Rescaldo natalício

Terça-feira, 29 de dezembro de 2015




Saber que tenho algo de bom para ler debaixo da árvore de Natal é uma das sensações mais aprazíveis desta época do ano. Não é necessário espreitar a pilha de prendas que vai engordando sob os ramos adornados do pinheirinho para saber de antemão que muitas das que têm o meu nome me confortarão com todo o género de prazeres que só uma suculenta leitura tem o condão de oferecer-me.
Este ano não foi exceção. Fui presenteada com nada mais nada menos do que quatro livros, quatro estupendas viagens pelo mundo de histórias que preencherão os meus dias de 2016 e que farão de mim alguém mais feliz. Somando a esses quatro, fui presenteada com uma quinta obra (oferecida a mim e ao N.) e o maridinho ainda recebeu mais três. Ou seja, no total, a estante cá de casa recebeu oito novos inquilinos que esperarão pacientemente que eu os tome, um a um, percorra as prateleiras em busca do seu espacinho correspondente, os aconchegue junto aos seus pares e acaricie a sua lombada, prometendo que, em breve, mergulharei nas suas páginas e na magia e no encantamento das viagens que me irão proporcionar.
É com aquele frémito que se apodera de mim sempre que tenho livros novos e com um brilho especial no olhar que volto a deixar aqui a fórmula matemática que tem reinado nestes últimos dias – “Natal + livros = felicidade completa” – e a lista dos oito livros que a justificam:

§  O tímido e as mulheres, de Pepetela
§  Flores, de Afonso Cruz
§  O remorso de Baltazar Serapião, de Valter Hugo Mãe
§  A morte do pai, de Karl Ove Knausgard
§  O paraíso segundo Lars D., de João Tordo (oferecido a mim e ao N.)
§  As Flores de Lótus, de José Rodrigues dos Santos (oferecido ao N.)
§  Os anagramas de Varsóvia, de Richard Zimmler (oferecido ao N.)
§  Constança, de Isabel Machado (oferecido ao N.)


Não podem deixar de concordar, pois não? É realmente um assombroso punhado de histórias que preenchem mais uns buraquinhos das minhas estantes e que despertam aquela desenfreada vontade de fechar as portas ao mundo e de devorá-las com aquela sofreguidão J

Una palabra tuya, de Elvira Lindo

Sábado, 26 de dezembro de 2015




Opinião
Una palabra tuya veio cá para casa por empréstimo. Emprestou-mo a minha querida Nancy. Quando mo entregou, alertou-me para o facto de que tinha detestado a personagem principal, que havia sentido vontade de pôr o livro de lado e que só não o fizera porque era a única obra que havia levado consigo de férias. Contudo, a persistência não só levara a leitura a bom termo como também a havia brindado com um desenlace surpreendente, que apaziguara a repulsa e aversão provocadas pela protagonista e que a haviam levado a aconselhar-me a conhecer esta obra.
Recordo que em setembro, a propósito da protagonista desta obra e do impacto estrondoso que me provocou Nada, de Carmen Laforet, entabulámos uma deliciosa conversa com uma colega sobre o quanto nos perturbam e bulem connosco personagens como Rosario (protagonista de Una palabra tuya) e como o facto de as mesmas serem detestáveis e ao mesmo tempo enfeitiçadoras ser uma prova contundente da mestria de quem as cria. Ora, não poderia estar mais de acordo com esse facto, porque Rosario é realmente alguém que logo desde a primeira página da obra nos provoca aquele trejeito de desagrado e até repulsa que fazemos quando estamos perante uma pessoa, real ou ficcionada, que nada possui de cativante ou agradável.
Não gosta da sua cara nem do seu nome. Não gosta do que vê ao espelho nem das recordações, sons e desilusões associados à verbalização do seu nome. Não gosta da sua vida, não gosta dos sonhos que não se concretizaram, não gosta de ter a seu cargo uma mãe a caminho da demência e de esta sempre ter-se mostrado desiludida com as escolhas e os atos da filha. Não gosta dos vários empregos que teve e muito menos daquele de onde provém atualmente o seu sustento. Não gosta dos companheiros de trabalho e não o esconde. Suporta com evidente fastio a companhia pegajosa de Milagros, uma colega de infância e a quem deve não estar desempregada, e as torpes tentativas de Morsa para ganhar um lugar na sua cama e mais tarde no seu coração e na sua vida. Apesar de nada possuir que a destaque dos demais, exibe constantemente uma superioridade e um distanciamento que a tornam o alvo perfeito da chacota e da intriga alheia, bem como do desprezo dos leitores. Não há dúvida que é uma personagem irritante e a quem me apeteceu “pregar um par de estalos” variadíssimas vezes ou simplesmente virar-lhe costas e deixá-la a despejar as suas grandiosas verdades estereotipadas…
Rosario é tudo isto. Mas é também uma mulher de quem não conseguimos deixar de ter pena e malgrado meu e de muitos outros leitores (não é, Nancinha?) vontade de estender a mão e oferecer algum consolo. Porque por debaixo daquela capa de superioridade, arrogância e presunção, esconde-se uma mulher sofrida, desiludida consigo e com a vida e que apenas quer aquilo que todos nós queremos – gostar de si e ser gostada pelos outros, começando pelos seus entes queridos. Esconde-se uma mulher que colocou a fasquia demasiada alto, mas cujo esforço sempre ficou aquém. Esconde-se uma mulher que inibe os outros com a sua frieza. Esconde-se uma mulher que se apercebe da importância que os demais têm na sua vida tarde demais. Esconde-se uma mulher que tentará remediar o que ainda tem remédio, porque só a morte não o tem.
Una palabra tuya oferece-nos assim uma obra crua, desoladora, com uma protagonista que nada tem de heroína, mas de humana, com as suas contradições, os seus defeitos e os seus sonhos. Está escrita num estilo muito direto, quase de confidência e consegue agarrar-nos com uma mistura de emoções e um desenlace que compensa o desagrado e enfados sentidos antes.

NOTA – 07/10

Sinopse

Rosario y Milagros son barrenderas y se conocen desde niñas. Tan vulnerable en apariencia como firme pese a sus contradicciones, Rosario relata los años transcurridos junto a esa fuerza de la naturaleza que es Milagros; años de tropiezos, ilusión, miedo y realidades que han dado forma al temor de no merecer ser felices. Una palabra tuya es el retrato de dos mujeres, de dos trayectorias vitales, una hacia la nada más cruel desde una vida triste y la otra hacia un futuro expectante desde una vida redimida; y en medio, la piedad y el perdón.

Feliz Natal!!!!!!!!





O sabor dos meus livros deseja-vos um delicioso Natal, recheadinho de alegria e de docinhas e saborosas leituras J

Beijinhos a todos e muito boas leituras!!!

El río del Edén, de José María Merino

Terça-feira, 21 de dezembro de 2015




Opinião
El río del Edén é o quarto e último livro que leio daqueles que regressaram na minha mala da escapadela que fiz em agosto a terras galegas. A sua sinopse e belíssima capa tinham-me piscado o olho já há algum tempo, mas só caí em tentação quando descobri na Fnac de A Coruña a correspondente edição de bolso, bem mais baratinha J
As suas quase trezentas páginas contam-nos uma história que bem poderia ser a de alguém que nos é muito próximo. Ao lê-la percorre-nos a sensação de estarmos sentados no nosso sofá, comodamente sentadinhos a ouvir os desabafos de alguém que viveu um grande amor, que o perdeu muito por culpa sua, que se sente perdido num dia-a-dia que se arrasta sem grandes ou significativos câmbios, que tenta abafar dentro de si as facetas mesquinhas, intolerantes, preconceituosas e assim perdoar-se e conseguir o perdão daqueles que ainda preenchem a sua vida e da mulher que tanto amou e a quem tanto sofrimento infligiu.
Daniel é um homem que já passou dos quarenta. Detentor de uma vida estável e de um bom emprego, recorda os anos de juventude, sobretudo aqueles em que conheceu Tere, se apaixonou perdidamente por ela e juntos partilharam uma viagem idílica a um recanto edénico perdido em terras banhadas por um ainda intocado rio Tejo. Nos onze dias que desfrutam juntos desse paraíso, os dois vivem como Adão e Eva – extasiam-se com o cenário natural que os rodeia, desfrutam dos seus encantos, dormem e comem quando bem lhes apetece, amam-se em qualquer pedacinho de terra ou submergidos nas águas límpidas do rio e sentem-se únicos, detentores do que verdadeiramente define o paraíso, do que define a derradeira e perfeita história de amor entre um homem e uma mulher.
Contudo, o sonho começa a esvair-se e a dissipar-se a partir do momento em que regressam à realidade. A rotina instala-se, a convivência, os dissabores, as frustrações, os sonhos e os planos de um que não são os mesmos do outro inexoravelmente fazem com que as águas do rio do Éden percorram outras paragens, conheçam obstáculos e exijam sobretudo de Daniel determinação, coragem e confiança. O idílio esboroa-se e o veneno da desconfiança e do egoísmo enraízam-se. Tudo se complica ainda mais quando Tere toma decisões sem consultar Daniel, decisões que este considera fundamental que sejam partilhadas, tomadas a dois. Da última nasce um filho, mas um filho que não é perfeito, que traz deficiências congénitas herdadas da parte da mãe. É o início do fim. Do fim de um amor edénico, idílico.
El río del Edén ofereceu-me o primeiro contacto com a escrita de José María Merino. Foi um primeiro contacto bastante agradável, já que o seu estilo caracteriza-se pela serenidade, por uma escrita linear, simples, sem grandes arrebatamentos, com uma curiosa e prazenteira mistura da realidade com a fábula, o lado encantatório, dos espaços naturais e da associação que os mesmos podem ter com a complexidade que compõe o ser humano.
Contudo, não posso dizer que me tenha apaixonado, que me tenha extasiado com a leitura desta obra, porque achei-a interessante, mas demasiado plana, sem aqueles píncaros de emoção ou de ação que nos desarmam. Considero que lhe falta sal, condimentos para que nos deixem com água na boca e com uma vontade louca de repetir, de alcançar a almejada saciedade J
Sendo assim, a escapadela a A Coruña possibilitou-me duas leituras fenomenais – La borra del café, de Mario Benedetti e Palmeras en la nieve, de Luz Gabás – e outras duas agradáveis, interessantes, mas algo insossas – Años lentos, de Fernando Aramburu e este…

NOTA – 08/10

Sinopse

Una historia conmovedora de un padre y su hijo adolescente que te robará el corazón. "Dicen que un ser humano tarda poco más de ocho segundos en enamorarse, y mientras mirabas y escuchabas a aquella chica, sentiste hacia ella ese invencible afán de proximidad con que el amor se reviste cuando surge. "En compañía de su hijo Silvio, Daniel recorre los parajes del Alto Tajo, lugar legendario en el que piensa esparcir las cenizas de su esposa. Son los mismos lugares en que el hombre y la mujer, en su primera juventud, compartieron una fuerte pasión amorosa. Al hilo de la caminata, el hombre recuerda su emocionante historia de amor, traición y arrepentimiento. Narrada desde una "segunda persona "que compone a la vez un flujo de conciencia y una narración objetiva, esta nueva novela de José María Merino vuelve a confrontar los ámbitos ajenos e indiferentes de la naturaleza -los espacios naturales- con ese desasosiego sentimental y moral que está en la sustancia misma del ser humano. El río del Edén conforma un drama amoroso y familiar muy propio de los tiempos que vivimos, y que sin embargo mantiene vigentes aspectos de la realidad que han sido permanentes estímulos para la ficción literaria.

Palmeiras na neve, de Luz Gabás

Terça-feira, 15 de dezembro de 2015




Opinião
Ainda não recuperei do abanão que se instalou dentro de mim desde que há três dias encerrei a leitura de Palmeiras na neve. Ainda não tive coragem para entregá-la ao seu lugar na estante. E, pior do que isso, ainda não me entreguei à leitura do livro que desde domingo me faz companhia. Não pelo menos como sempre me entrego…
É esse o poder de uma obra que me abalroa. Que se entranha em mim como uma explosiva história de amor. Ou que se me mete no corpo como África se mete nas entranhas e na alma de quem algum dia pousou os pés nas suas terras e de lá mais não quis regressar.
Sabia, com aquele saber cá de dentro, que a obra de Luz Gabás me iria conquistar. Sabia-o muito por culpa da opinião de um bloguista espanhol que sigo com alguma devoção (e que nunca me defrauda) e dos vídeos que vão proliferando no youtube da adaptação da obra que foi feita para a grande tela e que estreará em Espanha no dia de Natal. Por tudo isto, tive que comprar a edição original da obra na última vez que estive em terras espanholas e, surpresa das surpresas, tive que comprar a tradução da mesma na Feira do Livro do Porto, onde a encontrei a preço de saldos e não hesitei a trazê-la para casa, com a desculpa perfeita de que, assim, o maridinho também poderia disfrutar de “Uma história comovente que recorda o nosso passado colonial e as lendárias plantações de África”.
Como o final de um período escolar é uma época caótica e carregada de trabalho e ainda mais responsabilidade, decidi ler a versão em português porque assim o meu cérebro não teria que esforçar-se tanto e leria mais depressa. Contudo, mais ou menos a meio da obra, vi-me obrigada a pôr de lado a obra em português e recorrer à sua versão original principalmente porque a tradução contém várias gralhas e algumas graves, que denotam falta de brio e de atenção. Apesar deste percalço linguístico, admito que nada conseguiria estragar o prazer e a sofreguidão com que absorvi, traguei as mais de 500 (700 na versão original) páginas da obra de estreia de Luz Gabás. Só mesmo um cataclismo pessoal ou familiar me impediria de me entregar totalmente e sem reservas a uma história que possui tudo, mas tudo para não me abandonar jamais.
Não há nada de extraordinário ou de original na narrativa criada por Luz Gabás. A autora socorre-se de uma herança histórica partilhada por muitos espanhóis que, tal como os seus familiares, trocaram as encostas geladas, inóspitas e cinzentas de aldeias pirenaicas e desafiaram-se a percorrer o oceano e a tentar a sua sorte nas plantações de cacau da então Fernando Poo, ilha e província da colonial Guiné Equatorial. A esta bagagem histórica acrescenta-lhe uma narrativa habilmente construída, que salta do passado ao presente e onde habitam personagens cativantes, redondas, complexas e ao mesmo tempo verdadeiras, verosímeis. Que me acompanharão. Que continuarão a aquecer-me e a confortar-me.
A narrativa arranca com um prólogo que, Dios mío, nos deixa com a pele toda arrepiada e não querer mais pousar a obra. Em frases curtas, prenhas de dor, perda, paixão arrebatadora e muitos outros sentimentos intensos, oferece-nos a oportunidade de presenciarmos um dos momentos clímax de uma história de amor como poucas. Uma história de amor protagonizada por um homem e uma mulher provenientes de dois mundos antitéticos, de um mundo povoado de palmeiras, de ferozes verdes, de espíritos, de um calor pegajoso e de uma atmosfera eletrizante e, por outro, de um mundo monocromático, de gelo e neve, de recato e de tradições também elas enraizadas. Uma história de amor que desesperadamente luta para unir estes dois mundos e poder ser uma realidade. Uma história de amor que salta da ficção e que nos recorda outras que fomos lendo por aí e encontrando em inúmeras famílias provenientes de países colonizadores de África como Portugal ou Espanha. Uma história de amor que prova que “a veces, solo a veces, las palmeras nacen en la nieve”.
Quem me conhece já me ouviu dizer variadíssimas vezes que nunca irei pôr os pés em nenhum país africano porque tenho fobia a determinados animais rastejantes que povoam as paragens africanas. Povoam também determinadas passagens da obra. Contudo, mesmo tendo lido essas partes com muita dificuldade e com a respiração aceleradíssima, dei comigo a sonhar (não em forma de pesadelo J) com as paisagens de Fernando Poo, com os sons, os cheiros e toda a mística que carrega a herança africana. Dei comigo a “invejar” a sorte de quem já teve o privilégio de conhecer África e de viver com ela, de a amar e nostalgicamente senti-la como sua.
Por tudo isto e porque também me fez saber mais sobre o passado colonial de Espanha (tão semelhante ao nosso…), sobre o que movia os colonos a querer manter-se em terras africanas e o que movia os autóctones a querer a sua independência, tenho que recomendar esta obra e recomendá-la vivamente. Ofereceu-me uma leitura marcante, muito marcante e intensa, que se manterá comigo e que me faz desejar muito, mas muito, ver a adaptação cinematográfica que estreará brevemente em Espanha e quem sabe em Portugal.
         Deixo-vos o vídeo da canção de Pablo Alborán composta especialmente para a banda sonora do referido filme e que vos dá mais uma razão (e que razão saborosa) para deliciarem-se com esta história de palmeiras que podem nascer na neve.


         NOTA – 10/10

         Sinopse
         Estamos no ano de 1953 e Kilian abandona a neve da montanha para iniciar com o seu irmão Jacobo, uma viagem apenas de ida para uma terra desconhecida, longínqua e exótica. Nas entranhas deste exuberante e sedutor território, espera-os o seu Pai, um veterano que trabalha na fazenda de Sampaka, o lugar onde se cultiva e tosta um dos melhores cacaus do mundo.

Nessa terra eternamente verde, cálida e voluptuosa, os jovens irmãos descobrem os encantos de uma vida social na colónia em contraste à vida monótona e cinzenta que se vivia na Espanha dos anos cinquenta. Trabalham o cacau com afinco e esforço para conseguir as melhores colheitas, conhecem o significado da amizade, da paixão, do amor, do ódio. Mas um deles irá cruzar uma linha proibida e invisível ao apaixonar-se perdidamente por uma nativa. Esse amor pulsante e urgente, marcado pelas circunstâncias históricas, irá mudar para sempre o rumo das suas vidas e será a origem de um segredo que marcará as suas vidas até ao tempo presente.

Años lentos, de Fernando Aramburu

Sábado, 05 de dezembro de 2015





Opinião
Años lentos é a segunda obra que leio de Fernando Aramburu e quero que não seja a última. Embora tenha que afirmar, desde já, que não me conquistou como me havia conquistado Os peixes de amargura, este romance, que adquiri na última vez que estive em terras espanholas, ganhou o “Premio Tusquets Editores de novela” e possui ingredientes certeiros para que o olhe com carinho, admire a sua bela capa, sonhe mais uma vez com uma muito desejada viagem até terras bascas e lhe dê crédito mais do que suficiente para continuar a querer ler mais Fernando Aramburu.
Construído com originalidade, Años lentos chega-nos com um formato pouco habitual, já que não se assemelha a um romance já terminado, ao produto final, mas sim ao trabalho prévio que o autor levou a cabo, ou seja, por um lado somos, tal como o próprio Aramburu, ouvintes das memórias que a personagem principal confidencia ao autor e por outro este presenteia-nos com os seus “apuntes”, com o rascunho do que terá em conta para a criação da futura obra. Sendo assim, não só temos o privilégio de ler mais uma história saída das mãos e engenho deste consagrado autor, como temos a oportunidade rara de adentrar-nos no seu universo linguístico, estilístico e compreendermos as dúvidas, incertezas, investigações e questionamentos de como, em última análise, criar uma obra verosímil, adequada à faixa etária a que se destina e digna de ser publicada e de honrar não só o seu autor como os seus leitores.
O propósito deste livro reside nas memórias que Txiki (cujo verdadeiro nome ignoramos) vai desfiando da sua infância passada em casa de uns tios que viviam num bairro de San Sebastián. Com apenas oito anos, deixa a sua terra natal em Navarra e é acolhido pela irmã da sua mãe, porque a sua progenitora não tem condições de criar os seus três filhos. Nos anos em que vive com a sua tia Maripuy, o seu tio Vicentico, a sua prima Mari Nieves e o seu primo Julen, Txiki é testemunha da rotina de uma família remediada, simples e de um bairro também ele composto por outras famílias remediadas, simples, que levam a vida como podem num país governado por um ditador já caquético, mas cuja mão implacável e torturadora ainda consegue impor-se e abafar sonhos, ideais ou apenas o desejo de uma vida melhor, livre. É uma época que passa devagar, de anos lentos, nos quais “los minutos de la dictadura duraban un minuto y medio o dos”, mas que não parece afetar grandemente a rotina feita de ninharias, coscuvilhices, ódios, desprezos, preconceitos, religiosidade beata, violência verbal e física da família de Txiki. Não há demonstração de afetos, os diálogos são parcos e a miúde povoados de ofensas, reclamações, ameaças ou mexericos sobre gente do bairro, inclusive o padre da paróquia.
Temos consciência de que a ação se desenrola na década de sessenta, que a ditadura franquista ainda impera, que a repressão abafa qualquer vestígio revolucionário, mas nesta obra apenas nos damos conta disso com as óbvias referências temporais, com a descrição de uma visita com o obrigatório desfile da autoridade de Franco e com um grupo de jovens rudes e pouco letrados que acompanha o padre da paróquia nas suas deambulações pelas montanhas que rodeiam San Sebastián, pelo afinco do mesmo em ensinar-lhes o “euskera”, pela devoção que vão mostrando pela “Ikurriña”, a bandeira do país basco, e pelo ódio que vão alimentando às forças nacionalistas e opressoras. Excetuando estes “pequenos pormenores”, poderíamos afirmar que a obra é somente o retrato de um bairro qualquer, onde o orgulho basco na sua língua quase não transparece, onde os habitantes de um bairro remediado, operário, se comportam como os habitantes de qualquer bairro com características semelhantes e onde impera a pouca privacidade, o mexerico feroz, as amizades que se transformam num ápice em inimizades, o preconceito e uma vida que se arrasta sem lampejos de mudança.
Talvez a ironia e a mensagem da obra esteja aí. Talvez a simplicidade, a banalidade, a rotina sem grandes percalços ilustrem os anos que precederam à caída da ditadura e espelhem a lentidão com que o tempo passava, a adaptação de uma sociedade a uma existência amarga e o conformar-se com isso. Talvez o autor tenha querido mostrar também o quanto o desejo e a ânsia de uma independência basca nasceram com pequenos atos e que esses atos estiveram por detrás da emergência de uma luta armada e do nascimento da ETA.
Años lentos pode assim ser um retrato fiel de um dos estratos mais baixos da sociedade basca. Aí senti que o autor consegue cativar-nos e ser verosímil. Já que no que diz respeito ao que esteve por detrás do nascimento da ETA, o autor dá-nos uma imagem muito superficial, com muitos fios soltos e, na minha opinião, demasiado simplista e pouco credível.
Resumindo, gostei da obra. Gostei da sua originalidade, de estar em contacto direto com o autor e com um exemplo de como faz “o trabalho de casa” para criar mais uma obra e da sua ironia e agudeza no retratar de uma gente que é a sua gente. Não gostei da simplicidade e alguma ligeireza com que abordou algo tão complexo como foi o nascimento da ETA e da luta armada e fratricida que abalou Espanha nos finais do século XX.

NOTA – 08/10

Sinopse

A finales de la década de los sesenta, el protagonista, un niño de ocho años, se va a San Sebastián a vivir con sus tíos. Allí es testigo de cómo transcurren los días en la familia y el barrio: su tío Vicente, de carácter débil, reparte su vida entre la fábrica y la taberna, y es su tía Maripuy, mujer de fuerte personalidad pero sometida a las convenciones sociales y religiosas de la época, quien en realidad gobierna la familia; su prima Mari Nieves vive obsesionada por los chicos, y el hosco y taciturno primo Julen es adoctrinado por el cura de la parroquia para acabar enrolado en una incipiente ETA. El destino de todos ellos – que es el de tantos personajes secundarios de la Historia, arrinconados entre la necesidad y la ignorancia– sufrirá, años después, un quiebro. Alternando las memorias del protagonista con los apuntes del escritor, Años lentos ofrece además una brillante reflexión sobre cómo la vida se destila en una novela, cómo se trasvasa el recuerdo sentimental en memoria colectiva, mientras su escritura diáfana deja ver un fondo turbio de culpa en la historia reciente del País Vasco.

Balanço mensal - livros lidos e adquiridos em novembro

Dezembro, 03 de dezembro de 2015





O fim do ano está a aproximar-se e com ele traz o habitual trabalho dobrado… Mas, mesmo assim, lá consegui arranjar tempo para ler cinco livros este mês. Para boas leituras sempre se reservam uns minutinhos ao final da noite, porque é uma das melhores maneiras de pôr para trás das costas o bulício de um dia normal e escapar dessa realidade que continuará aí no dia seguinte.
Em novembro deliciei-me com quatro leituras e voltei às releituras. Todas, sem exceção, deixaram um sabor especial na minha vida e, como tal, não posso deixar de recomendá-las. Abri o mês regressando aos palcos da Segunda Grande Guerra. Fi-lo através de uma obra que realmente merece todos os prémios que já alcançou. De seguida, para poder abstrair-me desses cenários mais dolorosos, percorri a estante em busca de sensações mais leves e reli uma das obras que possuo da autora Sue Monk Kidd. E que bem que me soube J! Stoner, de Jonh Williams foi a leitura que me fez companhia a meados do mês e só posso agradecer mais uma vez à minha querida Nancy por me ter dado a oportunidade de resgatar esta obra do esquecimento a que esteve dotada durante tempo demais. Em poucos dias “papei” a última obra de Inês Pedrosa, que me proporcionou bons momentos e fragmentos com os quais qualquer português se pode identificar. O mês terminou da melhor forma possível, com o regresso ao mundo do meu amado Mario Benedetti e à sua literatura que tem o condão de me preencher como muito poucas. Dei nota máxima a La borra del café porque basicamente tem tudo o que me deixa desarmada e rendida a um livro.
Deixo-vos, como costume, o link para acederem às opiniões das referidas leituras:
§  Toda a luz que não podemos ver, de Anthony Doerr
§  A ilha das garças, de Sue Monk Kidd
§  Stoner, de John Williams
§  Desamparo, de Inês Pedrosa
§  La borra del café, de Mario Benedetti

Depois de uma desintoxicação e de um desmame doloroso que fui obrigada a submeter-me no mês de outubro, nada me dá mais prazer que afirmar que pequei de novo durante este mês e que na minha estante já moram mais três obras que para lá saltaram da minha wishlist J. São elas Vamos aquecer o sol, de José Mauro Vasconcelos e de Elena Ferrante, História de quem vai e de quem fica e Crónicas do mal de amor. A primeira, do autor brasileiro, traz-nos a continuação da ternurenta e belíssima história de Zezé (de O meu pé de laranja lima), “o menino com um coração do tamanho do mundo, e que, por isso, sofre demais”. As outras duas são da aclamadíssima e misteriosa autora italiana que me conquistou com o primeiro volume da tetralogia, A amiga genial. História de quem vai e de quem fica é a terceira parte dessa tetralogia e Crónicas de mal de amor reúne as três obras que haviam sido publicadas em Portugal e que infelizmente passaram um pouco despercebidas. Espero poder resgatá-las e prestar-lhes a devida homenagem, sobretudo porque sei, pelo que já li e me disseram, que prometem avassalar as minhas emoções.

Entretanto, dezembro já está aí, faltam poucos dias para a festividade que mais me encanta, para estar rodeada de família, amor, alegria, comida e, imagino eu, de prendinhas retangulares, compostas de uma capa, muitas páginas, um número infinito de palavras e “viagens” ao mundo de outros lugares, outras épocas e muitas, muitas personagens que me conquistarão e me farão uma mulher mais feliz! Mal posso esperar…

La borra del café, de Mario Benedetti

Sábado, 28 de novembro de 2015





Opinião
194 páginas de Benedetti. 194 páginas que durante estes cinco dias estiveram à espera de que eu encontrasse aquele “ratito de tiempo” para mergulhar nelas, perder-me nelas. 194 páginas que saboreei sempre com um sorriso nos lábios e com o lápis na mão. 194 páginas recheadinhas de partes sublinhadas, de setinhas, de corações, de carinhas felizes. 194 páginas que cumpriram com as mais altas expetativas e que consequentemente me levaram a “atazanar” o maridinho com comentários vezes sem fim repetidos – “Delicioso”; “Este homem é fantástico”; “Já te disse que adoro, adoro Benedetti?”; “Isto é mesmo, mesmo bom”.
Enfim, 194 páginas de Benedetti, de um Benedetti que eu amo, venero e que terá que me pertencer por completo, porque cada obra que leio deste autor uruguaio provoca invariavelmente em mim um leque de emoções que me faz sentir mais feliz, mais compreendida, mais viva.
Depois de o ter descoberto com A Trégua e de Primavera con una esquina rota me ter atropelado com uma avalancha de emoções, não hesitei quando, numa escapadela a La Coruña, “tive autorização” para comprar quatro livrinhos e no pacote trouxe a terceira obra de Benedetti a morar na estante cá de casa. La borra del café já figurava na minha wishlist há tempos e agora, que já a li, já a mimei e permiti que ela me mimasse, sei que sou e serei eternamente grata ao autor uruguaio e que não me resta outra coisa que não continuar a adquirir as suas obras, porque sei com aquela intuição e aquele saber cá de dentro que nenhuma me defraudará, pelo contrário.
La borra del café volta a fazer-nos viajar até Montevideu, apresenta-nos vários dos espaços que compõem ou compuseram a capital uruguaia nos anos vinte, trinta e quarenta e abre-nos as portas de casa (ou das várias casas, já que se mudavam com bastante frequência) da família de Claudio, protagonista e o principal narrador das vicissitudes, insignificâncias e outros acontecimentos do seu crescimento e trajetória numa vida que, ao fim e ao cabo, é tão banal e tão memorável como qualquer uma das nossas vidas.
Dividida em capítulos curtinhos e sempre encabeçados por um título alusivo, esta deliciosamente sublime obra derreteu-me desde o seu início, desde a sua primeira palavra. Aliás, como seria de esperar de Benedetti, porque numa linguagem onde se entrelaçam a simplicidade, a inocência e precocidade do narrador, a importância que este dá a pormenores que variam conforme a sua idade e a sua maturidade, os momentos de introspeção, a descrição de um quotidiano tão próximo ao nosso, os sonhos e os momentos de intimidade, Benedetti sabe, como ninguém, cativar-nos, prender-nos, fazer-nos não querer parar a leitura e é um génio na construção dessa teia de ingredientes que, misturados com uma sensibilidade e uma perspicácia tão suas, faz nascer uma obra perfeita.
Essa perfeição está presente em detalhes cómicos, como por exemplo neste apontamento do que era mais memorável numa das casas onde a família de Claudio viveu – “Allí lo más recordable era el inodoro, pues cuando alguien tiraba de la cadena, el agua, en lugar de cumplir su función higiénica en el water, salía torrencialmente del remoto tanque empapando no sólo al infortunado usuario, sino todo el piso de baldosas verdes.” (pág. 12) – ou na inocência do protagonista perante a tirada mensal da mãe que assim respondia ao pai quando este queria “echarse una siesta” mais prolongada no quarto – “«Hoy no puedo, viejo. Vinieron los de Galarza». Para mí, esa respuesta era un enigma, porque yo había estado toda la mañana en casa y nadie había venido: no los de Galarza ni los de ninguna otra familia.” (pág. 41)
Essa perfeição também está presente em detalhes mais intimistas e que nos tocam e nos desarmam – (a casa como o nosso lar, o nosso cantinho) “Todos esos olores formaban un olor promedio, que era la fragrancia general de la vivenda. Cuando llegaba de la calle y abría la puerta, la casa me recibía con su olor propio, y para mí era como recuperar la patria.” (pág. 36); (a reação da irmãzinha de Claudio à morte da mãe) – “«Ves, Claudio, la higuera no se mueve, no oye, no habla, no piensa, no sueña, no siente dolor, pero está viva ¿no? A lo mejor mamita está como la higuera».” (pág. 56); (a descoberta do sexo, do corpo da mulher) – “La memoria del cuerpo no cae nunca en minucias. Cada cuerpo recuerda del otro lo que le da placer, no aquello que lo disminuye” (págs. 121, 122); “Durante varios encuentros seguimos fascinados por esa comunión. No había pregunta de un cuerpo que no supiera o no pudiera responder el otro. ¡Hablábamos tan poco! Creo que teníamos miedo de que la palabra, al invadir nuestro espacio, nos trajera querellas, fracturas, desconfianzas. ¡Y el silencio era tan sabroso, era tan rico el tacto!(pág. 122).
Por fim, essa perfeição está nos já referidos capítulos curtinhos, nos vários narradores dos mesmos – predominantemente narrados em primeira pessoa por Claudio, mas com alguns narrados na terceira pessoa (o que nos permite uma abordagem mais “imparcial” e mais neutra) e outros fragmentos do diário do pai de Claudio – na riqueza linguística do espanhol uruguaio (que saboreio com avidezJ) na homenagem que o autor faz de novo ao nosso Fernando Pessoa e num desenlace intrigante e que remete para o título da obra e para um misticismo e realismo mágico tão característicos do povo sul-americano.
Mais não digo. E havia muito mais para dizer, acreditem. É uma obra pequena, mas que contém pinceladas de um pouco de tudo, daquilo que mais importa para fazer dela um exemplo de uma leitura deliciosa, sublime e completa.
Gracias, Benedetti, estés donde estés, ¡seguirás siempre conmigo!
Recomendo, obviamente, e sem reservas.

NOTA – 10/10

Sinopse

Claudio retrocede hasta volver a ser un niño de cinco años y rescata del pasado las anécdotas, las personas y los acontecimientos históricos que marcaron su vida. La mirada de Benedetti se detiene en historias que llaman a la reflexión, y ofrece otras que todos podríamos reconocer como claves en la vida de un niño, de un adolescente o de un adulto: la desolación ante la muerte de la madre, el descubrimiento del amor, el acercamiento al sexo, la conciencia social, la experiencia del goce y la asunción del dolor. En suma, e l paso que dejan los años y las personas a las que amamos, y que fundamenta nuestra trayectoria existencial.

Desamparo, de Inês Pedrosa

Domingo, 22 de novembro de 2015




Opinião
Desamparo é um retrato de personagens desamparadas. Desamparadas pelos seus pais, pelos seus filhos, pelos seus irmãos, pelos seus companheiros, pelos seus namorados, por outros entes queridos. Enfim, abandonados, remetidos a um desamparo num país também ele a necessitar que alguém o ampare, lhe deite a mão, o ajude a erguer-se e a olhar de frente e com confiança para o porvir.
Dividindo a ação entre dois países irmãos – Portugal e Brasil –, a narrativa apresenta-nos um punhado de personagens órfãos de amparo e de amor.
Jacinta desde muito pequenina mendiga por amor e carinho – da sua mãe que preferiu manter-se no seu país a acompanhar marido e filha na aventura da emigração; dos seus maridos, sobretudo do segundo, a quem devotava uma paixão que não diminuiu com o passar dos anos e de quem recebeu nada mais do que desamor e recorrentes traições; e de dois dos seus filhos que parecem nunca lhe ter perdoado o sofrimento e a dor que testemunharam e o empecilho em que a mãe se foi transformando ao longo dos anos.
Por sua vez, Raul, filho “caçulo” de Jacinta, segue as pisadas da sua progenitora. Homem bem-parecido, com uma promissora carreira de arquiteto, possui à primeira vista tudo o que necessita para ser bem-sucedido. Mas mais uma vez escasseia-lhe o amor. O amor de um pai que nada vê nele exceto insegurança, falhanço, o amor dos irmãos, o amor de uma mulher que lhe escapa por entre os dedos. Sobra-lhe o amor da mãe que tenta colmatar todos os outros amores. Por esse amor, Raul deixa para trás o seu país natal e vem viver para Portugal, onde o seu sucesso profissional resvala encosta abaixo com a avalanche da crise nacional e onde sempre será visto como estrangeiro, como o “brasileiro”.
À vida destas duas personagens principais se vão juntando outras, umas mais relevantes, outras menos. Contudo, todas elas exemplificam essa carência de afetos, de amparo e de todos os ingredientes que recheiam uma existência feliz e quentinha. Retratam ainda a manta de retalhos que é o nosso país desde a saga emigratória dos anos sessenta, setenta até a uma atualidade comandada por uma crise económica que nos abraçou e parece não querer afrouxar o aperto.
Inês Pedrosa contempla-nos assim com uma obra atual e muito portuguesa. A narrativa está polvilhada de apontamentos que compõem a história do dia-a-dia do nosso país e com os quais nos identificamos de imediato – ora seja o quotidiano de uma aldeia que se alimenta da coscuvilhice, de episódios de violência doméstica ou de gestos de solidariedade, ora sejam os exemplos de corrupção em órgãos de poder, ora seja a parcialidade de uma justiça lenta e burocrática ou ora ainda seja a esperança que reside no turismo como alavanca para fazer renascer a prosperidade lusa. Tudo isto toca no leitor de forma muito significativa e levou-me a sublinhar muitas passagens.
Desamparo é igualmente uma obra que nos chega com um estilo próprio e que não consigo definir de outra forma que não seja um estilo limpo, sereno. Tudo o que nos é reportado é feito com serenidade, com uma linguagem simples, com laivos poéticos, que faz-nos sorrir perante determinada passagem, sublinhá-la, agradecer à autora a portugalidade que atravessa a narrativa de uma ponta à outra e ficar satisfeitos com o desenlace da obra.
Sendo assim, recomendo a sua leitura. Não a recomendo vivamente, como uma leitura obrigatória, daquelas que poderão marcar-nos para sempre, porque considero que lhe falta isso mesmo – algo, aquilo que me vá fazer lembrar-me dela daqui a uns tempos… Li-a em poucos dias, é um facto, gostei da sua companhia, mas tenho o pressentimento de que, daqui a uns tempos, pouco me recordarei dela e que tão pouco ficarei triste por esse esquecimento…
Para terminar, deixo-vos aqui a canção que fez de banda sonora a esta leitura e que vai e vem na minha vida como e quando lhe apetece, sem que eu a possa controlar J Uma pérola dos tempos da telenovela “Roque Santeiro” – Aconchego, de Elba Ramalho:


NOTA – 08/10

Sinopse
A saga de uma mulher, Jacinta Sousa, que foi levada do colo da mãe para o Brasil aos três anos e regressa para a conhecer mais de cinquenta anos depois é o ponto de partida deste extraordinário romance de Inês Pedrosa. "No Brasil eu sempre fui a Portuguesa; em Portugal, passei a ser a Brasileira".
Numa escrita inteligente, límpida e plena de humor, a autora cria um universo singular, uma aldeia em que se cruzam personagens e histórias de vários continentes.
Emigrações e imigrações de ontem e de hoje, seres solitários e escorraçados que procuram novas formas de vida, enquanto tentam sobreviver à maior depressão económica das últimas décadas.

O amor, a traição, o poder, a inveja, o ciúme, a amizade, o crime, o medo, a vingança e sobretudo a morte atravessam este livro que faz a radiografia do Portugal contemporâneo, num enredo cheio de força e originalidade.

Stoner, de John Williams

Quarta-feira, 18 de novembro de 2015





Opinião
William Stoner é a antítese de um protagonista com os ingredientes para arrebatar-nos. Filho único de um casal de agricultores que sempre se debateu com dificuldades em ganhar o seu sustento de uma terra árida e pouco produtiva, quebra o ciclo dentro da família ao não seguir as pisadas de seus antepassados. Termina os estudos secundários e é surpreendido com a proposta do pai em prosseguir a sua educação numa Escola Superior Agrária. Sai assim de casa dos seus progenitores para não mais voltar a essas origens. Inicia a sua vida adulta e independente estudando e trabalhando para pagar o seu sustento e o quartinho minúsculo que ocupa em casa de uns primos da mãe.
A segunda grande mudança da sua vida ocorre quando descobre a literatura nas aulas de um professor excêntrico, mas que o cativa irremediavelmente e o faz interromper o curso da Escola Agrária e mergulhar numa vida de livros, palavras, letras, regras gramaticais, histórias, autores, correntes literárias. Descobre aí a sua vocação e o sentido da sua vida. Tornar-se-á professor e amante da sua língua, dos livros, do vaguear pela biblioteca, da urgência e da tranquilidade que nos assola quando seguramos um livro nas mãos e nada mais queremos que não seja perdermo-nos no seu cheiro, no folhear das suas páginas e na viagem que nos proporciona a sua história, o conjunto das suas palavras.
“Na biblioteca da universidade vagueava por entre as estantes, por entre os milhares de livros, inspirando o odor bafiento a couro, tecido e papel ressequidos como se fosse um exótico incenso. Por vezes parava, tirava um volume de uma prateleira e segurava-o um instante com as suas mão grandes, que eram tomadas por um formigueiro perante essa sensação ainda nova da lombada, de capa cartonada e das folhas de papel que se lhe ofereciam sem resistência. Depois, folheava o livro, lendo um parágrafo aqui e ali, os seus dedos hirtos virando as páginas cuidadosamente, com medo de, desajeitados, rasgarem e destruírem aquilo que tinham descoberto com tanto esforço.”  (págs. 18, 19)
Este amor, esta entrega aos livros e à literatura transfiguram William Stoner, mas quem passe por ele nos corredores da Universidade de Missouri, quem assista à maioria das suas aulas, quem conviva com ele de forma assídua, apenas se depara com um homem desajeitado, calado, sorumbático, algo apático e a quem nada nem ninguém parece afetar verdadeiramente. É um homem cujas raízes humildes, cuja vida entre paredes silenciosas de parcas trocas de palavras o habituaram a observar, a calar para si o que pensa, o que sente, o que alegra, o que o entristece, o que o magoa. Por essa razão, apenas nós, os leitores, o conhecemos verdadeiramente, o acarinhamos, o tentamos espicaçar para reagir, nos compadecemos dele. Por essa razão ainda, o início da obra nos informa, crua e objetivamente, que a existência de Stoner e o impacto que a mesma teve na vida de quem o conheceu ou ouviu falar dele foi mínimo, insignificante.
Um aluno que ocasionalmente depare com o nome poderá perguntar-se quem era William Stoner, mas poucas vezes tentará saciar a curiosidade, indo além da pergunta casual. Os colegas de Stoner, que não lhe tinham uma estima por aí além quando era vivo, raramente falam dele agora; para os mais velhos, o nome é um lembrete do fim que os espera a todos e, para os mais jovens, é um mero som que não evoca qualquer noção do passado nem qualquer sentimento de identificação quer em termos pessoais, quer em termos de carreira.” (pág. 7)
Sendo assim, como é que uma obra que tem como título o nome do seu protagonista, protagonista esse um homem que vive uma vida mediana, insignificante para alguns, possa ser considerada por nomes sonantes como um “romance formidável” ou “Um dos grandes romances esquecidos do século passado”? Simplesmente porque está escrito com uma simplicidade e uma acuidade que nos desarmam, porque as suas personagens estão carregadas de veracidade, porque os seus comportamentos despoletam as mais variadas reações, porque a genialidade do autor e da obra que criou são uma lufada de inteligência, de comedimento, de naturalidade e de supremacia face à mediocridade, pouco talento e ausência de saber-fazer de carradas de coisas que se publicam hoje em dia, só porque a escrita “virou moda”.
Stoner foi publicado em 1965 e, tal como o seu protagonista, caiu rapidamente no esquecimento. Em 2013 foi aclamado o melhor livro do ano pelos leitores de uma livraria britânica. Eu tomei conhecimento da sua existência apenas este ano, numa das conversas “sumarentas” que tenho com a minha compincha literária, Nancy. Adquiri-o em agosto e só agora em novembro preencheu as minhas horas literárias. Demorei seis dias a lê-lo e ainda hoje, enquanto escrevo isto e já tendo outra obra a fazer-me companhia, sinto William Stoner aqui ao lado. E sei a razão por que ainda não me abandonou. Não é fácil dizer-lhe adeus, porque a sua insignificância, a sua vida medíocre e trivial, as horas que passava a observar a paisagem que a janela do seu gabinete lhe oferecia, o amor aos livros e à sua língua, o silêncio carregado de afeto dos momentos que partilhou (na verdadeira essência da partilha) com a filha enquanto esta era criança, o amor e a intimidade que não encontrou no casamento, a forma como se despediu da vida e sobretudo o seu carácter que nos impele a fechar a porta ao mundo e a querer estar aí, ao seu lado, tudo isto faz-me concordar em pleno com as críticas que acompanham a sinopse na contracapa e a recomendar a história de William Stoner a todos aqueles que tenham vontade de deitar as mãos a uma história brilhantemente escrita e que toca e reflete a vida quotidiana, banal, ordinária como poucos romances o fizeram.
Mesmo muito bom.

NOTA – 09/10

Sinopse
Romance publicado em 1965, caído no esquecimento. Tal como o seu autor, John Williams - também ele um obscuro professor americano, de uma obscura universidade. 
Passados quase 50 anos, o mesmo amor à literatura que movia a personagem principal levou a que uma escritora, Anna Gavalda, traduzisse o livro perdido. Outras edições se seguiram, em vários países da Europa. E em 2013, quando os leitores da livraria britânica Waterstones foram chamados a eleger o melhor livro do ano, escolheram uma relíquia. 

Julian Barnes, Ian McEwan, Bret Easton Ellis, entre muitos outros escritores, juntaram-se ao coro e resgataram a obra, repetindo por outras palavras a síntese do jornalista Bryan Appleyard: "É o melhor romance que ninguém leu". Porque é que um romance tão emocionalmente exigente renasce das cinzas e se torna num espontâneo sucesso comercial nas mais diferentes latitudes? A resposta está no livro. Na era da hiper comunicação, Stoner devolve-nos o sentido de intimidade, deixa-nos a sós com aquele homem tristonho, de vida apagada. Fechamos a porta, partilhamos com ele a devoção à literatura, revemo-nos nos seus fracassos; sabendo que todo o desapontamento e solidão são relativos - se tivermos um livro a que nos agarrar.

A Ilha das Garças

Quarta-feira, 11 de novembro de 2015




RELEITURA

Opinião
Voltei às releituras. Sentia vontade de fazê-lo desde que a opinião de uma compincha bloguista (obrigada, Isaura, do Jardim de Mil Histórias) sobre a última obra de Sue Monk Kidd me fez recuar no tempo, percorrer as estantes e sentir aquele frenesim de excitação quando folheei A Ilha das Garças e recordei a história de Jessie e Whit, a intensidade dos sentimentos e desejo que os uniu desde que se viram pela primeira vez.
Após uma série de leituras densas e pouco pinceladas de amores entre uma mulher e um homem, estava “sedenta” por embrenhar-me numa narrativa repleta de amor, desejo e paixão, sentimentos que nos cegam e preenchem por completo os dias com tolices, com mil e um planos que nos levam a querer ver, a querer estar no mesmo espaço ou a querer sentir o olhar da pessoa amada. E sabia que os amores de Jessie e Whit me ofereceriam tudo isto.
Jessie é uma mulher na casa dos quarenta, casada há vinte anos e mãe de uma filha que recentemente ingressou na universidade. Tem o que à partida parece ser uma vida normal, tranquila e preenchida. Contudo, um ato de loucura por parte da sua mãe (com quem tem uma relação distante e tensa) quebra essa normalidade e obriga-a a regressar à sua ilha natal para tentar perceber as razões que levaram a sua mãe a cometer tal ato.
Esse retorno às origens fará com que possa desenredar nós, confrontar fantasmas, recordações e momentos dolorosos que sempre tingiram a sua vida de cores mais sombrias e não deixaram que confiasse e se abrisse plenamente com os outros, inclusive com quem partilha vida há vinte anos. Sendo assim, a partir do momento em que pousa os pés na ilha de Egret, Jessie desafia-se a si mesma – num ímpeto que não lhe é habitual, decide que o regresso à ilha servirá para redescobrir-se, para dar-se a oportunidade de voltar a sentir-se viva, de voltar a viver sem filtros, com arrebatamento, com paixão. Põe então em pausa o seu passado, o seu presente de mulher casada, de mãe, de filha e permite-se pensar em apenas si mesma. Permite-se igualmente fazer o que é preciso para receber respostas a perguntas há muito tempo sem resposta. Permite ainda que a sua ilha a deslumbre e a conquiste de novo. E por fim, permite-se apaixonar-se, deixa que o desejo e a fome de paixões arrebatadoras a prendam a alguém que, como ela, está sedento de amor mas com amarras que o impedem de ser completamente livre.
A Ilha das Garças agracia-nos assim com uma poderosíssima história de amor. Mas não foi apenas essa história que me “obrigou” a lê-la de forma compulsiva. A Ilha das Garças é também a história de uma família desestruturada desde que o pilar da mesma faleceu em circunstâncias trágicas. É também a história de uma amizade entre três mulheres que resistiu à passagem dos anos e se mantém quase inalterável. E é o retrato das vivências tradicionais da gente do sul dos Estados Unidos, de insulares e da exuberância mágica e sensual de uma ilha, da sua vegetação, dos seus espaços naturais, da sua população animal e da força e atração que o mar exerce em quem vive dele e junto a ele.
É, por tudo o que disse, uma obra que vale a pena ler ou reler e bendigo o momento em que me propus a fazê-lo, porque “caiu” na perfeição numa altura em que o trabalho e a burocracia me assoberbam, porque me proporcionou uma leitura mais leve, carregada de sentimentos poderosos, porque corresponde ao que nos desvenda a sinopse e as várias críticas presentes na contracapa e porque me rendi ao estilo e à escrita elegante e feminina da autora. O único reparo que tenho a fazer e que me impede de avaliar a obra com uma nota melhor está relacionado com o seu desenlace. Pareceu-me um pouco precipitado, ou seja, após tanta intensidade, tudo se desfaz, tudo se esvazia como um balão roto e senti que pouca coisa na vida real passa, quase de um momento para o outro, de intenso a banal, a dispensável e que tão pouco algo ou alguém que nos incomodava e não nos satisfazia passe a ser aquilo que nos fará felizes e completos.
Contudo, apesar desse pequeno reparo, espero (e quero J) poder brevemente ler as outras duas obras da autora – uma que também mora na minha estante – A vida secreta das abelhas – e outra que mora na minha wishlistA invenção das Asas.

NOTA – 08/10

Sinopse

No interior de um mosteiro beneditino na ilha de Egret, ao largo da costa da Carolina do Sul, repousa um misterioso trono com sereias gravadas, dedicado a uma santa que, segundo a lenda, era sereia antes da sua conversão. Quando Jessie regressa à ilha por causa de um ato de violência aparentemente inexplicável da sua excêntrica mãe, a sua vida prima pela normalidade e o seu convencional casamento com Hugh é seguro e estável. Jessie ama Hugh mas, uma vez na ilha, a atração que sente pelo irmão Thomas, um monge que está prestes a fazer os votos solenes, é irreprimível. Rodeada pela beleza exótica dos pântanos, deltas e garças majestosas, Jessie debate-se com a tensão do desejo, com a luta e a negação dos seus próprios sentimentos, com a liberdade a que acha que tem direito e com a força inexpugnável do lar e do casamento. Será que o poder do trono da sereia é apenas um mito? Ou será capaz de alterar o seu destino? O que está prestes a acontecer irá desvendar as raízes do passado atormentado da mãe, mas, acima de tudo, permitir que Jessie se reconcilie com a vida.

Toda a luz que não podemos ver, de Anthony Doerr

Domingo, 08 de novembro de 2015




Opinião
       Raramente me acontece, mas hoje não está a ser fácil escrever a opinião sobre a obra que terminei de ler na sexta-feira. Sobram-me as ideias, mas ainda não fui capaz de as organizar. A ver se desta é de vez.
Toda a luz que não podemos ver retrata a Segunda Guerra Mundial. Tema reincidente, repetido, já infinitamente esmiuçado e que tantas vezes passou pelas minhas mãos. Mas, como referiu uma das minhas alunas quando lhe disse de que tratava a obra, “Se é sobre a Segunda Guerra, vale a pena”. Porque a repetição não é sinónimo de banalidade, de trivialidade. Pelo contrário. A atração que me impele a ler um e outro livro sobre esse conflito horrendo e desumano faz de mim alguém melhor, faz-me apreciar os pequenos nadas que foram arrancados das vidas dos milhões daqueles que “subviveram” (palavra que “aprendi” contigo, Ana Sofia) o impensável e o insuportável. E sei (da forma mais visceral) que deixarei de gostar de mim como pessoa no momento em que a leitura de uma obra como Toda a luz que não podemos ver cesse de bulir comigo e de me apontar a luz no meio de tanta escuridão, obscurantismo, podridão que reinam (ainda) por estas bandas…
As 517 páginas da obra alternam-se em capítulos curtinhos. Fazem-nos viajar em frequentes analepses e entre pequenas terreolas alemãs, Berlim, Paris e Saint-Malo. Apresentam-nos os protagonistas, as personagens secundárias e enredam-nos irremediavelmente numa história tocante, comovedora e que ainda se mantém comigo… De tal forma que está a impedir que aprecie devidamente o livro que agora me faz companhia.
Como mãe, senti uma imediata e quase umbilical ligação com os dois protagonistas da obra. Werner é órfão, vive com a irmã numa casa que acolhe órfãos e já tem o seu futuro escrito – aos quinze anos irá trabalhar para as minas que lhe mataram o pai. Contudo, até atingir essa malfadada idade, tenciona “brincar” com o seu lado engenhocas e consertar tudo o que encontra. “O milagre”, “a luz” dá-se quando deita mãos a um rádio e fá-lo funcionar. Liga-o todas as noites e, na companhia de Jutta, sua irmã, percorre a estática até tropeçar numa suave voz francesa que lhe fala de temas como ilusões de ótica, eletromagnetismo, conclui o programa com um pedido disfarçado de vaticínio – “Abram os olhos e vejam tudo o que conseguirem ver antes que se fechem para sempre” (pág. 55) e despede-se pondo a tocar a música que sempre acompanhará Werner e desempenhará um papel preponderante na sua vida – Clair de Lune, de Debussy. Por sua vez, Marie-Laure (órfã de mãe), vive com o pai em Paris e segue-o para todo o lado, não só porque a sua cegueira assim o determina, mas também porque adora passar o dia deambulando pelas salas e jardins do Museu da História Natural onde o seu pai exerce as funções de serralheiro e guardador de todas as chaves dos infindáveis armários, salas, salões e outros espaços que compõem um dos inúmeros e importantes museus da capital francesa.
A preparação para a guerra e o estalar desta produzem uma reviravolta nas vidas destes adolescentes e tudo o que lhes era familiar, rotineiro, normal é-lhes retirado para ser substituído por uma máquina infernal, mas muito bem oleada que dizima a individualidade, a diferença, o livre arbítrio, os sonhos, a luz. A Werner, o ingresso num colégio que doutrina e faz sobressair a pureza, a resistência e a superioridade da raça ariana rompe e macula-lhe a inocência, endurece-o e obriga-o a ser mais um que tudo faz para sobreviver. A Marie-Laure, a ocupação do seu país tira-lhe literalmente o chão debaixo dos pés, aquele chão já tão familiar e que a levava, com um memorizado número de passos e sarjetas, a ser independente e a não necessitar do pai para movimentar-se de casa ao museu ou a outro local. A Jutta, irmã de Werner, a guerra traz a concretização de todos os seus pressentimentos. Ao pai de Marie, força-o a atravessar mais de metade do país e a buscar refúgio na sua cidade natal. Força-o ainda a “fazer ouvidos moucos” aos pedidos e à torrente de perguntas com que a sua filha o inunda e a tentar devolver-lhe a segurança e normalidade do seu mundo pré-guerra. A Frederick, companheiro de colégio de Werner, a fraca visão e o carácter sonhador são incomodativos, são o oposto de um exemplar da perfeita raça ariana e fá-lo-ão sofrer as piores consequências. A Étienne, tio-avô de Marie, esta guerra agudizará os terrores e fantasmas que não o abandonam desde que combateu a anterior guerra mundial. Mas também despoletará de novo o seu lado humano, levá-lo-á a sentir-se útil, a retaliar como pode para que o obscurantismo não tape a luz, não dizime com os sonhos, o conhecimento, a esperança e a crença.
 Por tudo isto, Toda a luz que não podemos ver é uma obra impressionante. Arranca de uma forma algo lenta, morna, é verdade, mas mexe na chaga que foi a Segunda Guerra Mundial sem recorrer à descrição de combates ou do holocausto judeu. Dá-nos a perspetiva dos dois lados através de exemplos daqueles que uma doutrina totalitária pretende moldar ou aniquilar – os detentores ou sôfregos de sonhos, de conhecimento, de oportunidades de saber mais. Com uma linguagem cuidada, poética, que evidencia o poder das palavras (com poucas podemos dizer tanto…), levou-me a experimentar os mais variados sentimentos e a entregar-me toda à leitura – como sempre o faço quando esta merece.
O único reparo que tenho que fazer à obra e que me faz não lhe dar a pontuação máxima tem a ver com a morosidade da parte inicial e com a trama à volta da joia “Mar de chamas”. Na minha opinião, não acrescenta nada de fundamental à narrativa. É incontestável que muita da ação na “parte francesa da obra” anda à volta do valor incalculável da joia, no entanto as outras tramas que compõem a história são suficientemente poderosas para transformá-la numa história a não perder para quem vibra com romances históricos, com romances muito bem elaborados e com romances que nos tocam profundamente.
Por fim, transcrevo aqui uma frase que aborda em poucas palavras a essência desta obra – “O que a guerra fez aos sonhadores” (pág. 493) e, como não poderia deixar de ser, o link para a música que atravessa, que une o princípio da narrativa com o seu fim e que faz com que o seu desenlace seja tão mágico e intenso – Clair de Lune, de Debussy.



NOTA – 09/10

Sinopse
Marie-Laure é uma jovem cega que vive com o pai, o encarregado das chaves do Museu Nacional de História Natural em Paris. Quando as tropas de Hitler ocupam a França, pai e filha refugiam-se na cidade fortificada de Saint-Malo, levando com eles uma joia valiosíssima do museu, que carrega uma maldição. 

Werner Pfenning é um órfão alemão com um fascínio por rádios, talento que não passou despercebido à temida escola militar da Juventude Hitleriana. Seguindo o exército alemão por uma Europa em guerra, Werner chega a Saint-Malo na véspera do Dia D, onde, inevitavelmente, o seu destino se cruza com o de Marie-Laure, numa comovente combinação de amizade, inocência e humanidade num tempo de ódio e de trevas.