Ficha técnica
Título – Limões
na madrugada
Autora – Carla M. Soares
Editora – Cultura Editora
Páginas – 224
Data de leitura – de 18 a 22 de dezembro de 2017
Opinião
Este
é apenas o segundo livro que leio desta autora. Li há dois anos O cavalheiro inglês e gostei
bastante da contextualização histórica e da turbulenta e envolvente história de
amor entre uma jovem aristocrata portuguesa e um enigmático cavalheiro inglês.
Porém, a mais recente obra de Carla Soares é de outra estirpe, é mais densa,
mais intimista, dando primazia às personagens em detrimento da ação e revelando
uma maturidade que me conquistou desde a página inicial. Se já havia gostado
bastante de ler a primeira obra sua que caiu na estante cá de casa, que dizer
de Limões na madrugada, que
dizer de uma narrativa que nos absorve, que nos impulsiona a passar de capítulo
em capítulo, que nos faz apaixonar pela sua imperfeitamente perfeita
protagonista?...
Adriana
Branco nasceu no Porto, mas viveu quase toda a sua vida na Argentina. Sem que
nada o faça prever, recebe um telefonema de um advogado português que a informa
do falecimento da sua tia, irmã de seu pai, e que esta lhe deixou uma carta e
uns quadros pintados pelo seu irmão, tio de Adriana. Este contacto inesperado
com alguém do seu país natal abala-a de uma forma inexplicável e termina sendo
a desculpa ideal para regressar às suas origens, para cortar amarras com uma
vida aparentemente plena e para, simultaneamente, abrir-lhe portas para um
passado familiar de que pouco ou nada sabe e para descobrir-se a si mesma como
filha, como sobrinha, como neta, como amiga, como amante e, acima de tudo, como
mulher.
Percorrendo
as ruas da “minha” Cidade Invicta, perdendo o olhar nas águas do rio Douro,
viajando de múltiplas maneiras pelas suas encostas e saltitando do presente
para um passado que não é apenas seu, Adriana vai partilhando com o leitor tudo
que a compõe como mulher e como personagem redonda, complexa, imperfeita, cheia
de incongruências, medos, desvarios, desejos, fragilidades. É uma partilha
crua, despejada e que me fez ainda gostar mais dela, talvez porque a aproxima
muito do que eu sou, do que todos somos no nosso quotidiano, na nossa vidinha
comezinha.
As
descobertas resultantes do passar dos dias e de um contacto tanto desejado como
indesejado com as histórias e os segredos da sua família paterna vão moldando
uma Adriana que sempre se sentiu incompleta. Vão deixando-a aterrorizada, vão
obrigando-a a combater demónios de um passado familiar bem como os seus demónios
individuais e vão sobretudo fazendo-a crescer, arrumar a sua vida e a vida dos
seus em gavetas (que voltará a abrir ou deixará encerradas para sempre) e
compreender que ela é fruto, por um lado, de uns laços familiares carregados de
dor e de violência e, por outro, das suas próprias ações e decisões.
A
capa da obra vem enlaçada com uma fita de papel que compara Carla M. Soares a
três autoras distintas – Isabel Allende, Elena Ferrante e Agustina Bessa-Luís.
Percebo o porquê dessa comparação, principalmente com as autoras estrangeiras,
já que me recuso a ler qualquer obra da Agustina, desde que sofri horrores com
leituras suas obrigatórias em tempos de escola. Percebo a ligação com as letras
de Allende, visível no lado materno e argentino de Adriana, na fogosidade e
liberdade dos seus amores. Percebo a comparação com as obras de Ferrante, com a
violência, a dureza e a brutalidade que mancham o lado paterno de Adriana.
Porém, preferiria que estas comparações não tivessem um destaque tão visível,
porque considero que a voz da autora é muito sua, com talento suficiente para
ganhar o seu próprio espaço no nosso panorama literário e quem sabe fora das
nossas fronteiras. Estes Limões na
madrugada são um exemplo evidente dessa voz e do quanto a mesma tem
vindo a amadurecer e a sobressair perante os seus pares.
Termino
esta opinião reiterando o quanto apreciei esta leitura, o quanto me apaixonei
por Adriana, o quanto a sua personagem é fabulosa e nos agarra, o quanto o seu
protagonismo não obscurece personagens menos interventivas na trama, o quanto
estas são importantes para o interesse e a vontade que senti em devorar os
capítulos curtinhos da obra e em saber quem na verdade foram os Branco e o
quanto a autora soube tecer com segurança e engenho uma narrativa muito
portuguesa e muito próxima da realidade de todos nós. Por tudo isto, é óbvio
que recomendo muitíssima esta leitura e que espero que Carla M. Soares continue
a surpreender-nos e a maravilhar-nos com obras densas e emotivas como esta.
Ficarei à espera!
Resta-me
agradecer – e muito – à editora Cultura por me ter enviado esta obra em troca
de uma opinião honesta. Que seja a primeira de muitas e que esta parceria de
que tanto me orgulho floresça e continue a dar outros frutos!
NOTA
– 9/10
Ansiosa por regressar à
Argentina, mas presa a Portugal, distante do homem que ama e da mulher com quem
vive, Adriana está perante um dilema universal e intemporal: manter-se
comodamente na ignorância ou desvendar o passado da família, como se de um caso
policial se tratasse, enfrentando assim aquilo de que andou a fugir toda a
vida, por mais doloroso que seja.
Num jogo magistralmente
imaginado pela autora, entre a vida atual de Adriana e os ecos do Portugal
antigo, machista e violento dos seus pais e avós, esta história, de uma família
e dois continentes, é uma viagem entre o presente e o passado, uma ponte sobre
o fosso cultural que separa as gerações, um tratado sobre tudo aquilo que a
família pode fazer à vida de um só indivíduo.
Entre a sombra e a luz,
deixando que por vezes os silêncios falem mais alto do que as palavras, Limões
na Madrugada é um romance sobre o amor incomum, o poder da família e a
necessidade da coragem.
UMA HISTÓRIA TÃO SUBTIL
QUANTO IMPLACÁVEL.