Luta pela taça, de Gerard van Gemert


Ficha técnica
Título – Luta pela taça
Autor – Gerard van Gemert
Coleção – Os heróis do futebol – volume I
Editora – Educação Nacional
Páginas – 159
Datas de leitura – de 01 a 18 de novembro de 2016

Opinião
Esta é a coleção que tem aberto ao meu filhote as portas para o entusiasmo que provoca a leitura em cada um de nós. Esta é a coleção que faz com que o D. me peça “Mamã, por favor, deixa-me ler mais um capítulo!” quando eu lhe digo que são horas de ir para a cama. Esta é a coleção que arrasta o meu D. para o sofá e o faz esquecer por uns longos minutos os FIFA 2016, os vídeos do Youtube ou outras tentações tecnológicas. Esta é a coleção que faz nascer aquele brilhozinho nos seus olhos e que espero que nunca mais se apague.
Como é visível pela capa e pelo título da coleção e deste primeiro volume, tudo o que diz respeito a estes livrinhos escritos por um autor completamente desconhecido cá em casa está associado ao futebol. Neste volume inicial, travamos conhecimento com os protagonistas, Rodrigo e Rafael, dois adolescentes que, para além de serem amigos inseparáveis, frequentam a mesma escola, a mesma turma, moram perto um do outro e treinam na mesma equipa de futebol – o Futebol Clube Lobitos. Rodrigo é intempestivo, desafiador, não tem medo de nada e “ferve em pouca água”. Por sua vez, Rafael é mais ponderado, pesa os prós e os contras antes de se envolver em alguma situação mais complicada e está sempre pronto a ajudar o amigo a desenvencilhar-se dos apuros em que frequentemente se encontra. Ambos são completamente apaixonados pelo futebol e, para além de almejarem ser campeões pelo seu clube, seguem religiosamente “as andanças” de outra equipa – O Atlético 69 – que pela primeira vez atingiu as meias-finais da Liga dos Campeões.
Ora, para um miúdo viciado pelo desporto-rei como é o meu filhote, este livro não poderia ser mais perfeito. Grande parte da sua narrativa passa-se dentro das quatro linhas, com descrições vivas e excitantes de treinos e sobretudo de jogos de futebol, onde não faltam adrenalina, movimentações táticas, faltas, lesões, golos e vitórias das equipas que são, desde o início, as favoritas de qualquer leitor.
Contudo, Luta pela taça não aborda apenas o mundo do futebol. Leva o leitor a conhecer a união e cumplicidade entre grandes amigos, a sentir uma imediata empatia por Rodrigo e Rafael e uma clara antipatia pelos seus oponentes / inimigos, a compreender o que são boas e más ações, que as primeiras são recompensadas e as segundas castigadas e leva o leitor a seguir apaixonadamente uma história bem tecida, muito gira, muito fixe e que possui todos os ingredientes para que o entusiasmo inicial não arrefeça e faça que os pequenotes insistam com os pais/familiares para que lhe comprem o volume seguinte o mais rápido possível. Cá em casa já habita o segundo volume (que entretanto já foi lido pelo D.) e o Pai Natal (disfarçado de primo T.) encarregou-se de deixar debaixo do pinheirinho os volumes três e quatro.
Termino com as palavras do D. – “Este livro merece nota 10, porque é bué da fixe, li-o com muita atenção e adorei conhecer o Rodrigo e o Rafael. É um livro muito interessante, porque é sobre futebol, parece que estou na bancada a ver os jogos do FC Lobitos e do Atlético 69. Todos aqueles que adoram futebol como eu devem ler esta coleção. Leiam-na 😊.”

NOTA – 10/10

Sinopse
Plano Nacional de Leitura
Livro recomendado para o 4º ano de escolaridade, destinado a leitura autónoma.
Os dois jovens heróis do futebol: Rafael e Rodrigo do FC Lobitos estão envolvidos numa luta ferrenha com os seus grandes rivais: os "E.T.’" - nome que dão aos jogadores do Desportivo Galácticos. Travam uma luta pelo campeonato e por muito mais! Quando os "E.T.’" roubam a bola de Rodrigo, os Lobitos acabam por fazer uma descoberta surpreendente, que lhes causa sérios problemas… Que aventuras esperam por esta dupla de amigos? Será que Rafael e Rodrigo vão continuar a ser os heróis do futebol? Rafael conseguirá conquistar o coração da bela Filipa? Ou ela continuará a vê-lo como o amigo do irmão mais novo?

Acasos felizes, de Suzanne Nelson


Ficha técnica
Título – Acasos felizes
Autora – Suzanne Nelson
Editora – Topseller
Páginas – 317
Datas de leitura – de 18 a 24 de dezembro de 2016

Opinião
Depois da azáfama das Festas e das correspondentes correrias para comprar a última prenda, para ultimar e organizar visitas e para voltar a deixar tudo na casa no seu respetivo lugar após o terramoto que na mesma ocorreu no fim de semana festivo, posso finalmente sentar-me para pôr em palavras aquilo que senti com a leitura do livro que me acompanhou até aos derradeiros minutos da véspera de Natal.
Coincidência ou não, Acasos felizes encaixou que nem uma luva no espírito que deve reinar nesta época infelizmente tão submersa em materialismo e superficialidade. Recorda-nos a essência das relações humanas, aquilo que traz um brilho especial às nossas vidas e que faz com que eu ainda adore estas festividades.
A obra de Suzanne Nelson está preenchida pelos acasos, azares e reviravoltas de várias vidas, mas sobretudo traz ao de cima as de três mulheres, cujo crescimento vamos seguindo alternadamente e cujas existências se cruzam por causa de um singelo par de sapatos criado por Dalya e escondido num compartimento secreto na noite em que ela e a sua família são levadas para um campo de concentração pelas forças nazis.
A obra abre com um prólogo que nos relata o quanto um acessório tão banal como um par de sapatos guarda segredos, mantém cativos nas suas solas pedaços da história de quem os fez, de quem os usou e até nos pode desvendar retalhos da História de um país, de um continente, do mundo. Admito que nunca dei tamanha importância aos meus sapatos, mas é igualmente verdade que nunca me desfiz das primeiras sapatilhas ou sandálias que o meu filhote usou e que, sempre que as resgato da caixinha onde estão guardadas, sei que se me desenha um sorriso que ilumina todo o rosto e que, ao segurá-las, recuo no tempo e recordo sensações, cheiros e momentos que nunca se apagarão da memória. O mesmo acontecerá para outras pessoas com os sapatos que usaram no dia do seu casamento, as sapatilhas que usaram até quase ficarem sem sola ou as botas que lhes aqueceram os pés na primeira vez que pisaram neve.
Perante tão esclarecedora e iluminada premissa, mergulhei de sorriso nos lábios na história de Dalya, Ray e Pinny, três jovens, três mulheres que sabem como poucas o quanto a vida pode ser pintada de cores escuras, pesadas e sombrias. Todas elas se veem, num determinado momento, atiradas para o lado mais negro, despojadas da proteção e da segurança que nos providencia a família, o aconchego do lar. Todas elas sentem a punhalada do desespero, da solidão, da injustiça, mas agarram-se ao mais básico instinto que nos assiste – agarram-se à vontade de sobreviver, de procurar, um dia após o outro, o tão ansiado resquício de estabilidade, de bem-estar, de felicidade. E vão assim lutando.
São três protagonistas que me cativaram, que me aqueceram nestes dias de dezembro gelado e que iluminaram com cores quentinhas e prometedoras os pequenos instantes em que pude fechar a porta ao desenfreio e corrupio de final de período misturado com a proximidade do Natal, correr a cortina à minha vida e fazer de espetadora à de três mulheres envolventes, encantadoras, sofridas, lutadoras. Liguei-me irremediavelmente a cada uma delas, mas tenho que confessar que Dalya conquistou-me por completo, não só por causa da carga trágica que carrega uma menina judia abalroada pela terrível e doentia ideologia nazi, como sobretudo pela determinação, coragem, audácia e vontade de sobreviver que a caracterizam. Considero inclusive que a obra não perderia nada se apenas fosse protagonizada por Dalya – a sua força, o seu carácter, a sua história são tão poderosas, tão envolventes que o resto, por vezes, ressalta como supérfluo, excedente. Aliás fiquei um nada desapontada porque determinados momentos, determinadas relações entre Dalya e outras personagens (como Henry, por exemplo) parecem ter ficado perdidos algures, esquecidos, como um velho par de sapatos sem mais nenhuma aparente utilidade.
Acasos felizes é assim uma obra que vive de quem a protagoniza. Mas não é menos verdade que os saltos temporais, os espaços por onde deambulamos em busca de todas as personagens e o estilo da autora, suave, limpo, carinhoso sem cair na lamechice são acrescentos cruciais para que recomende sem reservas a sua leitura. Iluminará e agasalhará os dias, os instantes, os minutos de quem quiser deixar-se apanhar pela magia do corriqueiro, do banal e dos segredos e encantos que podem estar escondidos mesmo num simples par de sapatos.

NOTA – 09/10

Sinopse
Dalya é filha de um sapateiro e vive em Berlim, na década de 1930. Apesar de ter apenas 15 anos, sabe que o seu destino é seguir as pisadas do pai e tornar-se também ela criadora de sapatos. Mas quando Dalya é levada para um campo de concentração com a família, a sua vida muda para sempre, e vê-se obrigada a deixar para trás tudo aquilo que conhece…bem como um lindo par de sapatos, o primeiro feito por si.
Esses sapatos fazem uma viagem no espaço e no tempo até aos dias de hoje, indo parar a uma loja de artigos em segunda mão. Nesta loja entram Ray e Pinny, duas raparigas que não podiam ser mais diferentes uma da outra: Ray é órfã, vive numa instituição, mas sonha fugir para Nova Iorque, e Pinny é uma otimista incurável, pois acredita que, apesar de ter síndrome de Down, isso não a impedirá de concretizar os seus sonhos.

Um único par de sapatos cor-de-rosa irá unir estas três vidas, marcadas pela perda, numa história de coragem, amor e memórias e dos acasos felizes que nos interligam a todos.

O outro pé da sereia, de Mia Couto


Ficha técnica
Título – O outro pé da sereia
Autor – Mia Couto
Editora – Editorial Caminho
Páginas – 454
Datas de leitura – de 10 a 17 de dezembro de 2016

Opinião
É com alguma desilusão que digo que este livro de Mia Couto não me agarrou.
Comprei-o numa promoção numa ida aos supermercados Continente porque me senti imediatamente atraída pela citação que ilustra a contracapa e porque Mia Couto é Mia Couto, ou seja, um daqueles autores que por si só é sinónimo de mestria, de encantamento e de um estilo original, que nos aquece com passagens deliciosamente certeiras como estas:
A viagem não começa quando se percorrem distâncias, mas quando se atravessam as nossas fronteiras interiores.” (pág. 87)
“ (…) as pessoas é que abrigam a casa, a ternura é que sustenta o teto.” (pág. 93)
E confessou que, às vezes, ela ir para ali sentar-se só para reviver os tempos em a família se arredondava, no grávido círculo da felicidade.” (pág. 101)
A saudade é uma tatuagem na alma: só nos livramos dela perdendo um pedaço de nós.” (pág. 262)
Entrei na leitura da obra às escuras, sem saber nada sobre o que trataria a sua narrativa. Apenas tinha detetado que esta deveria estar repartida, já que o tipo de letra dos capítulos variava de vez em quando. Ao consultar o índice confirmei que a maior parte da história se passaria no ano 2002 e que ocasionalmente retrocederíamos no tempo (quase cinco séculos) e que passaríamos por Goa e por territórios africanos da costa leste do continente homónimo.
À medida que fui desbravando a obra fui sentindo uma mistura de sensações e sentimentos – depressa compreendi que a divisão temporal que a atravessa tem a sua razão de ser no quanto o colonialismo moldou a essência do continente e das gentes de África, no quanto o mesmo despoleta nos colonizadores e nos colonizados uma amálgama de emoções, reações e vontades e no quanto no seio dos autóctones corre a ideia de que o peso do passado é apenas isso, um peso e que, como tal, incomoda e cansa:
“– Irrita-me, senhor Benjamim, esse discurso da afirmação dos negros.
 – Irrita-o porquê?
 – O que diria você se encontrasse uns brancos proclamando o orgulho de serem brancos: não diria que eram nazis, racistas?
– Não pode comparar, meu amigo. São percursos diferentes…
– Ora, diferente, diferentes… Por que somos tão complacentes connosco próprios?
– A verdade é só uma, afirmou Benjamim, nós, os negros, temos que nos unir…
– É o contrário.
– O contrário, como? Sugere que devemos desunir?
– Nós temos que lutar para deixarmos de ser pretos, para sermos simplesmente pessoas.” (págs. 256, 257)
Fui também contactando com um considerável leque de personagens, residentes em aldeolas quase riscadas do mapa, estagnadas e “nostalgiando” épocas e momentos já devorados pelo tempo e gentes que, em pleno auge dos Descobrimentos, destapam, por um lado, a ânsia de espalhar a palavra e a fé dos brancos e, por outro, a previsível inutilidade desse esforço em querer cristianizar povos com crenças e fés tão enraizadas. Fui querendo conhecer mais profundamente algumas dessas personagens porque o entusiasmo perante uma história pressupõe que o leitor cria algum tipo de laço com uma ou mais figuras que a habitam. E aí é que esta obra de Mia Couto falhou comigo, pois não me aproximei de nenhuma, nem mesmo das protagonistas.
Essa indiferença que se encostou a mim durante os correspondentes dias de leitura poderá também estar relacionada com o meu lado cético e que não permite que eu creia no misticismo e ares mágicos que povoam as crenças e hábitos de personagens como Mwadia, o seu marido, a sua mãe e outras. As realidades e as rotinas estão num lado tão oposto àquele que me é familiar que, por muito que me tente contrariar-me a mim mesma e abrir-me a esse estilo de estar e crer na vida, não consigo…
Resumindo, reitero que esta obra é mais uma ode ao brilhantismo do estilo de Mia Couto, é uma janela para mundos e tempos distintos, transmite de forma acutilante e suave (passe a antítese) lições de História recente e menos recente, mas que, pelas razões que expus, a mim não me agarrou. Espero que em outros leitores a reação seja completamente diferente e que vá ao encontro de muitas das opiniões positivas que, terminada a leitura, encontrei pela internet fora.

NOTA – 07/10

Sinopse
Viagens diversas cruzam-se neste romance: a de D. Gonçalo da Silveira, a de Mwadia Malunga e a de um casal de afro-americanos. O missionário português persegue o inatingível sonho de um continente convertido, a jovem Mwadia cumpre o impossível regresso à infância e os afro-americanos seguem a miragem do reencontro com um lugar encantado. Outras personagens atravessam séculos e distâncias: o escravo Nimi, à procura das areias brancas da sua roubada origem. A própria estátua de Nossa Senhora, viajando de Goa para África, transita da religião dos céus para o sagrado das águas. E toda uma aldeia chamada Vila Longe atravessa os territórios do sonho, para além das fronteiras da geografia e da vida.

As diferentes viagens entrecruzam-se numa narrativa mágica, por via de uma mesma escrita densa e leve, misteriosa e poética de um dos mais consagrados escritores da língua portuguesa.

História de um cão chamado Leal, de Luis Sepúlveda


Ficha técnica
Título – História de um cão chamado Leal
Autor – Luis Sepúlveda
Editora – Porto Editora
Páginas – 112
Datas de leitura – de 08 a 09 de dezembro de 2016

Opinião
Nutro um carinho muito especial por Luis Sepúlveda e pelos seus escritos. Não li todos os seus romances, não me apaixonei por aqueles que li com a mesma intensidade, mas abro sempre um sorriso quando agarro qualquer um deles. Porque sei que qualquer um deles que saia do engenho deste escritor chileno falará ao meu coração, à minha veia ecologista e ao meu lado que ama incondicionalmente os animais, a exuberância e magia que milagrosamente ainda pintam o nosso degradado planeta e tudo que seja genuíno, autóctone.
Admito que a compra da última obra de Sepúlveda se deveu muito ao cantinho especial que O velho que lia romances de amor ocupa na prateleira dos livros que me marcaram. Quem leu a referida obra sabe que o velho partilha o protagonismo com a ameaçada selva amazónica e com um exemplar da espécie animal que sempre me leva às lágrimas no final da narrativa. Sendo assim, não hesitei quando me vi perante a história de um cão, chamado Leal e que habita as páginas de uma pequenina obra (como é apanágio do seu autor) que está deliciosamente ilustrada. Sabia, com aquela certeza que sentimos cá dentro e que nunca nos engana, que me iria enamorar do cão, que iria querer afagar-lhe o pelo, o lombo e as orelhas e que novamente iria confirmar de que os bichos são mais puros, mais íntegros e mais leais que os humanos.
E assim foi. Sepúlveda criou uma fábula (outra para juntar-se a muitas que já criou) que nos transmite um ensinamento moral muito simples, muito fácil de entender, mas que nós, os supostos seres racionais, continuamos a não decifrar e muito menos a pôr em prática – ninguém é superior a ninguém, precisamos muitíssimo mais da natureza para sobreviver do que ela de nós e os animais, quando tratados com dignidade, fazem pelo seu amigo humano o que parece humana e animalmente impossível. E criou um bicho protagonista que nos deixa com o coração apertadinho, que encarna na perfeição o que é aquele que é considerado o melhor amigo do homem, que é verdadeiramente leal e transmissor de sentimentos e atitudes que continuam a falhar no comportamento de homens e mulheres envenenados pela doença da modernidade – o egoísmo, a avareza e o querer a todo custo ser superior ao seu semelhante.
Foi uma leitura rápida mas muito íntima, muito tocante e dorida. Saboreei intensamente a harmonia entre a beleza do texto e das imagens que o ilustram, entre a linguagem indígena e a língua dita oficial (castelhano e correspondente tradução para português), entre presente e passado e sobretudo entre os fios de amizade e amor que unem um cão e um menino, um cão e um homem.
Sepúlveda é um contador e criador de fábulas modernas que possuem tudo para que saiamos delas mais solidários, mais conscientes e mais amantes do que verdadeiramente deve prevalecer no que nos preenche como seres humanos. Por isso, há que lê-las. E nada melhor do que começar com esta lindíssima história de um cão chamado Leal.

NOTA – 09/10

(Agradeço imenso a Miguel, um dos seguidores do blogue, ter-me alertado para a existência desta entrevista a Luis Sepúlveda, que é preciosa e que todos devem ouvir. Aqui fica o link: entrevista a Luis Sepúlveda)

Sinopse

Afmau, que significa «leal e fiel» na língua mapuche, a língua da Gente da Terra, é o nome ideal para um filhote de pastor-alemão que, sobrevivendo à fome e ao frio da montanha onde nasceu, assim demonstra a sua enorme lealdade à vida. Na companhia de Aukamañ, um rapazinho mapuche, Afmau aprende a conhecer o mundo que o rodeia e a respeitar a diversidade da natureza. Porém, nem todos pensam da mesma forma: um bando de estrangeiros, com costumes estranhos aos da Gente da Terra, chega à aldeia onde Afmau vive, semeando o caos e o medo. Condenado daí em diante a uma vida de servidão e crueldade, obedecendo a uma missão odiosa – perseguir e capturar todos os que se oponham ao bando de estrangeiros –, o destino acaba por proporcionar a Afmau uma derradeira oportunidade de redenção, numa fábula maravilhosa e naturalista onde Luis Sepúlveda reflete sobre o peso do passado e da memória, a força da amizade e da solidariedade e o respeito pela Terra e por todos quantos nela habitam.

Os dez livros de Santiago Boccanegra, de Pedro Marta Santos


Ficha técnica
Título – Os dez livros de Santiago Boccanegra
Autor – Pedro Marta Santos
Editora – Teorema
Páginas – 494
Datas de leitura – de 27 de novembro a 07 de dezembro de 2016

Opinião
Leitura exigente, leitura que me desassossegou como poucas já o fizeram. Leitura que me escolheu numa das últimas visitas que fiz à biblioteca municipal, pois, apesar de ir munida de papelinho com títulos e correspondentes autores, fui atraída para uma bancada de sugestões de leituras da qual me aproximei e, ato imediato, agarrei uma obra finalista do Prémio Leya, com um título e capa intrigantes e carregados de fascínio.
Sabia, após a leitura da sinopse, que este livro me tinha encontrado porque me queria desafiar, iria desafiar-me a trazer ao de cima toda a experiência de anos sem fim de leituras, a apetrechar-me com essa bagagem de leitora inveterada e a preparar-me para algo quase inédito. Convenhamos então que as expectativas, os níveis de ansiedade e de entusiasmo eram elevadíssimos e que não me importo de revelar já que o autor conseguiu elevá-los ainda mais.
O livro está, como o título indica, dividido em dez livros. A cada um deles, exceto o último, está associado o nome de uma personagem, mas engane-se quem pressupõe que cada um desses livros apenas se centra em cada uma das respetivas personagens que o intitulam. Nada disso. Numa obra em que o óbvio, o linear, a realidade deixam de ser encarados como tal num desfolhar de página, também não seria de esperar que as personagens de cada parte se enclausurassem no livro que o autor dedica às mesmas. Esse deambular de personagens, um vertiginoso para trás e para frente no tempo (tanto estamos em 2016 como de repente recuamos vários séculos) uma deslocalização geográfica que nos faz pisar cidades e locais portugueses, norte-americanos, franceses, albaneses, turcos, birmaneses são capazes de pôr qualquer leitor impotente, aturdido. Mas essa impotência e esse aturdimento antiteticamente acabam por ser o elemento que não nos deixa pousar o livro, que nos impele a seguir com a sua leitura e a terminá-la como a começámos – desassossegados, tontos, perturbados e completamente desarmados.
O leque de personagens parece não terminar nunca. Obriguei-me frequentemente a voltar atrás em busca de esclarecimentos, em busca de ligações, de laços familiares ou de outra índole. Obriguei-me a abrandar o ritmo de leitura. Nem sempre o consegui porque ou desesperava à procura de respostas ou tentava estar atenta à explosão de detalhes que cada livro me oferecia sobre a personagem que o intitulava ou sobre outra que se infiltrava num livro que não o seu. Viciei-me na dor de Santiago, na sua surdez seletiva, na sua carapaça de suspeita indiferença face a tudo e todos que o rodeiam, condoí-me com a busca desenfreada pela morte de uma rapariga de apenas 17 anos, arrepiei-me de medo perante a pessoa em que se torna Aamon Daro, enchi-me de ternura pelo avô de Santiago e não fui capaz de sentir-me indiferente perante nenhuma das restantes personagens que preenchem as quase 500 páginas da obra.
Para além de tudo que já mencionei, reitero que Os dez livros de Santiago Boccanegra é também uma obra ímpar por aliar a uma trama estonteante e personagens inesquecíveis referências a momentos históricos de vários países antípodas na sua geografia e nas tradições e modos de vida, referências a artistas associados às mais diversas artes (pintura, música, literatura) e excertos de canções que compõem uma banda sonora tocante e precisa, que nos faz recordar bandas como os Evanescence ou cantores como Simon and Garfunkel e o nosso Sérgio Godinho.
Por fim, tenho que referir que o estilo áspero, cru, pungente e muito bem condimentado por uma pesquisa muito exaustiva de um autor que se consagrou como jornalista e guionista permite-nos ser surpreendidos a cada passo e leva-nos a acreditar em acasos tão extraordinários como os que povoam o final apocalíptico da obra.
Sendo assim, não é de admirar que eu recomendo que se atrevam a ler estes Dez livros. Não é uma leitura nada fácil, irá parecer-vos amiúde que estão a ser abalroados por um comboio de emoções, de factos separados no tempo e no espaço e que se misturam num virar de página, mas se ansiarem por uma leitura verdadeiramente desafiante como eu anseio, irão de certeza deixar-se ser enredados por este romance de Pedro Marta Santos. Deixem-se, por favor, ser apanhados!
Não lhe atribuo a nota máxima por duas razões – primeira porque a correria destes últimos dias do ano impossibilitaram que me refugiasse na sua leitura e conseguisse captar todos os seus detalhes (acho que será um bom motivo para uma futura releitura); a segunda tem a ver com o meu lado cético que não me permite crer em tudo o que se passa ao longo da obra – por muito que o combata, esse ceticismo consegue amargar-me o sabor de romances como este.

NOTA – 09/10

Sinopse

Santiago Boccanegra, neto de marinheiros, sobreviveu à poliomielite lendo Moby Dick e vingou-se dos duros que o perseguiam na escola fazendo-se boxeur. Trabalha agora como segurança de um hotel de Lisboa, onde Laura Rutledge, única sobrevivente de um desastre aéreo, se perde como prostituta de luxo. Depois da tragédia que lhe é infligida nas Montanhas Malditas, o misterioso albanês Aamon Daro cultiva papoilas na Birmânia e, com o lucro do ópio, colecciona obras de arte, que gosta de encenar ao vivo. Jin, uma tímida adolescente norte-coreana, apaixona-se graças a uma canção dos Beatles e é obrigada a fugir para o Ocidente. Num caderno enterrado com a musa do poeta Dante Gabriel Rossetti aparece um soneto posterior ao óbito – e talvez seja de Pessoa. Um rapazinho com um tumor cerebral compõe música nos lençóis do hospital sem nunca a ter aprendido. Saint-Exupéry, desaparecido no deserto líbio após a queda do seu avião, encontra, além da raposa que o ignora, uma criança de uma tribo que se julgava extinta. Estas e muitas outras personagens reais e ficcionais vão formar uma enigmática teia em que os fios soltos acabam por unir-se num final surpreendente, a que não faltarão aves, música, morte e redenção. 

Balanço mensal - livros lidos e adquiridos em novembro


Novembro já cheira, ou melhor, já transpira Natal. E todas as livrarias – físicas e digitais – despejam na caixa do mail e das mensagens de telemóvel carradas de promoções que me levam, por um lado a aproveitá-las com sofreguidão e, por outro, a desesperar com tentações a que não posso, de maneira alguma, atender.
Durante este mês comprei, na totalidade, dez livros, mas metade deles são para oferecer na véspera de Natal. Dos restantes cinco um já está a ser lido pelo filhote, outro é para o maridinho e três – apenas três – são obras que assentam como uma luva na minha estante pessoal 😄
No país da nuvem branca, de Sarah Lark, é o primeiro volume de uma trilogia que despoletou a minha curiosidade há já algum tempo, sobretudo por causa de opiniões muito positivas que da mesma correm pelos meandros da blogosfera. Admito que não procurei saber muito sobre o teor da narrativa de nenhum dos volumes e correspondentes personagens. Apenas sei que as três obras são obras de época e que a primeira nos leva até aos confins do nosso planeta, ou seja, até à misteriosa e muitíssimo apelativa Nova Zelândia. É óbvio que as expectativas são de alto calibre, mas algo me diz que não vão cair em saco roto…
Sigo com muita dedicação dois blogues – Jardim de mil histórias e Planeta Márcia. Entre as três vamos trocando opiniões e sugestões que me vão levando a acrescentar títulos à wishlist ou simplesmente me “obrigam” a não passar por esse passo intermédio e ir de imediato às compras. Foi o que aconteceu este mês. Não consegui ficar indiferente à maravilhosa opinião que a Isaura de Jardim das mil histórias escreveu após a leitura de Demência de Célia Correia Loureiro, uma autora portuguesa que eu desconhecia. Tentei logo ver se poderia encontrar a obra na biblioteca municipal, mas, como infelizmente não faz parte do seu espólio, aproveitei uma das muitas promoções que a WOOK vem fazendo e adquiri-o. Na encomenda vieram mais dois inquilinos, também de autoras portuguesas. A mulher-casa, de Tânia Ganho também não mora na biblioteca da terrinha e como a opinião que a Márcia escreveu da respetiva obra era demasiado apetitosa para ser ignorada, aproveitei que estava a um preço muitíssimo bom e agora já habita a estante. Para que o maridinho me perdoe estas recaídas de “livrólica”, ofereci-lhe Vitória, de Luísa Beltrão, um romance de carácter histórico e que sei que lhe adoçará uns dias vindouros.
O trabalho, as correrias e as minhas leituras têm-me impedido de atualizar aqui no blogue as leituras do filhote e quem por cá passa com assiduidade deve estar a estranhar o facto de há já uns bons meses eu não ter publicado nada do que tem lido o mais pequenote. É verdade que ele ainda não possui a perseverança dos pais e vai deixando algumas leituras a meio, mas em abono da verdade tenho que dizer que estou em falta com o D. e que há pelo menos duas opiniões de livros que ele leu que tenho ainda por publicar. Uma delas é sobre o primeiro volume de uma coleção que se chama Os heróis do futebol e que o tem deixado entusiasmadíssimo. Aliás, suspeito que foi uma das leituras que mais deliciou o meu filho. Dava gosto vê-lo concentrado, de dedito a seguir a leitura e a querer ler mais um capítulo antes de dormir “só para saber o que se vai passar, mamã!”. Sendo assim, para dar alento a esse entusiasmo e para presenteá-lo pelas boas notas que está a ter, comprei-lhe o segundo volume da coleção escrita por Gerard Van Gemert – Jogo Perigoso – e ele lá o vai lendo nos intervalos de estudo, treinos e jogos e outras brincadeiras.
No que diz respeito a livros lidos, este mês voltou a ser preenchido com cinco leituras. Arranquei novembro com A senda estreita para o norte profundo, uma leitura crua e poderosíssima que me transportou de volta à Segunda Grande Guerra, mas a palcos menos habituais – Austrália, Japão e outros territórios asiáticos. Em seguida, estreei-me em leituras digitais e li Lo que dicen tus ojos, de Florencia Bonelli, uma autora argentina e uma das favoritas da Cristina, a minha benfeitora, que continua a inundar-me o mail com obras em formato e-book. Novembro também ditou que me inaugurasse no mundo literário de Ondjaki. Uma escuridão bonita é uma leitura que transborda sensibilidade, ternura, poesia em prosa, acompanhado de ilustrações que casam na perfeição com as palavras de um autor que quero continuar a saborear. Com a quarta obra lida – Se o passado não tivesse asas – mantive-me em terras angolanas e revisitei o estilo suave e contemplativo de Pepetela. Nos últimos dias do mês li Cortei as tranças, de António Mota. Não me encheu as medidas, não será uma leitura que aconselharei ao filhote (a protagonista é uma menina e a ação passa-se num tempo e lugares que se figurarão como quase irreais para ele, nascido em pleno século XXI), mas também não posso afirmar que tenha sido um desperdício de tempo.
Antes de terminar este balanço que para além de algo tardio vai igualmente longo, quero agradecer do fundo do coração à Cristina que, ao longo deste mês, me presenteou com estas obras:
§  Historia de un canalla (História de um canalha), de Julia Navarro
§  La templanza, de María Dueñas
§  Mil soles esplendidos (Mil sois resplandecentes), de Khaled Hosseini
§  Te dejé ir (Deixei-te ir), de Clare Mackintosh

         Por fim, deixo-vos o link que vos permite aceder à opinião completa das obras lidas este mês:
§  A senda estreita para o norte profundo, de Richard Flanagan
§  Lo que dicen tus ojos, de Florencia Bonelli
§  Uma escuridão bonita, de Ondjaki
§  Cortei as tranças, de António Mota


         Espero que o vosso mês tenha sido tão bom ou ainda melhor e que partilhem comigo o que leram e o que compraram.

Cortei as tranças, de António Mota


Ficha técnica
Título – Cortei as tranças
Autor – António Mota
Editora – Edinter
Páginas – 172
Datas de leitura – de 24 a 26 de novembro de 2016

Opinião
Gosto das histórias de António Mota por culpa do meu filhote, que trouxe algumas da biblioteca da escola para ler na companhia da mamã. Lembro-me particularmente bem de Sonhos de Natal que se lê de um fôlego só e que me levou às lágrimas. Por isso, e porque continuo a apostar em livrinhos infanto-juvenis que poderei recomendar ao D. e que me fazem regressar a anos mais inocentes e mais simples, trouxe da biblioteca municipal este Cortei as tranças.
Marta é uma menina que vê a sua vida sofrer o pior dos embates quando a sua mãe morre num acidente estúpido. Perante esta amputação do suporte que equilibrava uma existência típica de uma menina de treze anos, a protagonista da obra corta as suas tranças infantis e veste a vida da progenitora. Deixa a escola, trata da lida de casa e quer trabalhar para contribuir para o orçamento familiar. Cresce assim demasiado rápido. Começa a penetrar na rotina dos mais velhos, mas percorre-a aos tropeções, assoberbada de dúvidas e de nostalgias pelo que foi obrigada a arrumar num cantinho onde talvez nunca mais se possa esconder.
A ação de Cortei as tranças desenrola-se no meio rural e aflora não só a adolescência de Marta como também a de sua mãe. Faz-nos saltar para tempos e espaços que parecem já não mais existir e que seguramente se apresentarão como realidades desconhecidas aos miúdos nascidos no século XXI. Desconfio, por essa razão, que a simplicidade de essa vida comezinha e algo datada não seja muito apelativa, não desperte no meu filhote vontade de ler com entusiasmo esta obra, como o vejo a ler com concentração e de dedito a seguir as frases livrinhos mais atuais e mais próximos do que é o seu dia-a-dia e do que são os seus gostos. Confesso que eu própria estava à espera de algo mais, de mais emoção, de um lado mais introspetivo e de um protagonismo mais evidente de uma miúda que se apresenta como uma rapariguinha que revejo em muitas com as quais convivo diariamente – despreocupada, com alguma alergia à escola e consequentes doses de rebeldia e que, com a morte da vida, teria que despenhar-se num buraco aparentemente sem fundo…
Resumindo, não foi uma leitura tão saborosa como foram as suas antecessoras – A lua de Joana e O mundo em que vivi. Contudo, já tenho em vista outras obras do autor, porque são recomendadas no Plano Nacional de Leitura e porque quero que António Mota me volte a emocionar como o fez com Sonhos de Natal. Expectativas algo elevadas? Creio que não…
Por fim, deixo um reparo a algo que me desagradou – no exemplar que li (da Edinter) deparei-me com várias frases onde uma “desavergonhada” vírgula se intrometia entre o sujeito e o predicado. Não sei se essa sem-vergonhice acontece apenas no referido exemplar da Editora em questão ou se repete em outras, mas espero bem que não e que já tenha sido erradicada de edições posteriores. Estamos a falar de uma obra recomendada, como já disse, para alunos de 12, 13 anos.

NOTA – 07/10

Sinopse
Marta, protagonista da história, vê-se obrigada a crescer vertiginosamente. Perde a mãe. Corta as tranças. Era preciso parecer mais velha. Um terrível acidente corta-lhe os sonhos.
Livro recomendado pelo Plano Nacional de Leitura.

Se o passado não tivesse asas, de Pepetela


Ficha técnica
Título – Se o passado não tivesse asas
Autor – Pepetela
Editora – Publicações Dom Quixote
Páginas – 372
Datas de leitura – de 16 a 23 de novembro de 2016

Opinião
A escrita de Pepetela evoca serenidade, suavidade, minutos passados em contemplação. Se o passado não tivesse asas é apenas a segunda obra que leio deste autor angolano, mas tal como havia acontecido com O tímido e as mulheres voltei a embalar com a cadência melódica e algo monocórdica de mais uma história centrada em Luanda.
A narrativa salta no tempo entre duas protagonistas carismáticas e determinadas – Himba é uma menina que vê a sua vida sofrer uma mudança drástica quando a sua família é vítima de um ataque de guerrilhas do qual ela é a única sobrevivente. Consegue, com a ajuda de soldados, terminar a viagem que o seu pai havia planeado para fugirem à guerra e chega à capital do país apenas com a roupa que traz vestida e na bagagem um instinto de sobrevivência que a levará a bater a algumas portas que se lhe fecham na cara e a embrulhar-se de coragem para enfrentar uma nova vida, uma vida de rua, de fome, de frio e de dor. Dezassete anos mais tarde, travamos conhecimento com Sofia, uma mulher em plena ascensão económica, cujos dias são passados de casa para o restaurante do qual é sócia. Das restantes facetas da sua existência quase nada sabemos, apenas que nutre uma afeição muito forte pelo seu irmão mais novo, com quem ainda vive.
À medida que me fui adentrando na narrativa senti que estava a penetrar territórios e acontecimentos desconhecidos e ao mesmo tempo que estava a voltar a uma casa em que já havia sido muito bem recebida. Embalei-me então nesse ambiente familiar e durante uma semana deambulei com Himba pelas praias e outras zonas da ilha de Luanda, condoí-me do sofrimento pelo qual nenhuma criança deve passar, comprovei, uma vez mais, o quanto Angola é um país de contraste, de riquezas que escorrem dos bolsos de uns e nunca alcançam os bolsos de outros e aqueci estes últimos dias de temperaturas geladas com personagens verdadeiramente bondosas como “a senhora boa das trancinhas”.
Foi assim uma leitura quentinha, serena, sem muitos sobressaltos, com uma realidade dura, dorida, mas que chega até nós pela mão de um autor que sabe manejá-la, filtrá-la através de um estilo raiado de uma crueza suave e ao mesmo tempo assertiva. Foi um regresso saboroso ao mundo de Pepetela, com personagens cativantes, que vão crescendo e amadurecendo ao longo da narrativa, moldadas pelo contexto em que vão vivendo. Gostei particularmente de Himba enquanto criança, da sua introspeção, da sua precocidade e encantei-me com Kassule, com a sua determinação, a sua ligeireza e a sua integridade nunca beliscada por todas as convulsões que assolaram a sua vida.
Resumindo, Se o passado não tivesse asas não desiludiu. Tão-pouco deslumbrou, mas fez-me recordar outras histórias, como a de Capitães de Areia, de Jorge Amado, e aqueceu os meus momentos de leitura com os ares quentes e tumultuosos do dia-a-dia recente de um país que ainda está a tentar afirmar-se e a tentar encontrar o seu lugar numa amálgama de riquezas incalculáveis e consequentes lutas corruptas e desiguais.
Gostei.

NOTA – 08/10

Sinopse
A terrível luta diária pela sobrevivência dos meninos de rua, em plena guerra, contrasta com a fartura desmesurada dos jovens da nova burguesia de Luanda.
Himba, treze anos acabados de fazer, perde-se do resto da família, vendo-se de repente sozinha no mundo. Sem outros meios que não sejam a sua inteligência, consegue chegar a Lunda, onde conhece Kassule, um menino de dez anos que perdeu uma perna devido a estilhaços de uma mina. Ambos órfãos vítimas da guerra, dependendo do lixo dos restaurantes, unem-se para conseguirem subsistir, lutando pela sobrevivência dia a dia.
Sofia, que há muito aguarda uma oportunidade para mudar de vida, aceita gerir um restaurante, onde também dá conselhos sobre temperos. À medida que o restaurante vai ganhando clientes da classe alta de Luanda, também a ambição de Sofia vai sendo alimentada. E está disposta a agarrar todas as oportunidades que lhe garantam uma vida melhor, a ela e ao irmão Diego, um artista de rua que sonha expor em galerias.

Se o Passado não Tivesse Asas cruza duas histórias, duas grandes personagens femininas, numa narrativa original com um desfecho imprevisível, que retrata os últimos vinte anos da história de Angola.

Uma escuridão bonita, de Ondjaki


Ficha técnica
Título – Uma escuridão bonita
Autor – Ondjaki
Editora – Editorial Caminho
Páginas – 112
Data de leitura – 15 de novembro de 2016

Opinião
Olhei a capa e reparei em dois pares de pés virados um para o outro. Folheei as páginas e encantei-me com o negro das mesmas em contraste com um punhado de palavras e ilustrações que as iluminavam. E soube de imediato, com aquela certeza tão certeira que de vez em quando me inunda, que teria que mergulhar nesta escuridão bonita debaixo dos cobertores, com apenas um ponto de luz e rodeada de negrura e silêncio. Porque sabia que ia ser deliciosamente arrepiante dividir a escuridão com esta pequena estória, “em concha e aconchego, como se dois mundos, nessas gotas de negrume, fossem um só.” (pág. 25)
E assim foi. Em menos de uma hora embalei-me com a magia, a poesia e a doçura de palavras e imagens. Bebi o encantamento que transpira de uma estória recheada de inocência, de ansiedade, de desejos, de tremuras e de uma previsibilidade que em nada “amarga” o sabor inesquecível e perene que nos marca o travo durante e após termos chegado ao seu fim. Tive que combater constantes tentações de sublinhar passagem atrás de passagem, porque trouxe Uma escuridão bonita da última visita à biblioteca municipal da terrinha. Fui remediando essa tentação dizendo para mim mesma que semelhante preciosidade é motivo mais do que suficiente para um próximo gasto monetário numa livraria qualquer.
De uma realidade que é a realidade de todos os dias de uma Luanda parca de rendimentos, chega-nos uma noite banal, quotidiana, onde mais uma vez a luz foi abaixo. Os olhos adaptam-se a uma escuridão forçada e penetram numa beleza mais palpável, mais audível, mais cheirada. Disfarçam-se defeitos, medos, anseios, vontades e permite-se que os sonhos ganhem asas e até se cumpram. Como o sonho de partilhar um beijo com alguém de quem apenas vislumbramos sombras e brilhos.
Não sei mais que diga. Talvez não seja preciso dizer mais nada. Apenas partilhar algumas das muitas passagens que me arrebataram e me fazem querer ler tudo aquilo a que possa deitar a mão de um autor que terá que habitar com lugar de destaque na minha estante:
Afinal uma pessoa também pode dizer coisas sem ser com voz de falar. Foi a primeira descoberta assim estranha que eu fiz nessa noite duma bendita, bonita, falta de luz.” (pág. 16)
O silêncio é uma esteira onde nos podemos deitar.” (pág. 18)
A mão dela estava perto da minha. Senti uma comichão de ausência na proximidade daquele calor, sabia que os dedos dela estavam ali, e continuava a falar para não saber, no coração, que todo o meu corpo pedia uma carícia calada.” (pág. 18)
Um dia perguntaram à minha avó Dezanove o que era poesia. Primeiro ela ficou muito tempo calada, então pensaram que ela não tinha resposta. Mas ela depois falou: a poesia não é a chuva, é o barulho da chuva.” (pág. 62)
Depois das mãos e dos lábios, os nossos corações acelerados eram um único chuvisco de contenteza. Até acreditei que dentro de nós havia um cheiro de terra depois de chover.” (pág. 103)

Completamente deslumbrada e ainda em estado de encantamento, peço-vos que leiam e descubram Ondjaki. É um pecado dos mais escabrosos se não o fizerem!

NOTA – 10/10

Sinopse
"O palco sagrado das conversas eram dois: na varanda ou no quintal. Testemunhas: os mosquitos e os morcegos. Banda sonora: alguma televisão com som alto a dar bonecos ou telenovela.
Se não houvesse luz? Brincadeira gritada de Cinema Bu, todos contra todos, nas vozes de descrever os filmes que ainda nem tínhamos visto."

Uma Escuridão Bonita é, talvez, a simples estória de um beijo.