Contos de cães e maus lobos, de Valter Hugo Mãe


Ficha técnica
Título – Contos de cães e maus lobos
Autor – Valter Hugo Mãe
Editora – Porto Editora
Páginas – 159
Datas de leitura – de 26 a 28 de junho de 2016

Opinião
Não sou uma entusiasta leitora de contos – terminam mal começam. E estes de Valter Hugo ainda mais. Contudo, que terramoto, que tsunami provocaram nas minhas emoções! É um livrinho perfeito, que nos sucumbe e que causa aquela mossa deleitosa que sempre busco nas leituras que me passam pelas mãos.
Não pretendo alongar-me muito neste texto, prefiro que as palavras do autor mostrem o quanto aquilo que saiu da sua mente romântica (“Sou muito romântico, quero melhorar o mundo.”) é fabuloso, é encantador, é encantatório, viaja diretamente ao nosso coração e o deixa pequenino, apertadinho e insuficiente para abraçar tantos sentimentos.
São doze contos. Abrem com um prefácio de Mia Couto (ele também um génio em forrar as palavras de encantamento e magia) e cada um deles é introduzido por ilustrações de doze artistas plásticos diferentes. A encadernação, as suas cores predominantes (cinzento escuro e vermelho) e o próprio título da obra iludem-nos, transmitindo-nos a ideia de que o seu conteúdo estará recheado de episódios tristes, negros, aterradores, com lobos e cães esfaimados de sangue, de dentes e garras afiadas, prontos para abocanhar vítimas indefesas. No entanto, são poucos os contos que apresentam canídeos como personagens em evidência. Apenas o que se intitula “O mau lobo” nos oferece uma versão deliciosamente enternecedora do conto infantil “Capuchinho vermelho”. Na generalidade, são textos com protagonistas humanos, desde mães, avós, netos, filhos, velhos, crianças que não querem crescer e outras que são obrigadas a fazê-lo demasiado depressa, rapazes e raparigas que compreendem a importância de afetos por gentes, coisas ou livros.
Para que compreendam melhor o quanto esta pequena obra é um exemplo daquelas que não queremos pôr de lado, daquelas que pintam o nosso mundo e o tornam melhor (nem que seja no curto espaço de tempo que habitamos nela) e um exemplo do quão genial é a arte de Valter Hugo Mãe de brincar com as palavras, de encaixá-las em frases, parágrafos, contos, histórias que nos penetram, nos encantam e nos fazem construir torrões docinhos de felicidade, deixo-vos alguns dos muitos excertos que sublinhei (e como trabalhou o lápis J):
Julgava ela que o filho se diluíra como um cubo de açúcar incapaz de adocicar o mar.”
“Nunca secava o corpo porque a água era agora o seu menino. Molhava-se, estendia as mãos em redor como radares aflitos por um abraço e imaginava que a criança fazia as ondas. Talvez as ondas fossem um modo de falar.” (conto “O menino de água”)
"Para mim, os poemas eram rendinhas de palavras, umas e outras escolhidas para tudo ficar bonito ou inusitado, como se fossem palavras de sair à rua para uma cerimónia. E as suas metáforas juntavam corpos e davam beijos e falavam em fidelidades eternas ou ansiedades. Falavam de uma vontade quase desnatural de ver alguém. Os poemas eram bordadinhos que se estendiam sobre os corpos de quem amava. Podiam ser uma roupa inteira, a única roupa." (conto “Querido monstro”)
Percebi que para dentro de nós há um longo caminho e muita distância. Não somos nada feitos do mais imediato que se vê à superfície. Somos feitos daquilo que chega à alma e a alma tem um tamanho muito diferente do corpo.” (conto “O rosto”)
Os livros não esquecem nada. Eles são para sempre a mesma memória admirável. Esquecer livros é uma agressão à própria natureza. Embora, na verdade, eles nem se devam importar, porque podem esperar eternamente.
Gostei de colocar a hipótese de os livros serem como bichos. Isso faz deles o que sempre suspeitei: os livros são objectos cardíacos. Pulsam, mudam, têm intenções, prestam atenção. Lidos profundamente, eles estão incrivelmente vivos. Escolhem leitores e entregam mais a uns do que a outros. Têm uma preferência. São inteligentes e reconhecem a inteligência.”
“Todos os livros são conversas que os escritores nos deixam. Podemos conversar com Camões, Shakespeare ou Machado de Assis, mesmo que tenham morrido há tantos anos.”
“Eu disse que ler é como caminhar dentro de mim mesmo. E é verdade. Quando lemos estamos a percorrer o nosso interior.” (conto “O rapaz que habitava os livros”)
"Eu entendi que o meu avô era como todas as mais belas coisas do mundo juntas numa só. E entendi que fazer-lhe justiça era acreditar que, um dia, alguém poderia reconhecer a sua influência em mim e, talvez, considerar de mim algo semelhante. Com maior erro ou virtude, eu prometi tentar."
À noite, deito-me como uma semente na almofada húmida do coração. Fico aninhado com a esperança de crescer esplendorosamente por dentro do amor. No verdadeiro amor tudo é sempre vivo.” (conto “As mais belas coisas do mundo”)
As pessoas que se tornam leitoras ficam logo mais espertas, até andam três centímetros mais altas, que é efeito de um orgulho de estarem a fazer a coisa certa. Ler livros é uma coisa muito certa.”
Todos os livros são infinitos. Começam no texto e estendem-se pela imaginação. (…) Mesmo os contos, de pequenos não têm nada.” (conto “Bibliotecas”)

Sinto-me mais esperta, mais inteligente, ando alguns centímetros mais alta, cheia de orgulho porque há mais de trinta anos que estou a fazer a coisa certa, a caminhar dentro de mim mesma e à conversa com escritores geniais como Valter Hugo Mãe, de quem sou uma profunda admiradora.

NOTA – 10/10

Sinopse

A escrita encantatória de Valter Hugo Mãe chega ao conto como uma delicadíssima forma de inclusão. Estes contos são para todas as idades e são feitos de uma esperança profunda. Entre a confiança e o receio, cães e lobos são apenas um símbolo para a ansiedade perante a vida e a fundamental aprendizagem de valores e da capacidade de amar. Entre a confiança e o receio estabelecemos as entregas e a prudência de que precisamos para construir a felicidade.

Arquipélago, de Joel Neto


Ficha técnica
Título – Arquipélago
Autor – Joel Neto
Editora – Marcador
Coleção – Os Livros RTP
Páginas – 459
Datas de leitura – de 17 a 25 de junho de 2016

Opinião
É entusiasmante conhecer novos autores e mais entusiasmante é quando os mesmos são portugueses. Eleva-me o orgulho luso que me corre nas veias a patamares ainda mais altos.
Joel Neto e o seu Arquipélago aterraram cá em casa muito por causa da sinopse presente na contracapa da obra e da viagem que prometiam por terras açorianas. Como ainda não tive o privilégio de viajar fisicamente a nenhuma das nove ilhas que compõem um dos últimos paraísos na terra, achei que uma ida até à ilha Terceira através de 459 páginas recheadas de palavras seria uma alternativa bem gostosa. E não me enganei.
Do princípio ao fim, a leitura de Arquipélago envolve-nos, enreda-se em nós e subjuga-nos como o típico nevoeiro açoriano que nos impossibilita ver para além do que está ao alcance das nossas mãos. Nos oito dias em que o romance me fez companhia foi assim que me senti, atrapada num redil de paisagens geográficas, climatéricas, gastronómicas, linguísticas, místicas, míticas, históricas, sociais e pessoais. Ou seja, presenteou-me com uma viagem iniciática ao mundo terceirense, uma descoberta que vai muito para além dos conhecimentos rudimentares que possuía sobre esse “calhau” perdido nas águas profundas do Atlântico.
Fiz essa viagem iniciática acompanhando de muito pertinho os passos do protagonista, o carismático José Artur que regressa à aldeia natal depois de muitos anos afastado das terras vulcânicas que o viram nascer. Na bagagem traz um casamento desfeito, uma relação atribulada com uma aluna, outra caracterizada pelo distanciamento com o seu pai e o seu único filho e muito desencanto e apatia perante o que a vida lhe poderá trazer.
É assim um homem como tanto outros sem nada em particular que o destaque dos restantes. É o perfeito retrato de um anti-herói, mas precisamente por isso não se lhe consegue resistir. Eu pelo menos não consegui. Desde que poisa os pés na Terceira, José Artur começa lentamente a renascer. Olha, aprecia, cheira, ouve, recorda. Interpreta um duplo papel – por um lado, atua como se um turista fosse, mas por outro inicia um processo de deitar raízes, de conquistar o seu lugar numa aldeia que já foi sua e consequentemente voltar a segurar as rédeas da sua existência, uma existência que apenas parece fazer pleno sentido ali, no meio do oceano, num pedaço de terra com características muito próprias.
Aliado a esta criação de raízes está uma demanda que “escavaca” a história do arquipélago, mais propriamente da ilha Terceira, que questiona verdades “inquestionáveis”, que põe em aberto, através de inúmeros indícios físicos, a hipótese de as suas terras terem sido habitadas antes de os portugueses lá terem chegado. Estão igualmente tradições, ritos únicos, que harmonizam homem e natureza, que ditam regras sociais que recordam outros tempos e que aliam a ancestralidade aos finais do século XX e quem sabe princípios do século XXI.
Arquipélago é então isto, mas é ainda muito mais. É uma obra extraordinariamente bem escrita, povoada por personagens moldadas pela paisagem que as rodeia, por uma vida carregada de inconstâncias, de reviravoltas repentinas e de uma melancolia ou acomodação tão semelhantes ao clima açoriano. Nomeio aquelas que mais me tocaram – Luísa, tão inatingível e tão cativante; Elias Mão-de-Ferro, que carrega uma vida de dor e de sofrimento; José Guilherme, avô de José Artur e que nos conquista pela sua retidão e sentido do dever; La Salete, que nos amansa com a sua presença e nos conforta os sentidos e a alma através dos pratos que confeciona; André, filho de José Artur, uma surpresa de responsabilidade e maturidade e finalmente Maria Rosa, filha de Luísa, comparsa de José Artur nas suas aventuras hortícolas e que me derreteu desde o primeiro contacto que tive com ela.
Este romance é ainda um hino ao que de mais genuíno tem a ilha Terceira – as suas iguarias gastronómicas (é humanamente impossível não salivarmos com as descrições magistralmente olfativas e gustativas que o autor faz da redescoberta culinária de José Artur na modesta sala do “tasco” do “Cabrinha”, pai de La-Salete) e a sua língua, um português mais antigo, digamos mais original, e temperado com americanismos e regionalismos.
Por fim, este romance é, na minha opinião, a confirmação de Joel Neto enquanto autor, pois, para além do que já foi referido, Arquipélago está maravilhosamente bem escrito, bem pensado e bem estruturado. A escrita é singela, mistura partes carregadas de mistério, de ações comezinhas, de dia-a-dia de gente simples, arreigada ao seu espaço, às suas tradições e aos seus ideais, com outras mais intimistas, do foro mais privado, que nos falam de culpa, de ódio, de ressentimento, de recordações, de apaziguamentos, de amizades e de amores – de pai e filho, de neto e avô, de homem e mulher, de irmãos. Dei frequentemente comigo a sorrir, a sofrer, a ansiar por respostas, a mostrar estupefação perante mais uma reviravolta que adiava a resolução dos mistérios que apimentam a narrativa e sobretudo a partilhar com José Artur das saudades de uma infância na companhia dos avós, aquela que considero a mais memorável de todas.
Ora tudo isto é mais do que suficiente para afirmar que Joel Neto criou uma das melhores obras que li nos últimos tempos e que me vai obrigar a querer ler o que publicou e que publicará – a começar pela sua última publicação – A vida no campo.
Recomendadíssimo! Sem dúvidas!

NOTA – 10/10

Sinopse

Açores, 1980. Quando um grande terramoto faz estremecer a ilha Terceira, o pequeno José Artur Drumonde dá-se conta de que não consegue sentir a terra tremer debaixo dos pés. Inexplicável, esse mistério há-de acompanhá-lo durante toda a vida. Usando a mestria narrativa e o apuro literário dos clássicos, bem como um dom especial para trazer à vida os lugares, as gentes e a História dos Açores, Joel Neto apresenta um romance de grande fôlego, em que a ilha é também protagonista de uma epopeia corajosa e emocionante como há muito não se via na literatura portuguesa. 

Ambas as mãos sobre o corpo, de Maria Teresa Horta


Ficha técnica
Título – Ambas as mãos sobre o corpo
Autor – Maria Teresa Horta
Editora – D. Quixote
Páginas – 141
Datas de leitura – de 14 a 16 de junho de 2016


Opinião
Devia ter adivinhado. Devia ter adivinhado pela reação da Nancy quando se deu conta de que esta obra estava na minha wishlist e ma emprestou. Diplomata e querida como é, a minha Nancinha não foi capaz de dizer em palavras que a leitura deste romance iria ser uma deceção. Mas o que não foi capaz de dizer em palavras disse-o claramente através do olhar e de outros exemplos de linguagem não-verbal tão mais claros e significativos que muitas palavras.
Este foi o primeiro livro de ficção de Maria Teresa Horta, o primeiro romance de uma autora até aí consagrada pela poesia. E o contacto inicial que tive com as palavras que abrem este pequeno livro confirmam essa consagração poética, já que até ao final da leitura me senti mergulhada no mundo de uma poesia escrita em prosa.
Nunca fui uma admiradora acérrima da poesia. Sempre tendi para a prosa, porque é mais objetiva, mais clara, mais verosímil e porque possibilita ao escritor criar uma simbiose perfeita entre o melhor de dois mundos, entre um lado mais lírico, mais poético e outro povoado de tempos, espaços, personagens, narradores e enredos. Por estas razões, entusiasmei-me pela sinopse de Ambas as mãos sobre o corpo e embarquei na sua leitura com algumas expectativas.
Contudo, aquilo que a Nancy me tentou dizer confirmou-se e nunca me consegui encontrar nas 141 páginas da obra… Não há enredo definido, não sabemos quem o protagoniza verdadeiramente, se é apenas uma mulher, se são várias, se são as múltiplas facetas de apenas uma. A linguagem é belíssima, mas muito abstrata, de difícil decifração, ou seja, o espelho daquele género de poesia que não me conquista, que não entra em mim, que não me fala e que me deixa renitente perante a maior parte das antologias poéticas. Fui avançando na leitura como se estivesse a desbravar um caminho numa selva inexplorada, densa, sem aparentemente nenhuma brecha que me permitisse apreciar algo mais do que o ato de desbravamento em si. Resultado – uma viagem curtinha, mas custosa, temperada com pitadas de frustração e desilusão…
Não sei se voltarei a ler Maria Teresa Horta. Talvez não… Não enquanto durar, enquanto se mantiver o gostinho “algo amargo” do desapontamento e que me fez sentir incapaz de saborear a que foi considerada “uma das mais inquietantes obras da moderna literatura portuguesa”, mas que para mim falha por não me penetrar na alma…
Resta-me agradecer à Nancy por ma ter emprestado e dizer-lhe que agora compreendo tudo aquilo que me disse com o olhar, alguns trejeitos e silêncios mal disfarçados.

NOTA – 04/10

Sinopse

Primeiro livro de ficção de Maria Teresa Horta, publicado originalmente em 1970, "Ambas as Mãos Sobre o Corpo" veio revelar que o imenso talento da autora não se limitava à poesia. Conjunto de narrativas que, fundindo-se, se organizam num romance fragmentado, nele decorre o retrato moral e estático de «alguém» cuja existência larvar nunca se eleva ao nível do concreto ou nunca se individualiza no seio da existência arquetípica. Livro de momentos, de grandes pausas iniciáticas, de silêncios expressivos, cristalinamente fantástico porque dominado pela compreensão introspetiva e por um intimismo sagaz, circula da narração omnipresente até ao campo raso da corrente de consciência, e cerca-se ou adorna-se de sucessivas deambulações pelos domínios da autointerpretação, permitindo que o leitor se aperceba da solução de um estranho enigma: o da decifração do absurdo deste carácter poético e onírico, este nada, mulher ou sombra fantasmática de valores humanos que se ocultam em cada gesto, em cada segundo do decurso lentíssimo da vida.

História da menina perdida, de Elena Ferrante


Ficha técnica
Título – História da menina perdida
Autor – Elena Ferrante
Editora – Relógio D’Água
Páginas – 421
Datas de leitura – de 06 a 14 de junho de 2016

Opinião

Pensei: agora que Lila se deixou de ver tão nitidamente, tenho de me resignar a não voltar a vê-la.” (pág. 421)

Depois de praticamente nove meses encerra-se a tetralogia de A Amiga Genial. Encerra-se uma viagem por terras italianas, sobretudo pela cidade natal das duas protagonistas. Encerra-se a porta que me deu acesso privilegiado aos espaços, aos tempos e às vidas de duas protagonistas fantasticamente construídas pela mão genial da sua criadora. Encerram-se as derradeiras páginas de uma história que me possibilitou ser apresentada a uma das autoras mais promissoras da atualidade literária internacional. Encerra-se um ciclo que me “obrigou” a comprar os quatro volumes desta tetralogia e Crónicas do mal de amor.
Mas não é um encerramento definitivo. Como poderia sê-lo se o fascínio se mantém, se Ferrante marcou a sua posição no meu mundinho literário?
Esse fascínio e essa paixão são as consequências inevitáveis de um estilo cru, direto, realista e sem preâmbulos fantasiosos ou barrocos. Numa linguagem clara, simples faz-nos penetrar naquele que considero ser um reflexo muito verosímil de Nápoles da segunda metade do século XX e de Itália em geral. Pondo em palco um punhado generoso de personagens provenientes de várias classes sociais, Ferrante transporta-nos para vários espaços do seu país natal e muito provavelmente da cidade que a viu nascer ou crescer. Leva-nos sobretudo a entrar num bairro degradado, com poucas condições, mas onde se respira aquele ambiente que de imediato nos recorda filmes e séries que foram passando na RTP dos anos oitenta e noventa e que retratavam um povo mergulhado em conflitos sangrentos com a temível máfia, em constante sobressalto, mas ao mesmo tempo mostrando um orgulho entremeado com desconfiança, altivez e uma raiva que explodia em violentíssimas agressões físicas e verbais.
Como sabemos pela leitura dos volumes anteriores, foi nesse bairro e nesse ambiente atrás descrito que as nossas duas protagonistas cresceram. Contudo, enquanto Lila/Lina demonstra que, por muitas voltas que a sua vida dê, o bairro continua a ser a sua âncora, Lena/Lenú desde pequena refugiou-se nos estudos ansiando que os mesmos lhe oferecessem a sonhada possibilidade de escape, não só espacial como social. Assim, no final do terceiro volume, encontramos Lena a viver em Florença, casada com Pietro, filho de uma família abastada e socialmente reputada e Lila subindo a pulso na vida, mas nunca pondo em questão o abandono de Nápoles. Mas, por muito que Lena queira esquecer, arrumar num cantinho a sua existência anterior, as suas origens, estas perseguem-na e provocam uma reviravolta irremediável – o amor da sua infância, da sua adolescência de toda a sua vida reaparece e todos os seus planos, as suas diretrizes caem por terra. Enlouquecida pela constatação de que Nino a quer, a deseja, a persegue, Lena larga tudo – um casamento estável, uma vida desafogada, o marido, as filhas e segue Nino para onde quer que ele vá. E será assim que regressará a Nápoles e mais tarde ao bairro de onde tanto quis escapar. Lá, voltará ao convívio com Lila, à cumplicidade com a sua amiga de infância e aos velhos sentimentos de inferioridade, de ressentimento, de dúvida, de ciúmes. Voltará igualmente a um modo de vida sempre pontuado por superstições, rumores, medos, raivas, agressões num dialeto que em poucas palavras fere mais do que socos e pontapés e muita corrupção e criminalidade.
Este quarto e último volume acompanha então a vida adulta das duas amigas e leva-nos ao ponto de partida de toda a tetralogia – Elena e Lina já são senhoras de uma certa idade, já têm netos, mas a cumplicidade e amizade de outros anos desvaneceu-se. Contudo, com o súbito desaparecimento de Lina, que partiu para lugar incerto sem deixar qualquer rasto, Lena vê-se compelida a pôr em papel aquilo que a amiga sempre lhe pediu que não fizesse – contar as suas histórias, as suas vidas. Portanto, munida das suas recordações, do seu ponto de vista, oferece aos leitores uma perspetiva da amizade umbilical, estranha, ressentida, conflituosa, biliosa que sempre a uniu e unirá a Lila.
Considero que esta tetralogia é a consagração de uma Elena Ferrante que já me havia entontecido com as três histórias que compõem Crónicas do mal de amor. É impossível não nos enredarmos naquilo que esta misteriosa autora publica, porque, para além de personagens densas, redondas e maravilhosamente conflituosas, as suas narrativas são visuais, são realistas, são poderosas e põem, por um lado a nu a fealdade, a insegurança, a conflituosidade com os outros e consigo mesmo de qualquer ser humano e, por outro, os ambientes sociais de espaços degradados, pobres e de espaços requintados e mais afortunados.
Sendo assim, volto a aconselhar a leitura desta tetralogia e, já agora, de tudo o que já foi publicado por Ferrante, pois, apesar da leitura dos quatro volumes ter cimentado a relação antagónica de atração-repulsa que mantenho com Nápoles, percebo que esse cimentar é uma consequência do poder das palavras que provêm da genialidade da autora italiana.
Antes de terminar, apetece-me colocar a questão - de quem será a história da menina perdida?... Será da filha de Lila?... Será da própria Lila?... Será de Lena que nunca se encontrou verdadeiramente, que nunca se sentiu dona de si?...
Porque pode ser útil, deixo aqui o link dos comentários às três primeiras obras:
- A amiga genial
- História do novo nome
- História de quem vai e de quem fica

NOTA – 08,09/10

Sinopse

Deixando o marido em Florença, Elena volta a Nápoles para viver com Nino Sarratore, esperando que este se separe da mulher. É agora uma escritora reconhecida e procura escapar ao ambiente conflituoso do bairro onde cresceu e a sua família continua a viver. Evita encontrar Lila. Mas as duas amigas de infância não conseguem manter-se distantes e acabam mesmo por engravidar ao mesmo tempo, o que lhes permite reencontrar, por algum tempo, a passada cumplicidade.

Desabafos intercalados com títulos de obras que muito me apetecem…


Hoje termina a Feira do Livro de Lisboa. Ontem terminou a de Madrid. E eu não fui a nenhuma delas… Se a questão monetária não pesasse na hora de tomar qualquer decisão, nem teria hesitado – teria apanhado o comboio ou o avião e ter-me-ia submergido nos seus corredores repletos de stands a abarrotar de livros que me pediriam para trazê-los para casa…
Não vale a pena iludir-me com a “converseta” de que em setembro haverá Feira do Livro no Porto, porque não há comparação possível entre a que hoje em dia se organiza nos Jardins do Palácio e aquelas que todos os anos têm lugar no Parque Eduardo VII e no Parque do Retiro. Basta olhar para os números que nos informam das editoras participantes e correspondentes stands. E mais não digo.
Como tal, tenho a perfeita noção de que aquele prazer embriagador que me movia em anos passados sempre que punha os pés nas antigas edições da Feira do Livro do Porto (a que era levada a cabo em maio, organizada pela APEL) só o voltarei a sentir quando puder finalmente conhecer a deliciosa magnitude das Feiras de Lisboa e/ou de Madrid. Por tudo. Porque sei que será aí que a oferta me deixará tonta de felicidade, de indecisão, de oferta esmagadora e de angústia por não ser capaz de me vir embora com os braços carregadinhos de todos os livros que tanto quero ter em minha casa…
É óbvio que aquilo que o N. diz a toda a hora faz muito sentido – “O dinheiro que gastarias em viagem, seja para ir a Lisboa, seja para ir a Madrid, é mais do que suficiente para entrares numa livraria qualquer e vires de lá com uma saca cheia.”. Contudo, quem, como eu, experiencia sentimentos inebriantes, febris, de frémito indescritível sempre que se vê rodeada por infinitas possibilidades de soterrar-se em pilhas e pilhas de livros, respirando o ambiente único de um certame literário como uma Feira do Livro (onde todos amamos os livros) sabe do que falo e sabe que não é a mesma coisa. É uma substituição que nos satisfaz ao longo de todo o ano, mas que não nos sacia nesta particular época.
Para agravar a azia, hoje é a segunda segunda-feira do mês, o que significa que a Bertrand está com descontos de 20% a 50%, mas apenas em livros que tenham sido editados há mais de 18 meses, segundo a malfadada lei que saiu há uns tempos e que proíbe que um desconto superior a 10% seja feito em novidades. Tenho na minha wishlist um ou outro livro que poderia comprar com esses 20% de desconto, mas não me encheriam as medidas, não hoje (ninguém me aguenta quando estou com “azia literária” L). Quero aqueles que ainda ontem “cheirei” e “acariciei” na FNAC ou outros que me piscam o olho através dos blogues que vou seguindo:
§  Gramática do medo, de Maria Manuel Viana e Patrícia Reis
§  História de um cão chamado Leal, de Luís Sepúlveda
§  O livro, de Zoran Zivkovic
§  A biblioteca, de Zoran Zivkovic
§  O rouxinol, de Kristin Hannah
§  As vozes do rio Pamano, de Jaume Cabré

Enfim, não é difícil adivinhar que a frustração reina por estes lados… Resta-me afogar as mágoas “perdendo-me” nas páginas do livro que tão boa companhia me tem feito. Estou perto de encerrar a tetralogia de Elena Ferrante e apesar de a história ser bruta, sem comedimentos, com uma realidade crua, respiro de sossego, de prazer cúmplice enquanto vou desfolhando páginas de muito boa literatura. Assim, aniquilo a “azia literária” com o remédio mais eficaz que conheço – uma boa e suculenta leitura J

Em teu ventre, de José Luís Peixoto


Ficha técnica
Título – Em teu ventre
Autor – José Luís Peixoto
Editora – Quetzal
Páginas – 165
Datas de leitura – de 30 de maio a 03 de junho de 2016

Opinião
Reconciliei-me com José Luís Peixoto. Andava de candeias às avessas com o autor desde que li Nenhum olhar em 2011 e me afoguei numa tristeza contagiosa que me puxou para mundos dos quais prefiro estar distante. Cinco anos depois José Luís Peixoto voltou a entrar cá em casa sobretudo por insistência do maridinho que estava curioso por ler a sua última publicação – a novela Em teu ventre.
Não sou crente. Não acredito em nada do que está relacionado com os milagres de Fátima. Mas não fico indiferente à devoção daqueles que sim, acreditam. Nem consigo evitar o arrepio e a sensação de apaziguamento que se instalam em mim nas poucas vezes que ponho os pés numa igreja ou no santuário de Fátima. Sendo assim, entrei na leitura de Em teu ventre dividida, com a credulidade que me caracteriza e um punhado de curiosidade em comprovar como abordaria o autor um tema tão controverso e sensível.
Contudo, e tal como o título deixa entrever, esta novela não é apenas sobre o milagre de Fátima. Penetra no ventre feminino e traz-nos as vozes das mães – da mãe de Lúcia, uma mulher do povo, simples, religiosa mas que questiona veementemente as visões da filha e ao mesmo tempo a tenta proteger da horda de gente que lhe invade o pátio, a casa e a vida para que a sua filha milagreira lhes traga luz, saúde e paz nos dias vindouros; de uma mãe anónima que se dirige a seu filho e lhe aponta a sua desilusão, lhe questiona os atos, a desatenção e o consequente sofrimento que a sua falta de carinho, de uma palavra lhe provocam; de um Deus que só posso apelidar de feminino e que, como voz divina, de entidade suprema, relembra que nos deu vida, que “Tudo começa e tudo termina pela esperança, que quando uma mãe chora, o mundo inteiro chora com ela e que até em tudo o que fez pôs um pouco da sua progenitora.
A nível gráfico é fácil distinguirmos as três vertentes que compõem Em teu ventre. Em registo quase poético, como se versos fossem, encontramos a voz dessa entidade suprema. Entre parênteses, como se apenas fosse uma informação adicional, pouco importante, deparámo-nos com as palavras da mãe sofrida, desiludida, questionadora e que as dirige a um filho desconhecido. Finalmente, em texto corrido vamos acompanhando o dia-a-dia de Lúcia e dos outros pastorinhos, desde as aparições de maio até às de outubro.
Todas estas vertentes da novela entranham-se-nos porque o estilo do autor assim o “exige”. A linguagem absolutamente lírica, intensa, encantatória e arrepiante que transvasa da escrita de Peixoto é magistral e foi o que permitiu a minha reconciliação com o autor. Por outro lado, como mãe ser-me-ia impossível não identificar-me com passagens muito maternais, umbilicais. Por fim, a personagem de Lúcia, que não é mais do que uma criança (como é bem vincado ao longo da obra) está tão bem construída como tal, que todos comungamos com o peso que as aparições trouxeram à sua vida, todos sentimos a necessidade de a amparar, de a proteger e ainda de a perdoar quando ela mais não faz do que agir como uma menina de dez anos esmagada por uma responsabilidade com o tamanho e o peso de milhares de fervorosos devotos da religião católica.
         Concluindo, é com um sorriso nos lábios e o prazer especial da reconciliação ainda presente que recomendo esta obra de Peixoto a todos aqueles que se derretem e buscam incessantemente submergir-se na magia das palavras.

         NOTA – 08/10

         Sinopse
         A partir de um ponto de vista inteiramente novo, Em Teu Ventre apresenta o retrato de um dos episódios mais marcantes do século XX português: as aparições de Nossa Senhora a três crianças, entre Maio e Outubro de 1917.
Através de uma narrativa que cruza a rigorosa dimensão histórica com a riqueza de personagens surpreendentes, esta é também uma reflexão acerca de Portugal e de alguns dos seus traços mais subtis e profundos. A partir das mães presentes nesta história, a questão da maternidade é apresentada em múltiplas dimensões, nomeadamente na constatação da importância única que estas ocupam na vida dos filhos.

O sereno prodígio destas páginas, atravessado por inúmeros instantes de assombro e de milagre, confere a Em Teu Ventre um lugar que permanecerá na memória dos leitores por muito tempo.

Balanço mensal - livros lidos e adquiridos em maio


Maio é sinónimo de trabalho intenso, de listas intermináveis de “coisas para fazer”, de burocracia que amontoa por todos os lados, de paciência praticamente esgotada e escassos minutos onde as pestanas lutam uma luta inglória perante o peso do sono e o ritmo das leituras avança com passos de homem artrítico…
Em 31 dias li apenas 4 livros e tenho noção, tal como referi na opinião do quarto – Assim começa o mal, de Javier Marías – de que penei para conseguir levar a bom termo a leitura do mesmo, pois dei muitas vezes comigo mesma a ler dois ou três parágrafos e a nada assimilar destes…
 Mas deixando os lamentos de lado, sobretudo porque já cheira a liberdade condicional, digo que abri as leituras de maio com a surpresa do mês, uma surpresa que confirmou as enormes expectativas que tinha perante o frenesim que o nome da autora provoca na blogosfera literária. O jardim dos segredos, de Kate Morton, é daquelas obras que não conseguimos parar de ler e que parecem não querer descolar das nossas mãos. É dona de uma narrativa empolgante, repleta de mistérios aos quais precisamos desesperadamente dar respostas e povoada de personagens femininas cativantes, donas de personalidades fortes e que se mantêm connosco mesmo quando encerramos a leitura.
É óbvio que é uma missão pesada aquela que carrega qualquer obra que se segue a uma a que damos a nota máxima e talvez por isso tenha sido (na opinião do maridinho) tão mazinha naquilo que coloquei no comentário que escrevi sobre a última publicação de Isabel Allende – O amante japonês. O maridinho pode ter alguma razão no que disse, mas para quem se enamorou perdidamente pelas primeiras obras da escritora chilena compreende que não há comparação possível e que a história de Alma Belasco e do seu amante japonês defrauda e desilude quem busca aquilo que sentiu e vivenciou com A casa dos Espíritos, Paula ou De amor e de sombra (para citar alguns).
Los besos en el pan trouxeram-me de novo Almudena Grandes. E que regresso tão saboroso, Dios mío! Volto a dizer que não é, na minha opinião, a sua melhor obra, mas tudo o que amo e venero nesta extraordinária autora, que nunca mais volta a ser traduzida cá, se respira nas páginas de Los besos en el pan – um número generosíssimo de personagens deliciosamente próximas de nós, referências, costumes, tradições que aproximam e unem os dois povos que habitam a península ibérica, que passam por coisas “tão insignificantes” como beijar o pão que cai ao chão para assim “limpá-lo” da sujidade e sobretudo aquilo que o passado (também aí tão semelhante entre os dois países) e os mais velhos nos podem transmitir e ensinar para viver com dignidade e cabeça erguida numa época de crise económica, de ideais e de valores.
Encerrei o mês lendo outro dos grandes romancistas espanhóis. Assim começa o mal, de Javier Marías, vem juntar-se aos outros romances seus que já havia lido e em linhas gerais não desaponta quem admira o seu estilo quase barroco, de linguagem cuidada, repleto de referências que denotam o vasto conhecimento que o autor possui da sua língua, da literatura moderna e clássica e a influência claríssima que as obras de Shakespeare trazem para mais um romance cujo título é retirado desse universo shakespeariano. Não posso afirmar que esta última obra de Marías seja a sua melhor – prefiro claramente Coração tão branco – mas repito que não defrauda, de maneira nenhuma.
Depois de no mês de abril não ter cedido à tentação e não ter comprado nem um livrinho, este mês pequei muito pouquinho, já que apenas adquiri mais uma obra de Kate Morton – O segredo da casa de Riverton – e os meus “homens” ofereceram-me no dia da mãe Cartas à mulher do meu futuro, de Péter Gardós. São duas obras que moravam na minha wishlist e que agora já moram na minha estante J A ver vamos quando a ordem cronológica ditará que os leia J
Deixo-vos por fim os links para acederem às opiniões completas das leituras de maio:
§  O jardim dos segredos, de Kate Morton
§  O amante japonês, de Isabel Allende
§  Los besos en el pan, de Almudena Grandes
§  Assim começa o mal, de Javier Marías