “antepassados”, ou seja, os seus companheiros bibliográficos de passadas obras “tordianas”. Mas convém assinalar que há diferenças. Pela primeira vez, Tordo aventurou-se e pôs um dos narradores na pele de uma mulher. E há mais. O amor é o ingrediente principal, aquele à volta do qual tudo se passa, tudo avança e recua, tudo faz sentido.
Juntos matámos o javali”. É com esta frase curta e inesperada (mas que nos aguça a curiosidade) que a narrativa se inaugura. A partir dela, podemos apreender que o narrador será autodiegético (ou homodiegético) e que aquele incidente, a morte de um javali será um acontecimento significante, que funcionará como pretexto para o novelo de posteriores ações, reflexões e memórias. Muitas memórias.
Com o desenrolar da ação, constatei que o seu primeiro grande espaço é a belíssima região galega e que deambularia por duas das suas cidades – Santiago de Compostela, onde trabalha o narrador, e Pontevedra, onde reside. Bom, neste ponto tenho que abrir uma espécie de parêntesis e confessar que sou uma apaixonada pela cidade de residência do narrador – conheço Pontevedra relativamente bem (já lá estive três vezes) e não consigo impedir que o seu centro histórico, as suas ruelas estreitas, as suas deliciosas praças me conquistem, me seduzam uma vez e outra e outra. Sendo assim, é mais do que óbvio que segui (como se fosse a sua sombra) as deambulações que o narrador fez frequentemente pela sua cidade e que visualizei recantos, ruas, praças, estátuas, cruzeiros, cafés que me são familiares e que me agradam sobremaneira. As duas consequências imediatas que disso resultaram são fáceis de adivinhar – quando li essas passagens, essas descrições das caminhadas por Pontevedra, fartei-me de suspirar (em voz alta e verbalmente J) por uma nova visita ao seu centro histórico (e já agora às suas livrarias – duas pelo menos) e apercebi-me de que já me tinha rendido a Biografia involuntária dos amantes.
 Contudo, ainda havia muito na sua narrativa que me iria seduzir, prender, agarrar, conquistar. O seu narrador e protagonista, por exemplo. Dele não sabemos o nome. Sabemos apenas que é professor universitário, que é o animador de um programa de rádio noturno, que está divorciado e que tem uma filha adolescente, com quem mantém uma relação conflituosa e distante. Sabemos ainda que é um homem na casa dos cinquenta e que se sente preso a uma vida sem sabor, a uma vida insossa, desencantada, cinzenta e previsível como o é o tempo atmosférico na Galiza. É um homem cobarde, que tem consciência dessa cobardia, mas que nada faz para combatê-la, nem quando essa falta de coragem de iniciativa o afunda mais. Contudo, tudo sofre uma reviravolta com o acontecimento que inaugura a narrativa da obra – um desastre na AP-9 que provoca uma vítima mortal – um javali que se atravessou no caminho do narrador e do seu amigo e poeta mexicano Saldaña Paris.
Esse acidente será o momento desencadeador de um rol de memórias partilhadas entre os dois homens, tendo como elemento principal o casamento desfeito entre Saldaña Paris e Teresa, uma portuguesa que entretanto havia falecido de cancro e lhe havia deixado uma espécie de diário dos seus últimos dias de vida. Este documento autobiográfico não só transtornará de forma quase irreversível a existência do poeta mexicano, como também fará tremer os alicerces da vidinha sensaborona e frustrada do narrador, já que será a desculpa ideal para que este deixe tudo e todos para trás e parta numa espécie de demanda para descobrir quem é na verdade Saldaña Paris, quem foi a sua falecida esposa e, finalmente, para descobrir-se a si mesmo.
O desenlace da obra permitir-nos-á saborear o gozo de uma curiosidade (que vai crescendo e crescendo à medida que avançamos página a página) finalmente satisfeita e acreditar que nunca nada está perdido, que devemos não baixar os braços e que devemos lutar por nós, pelos nossos e que temos que aceitar as lições que o dia-a-dia nos traz.
Concluindo, o que fui expondo até ao momento reflete o porquê de tanto ter sido conquistada e de tanto ter gostado de Biografia involuntária dos amantes. Não dececiona, de maneira nenhuma, os leitores habituais de João Tordo e possui ingredientes mais do que suficientes para atrair novos “amantes” da sua escrita. Vale realmente a pena!
Não resisto a deixar ainda três notas finais:
- para quem já leu O ano sabático, Biografia involuntária dos amantes reserva uma “pequenina” surpresa!
- por muito que odeie e não suporte dias chuvosos (sobretudo aqueles cuja chuva é miudinha, constante e acompanhada de nevoeiro e MUITA humidade), não consegui deixar de sentir que esses dias são algo mais que nos une à Galiza, que a fronteira política que separa “o meu” Norte dessa comunidade autónoma espanhola não passa disso mesmo, de uma fronteira política…
- a “Dica” desta semana revelou-me que João Tordo está prestes a lançar uma nova obra e que promete – O luto de Elias Gro J
         
        NOTA – 10/10

Sinopse

Numa estrada adormecida da Galiza, dois homens atropelam um javali. A visão do animal morto na estrada levará um deles — Saldaña Paris, um jovem poeta mexicano de olhos azuis inquietos — a puxar o primeiro fio do novelo da sua vida. Instigado pelas confissões desconjuntadas do poeta, o seu companheiro de viagem — um professor universitário divorciado — irá tentar descobrir o que está por trás da persistente melancolia de Saldaña Paris.