História da menina perdida, de Elena Ferrante


Ficha técnica
Título – História da menina perdida
Autor – Elena Ferrante
Editora – Relógio D’Água
Páginas – 421
Datas de leitura – de 06 a 14 de junho de 2016

Opinião

Pensei: agora que Lila se deixou de ver tão nitidamente, tenho de me resignar a não voltar a vê-la.” (pág. 421)

Depois de praticamente nove meses encerra-se a tetralogia de A Amiga Genial. Encerra-se uma viagem por terras italianas, sobretudo pela cidade natal das duas protagonistas. Encerra-se a porta que me deu acesso privilegiado aos espaços, aos tempos e às vidas de duas protagonistas fantasticamente construídas pela mão genial da sua criadora. Encerram-se as derradeiras páginas de uma história que me possibilitou ser apresentada a uma das autoras mais promissoras da atualidade literária internacional. Encerra-se um ciclo que me “obrigou” a comprar os quatro volumes desta tetralogia e Crónicas do mal de amor.
Mas não é um encerramento definitivo. Como poderia sê-lo se o fascínio se mantém, se Ferrante marcou a sua posição no meu mundinho literário?
Esse fascínio e essa paixão são as consequências inevitáveis de um estilo cru, direto, realista e sem preâmbulos fantasiosos ou barrocos. Numa linguagem clara, simples faz-nos penetrar naquele que considero ser um reflexo muito verosímil de Nápoles da segunda metade do século XX e de Itália em geral. Pondo em palco um punhado generoso de personagens provenientes de várias classes sociais, Ferrante transporta-nos para vários espaços do seu país natal e muito provavelmente da cidade que a viu nascer ou crescer. Leva-nos sobretudo a entrar num bairro degradado, com poucas condições, mas onde se respira aquele ambiente que de imediato nos recorda filmes e séries que foram passando na RTP dos anos oitenta e noventa e que retratavam um povo mergulhado em conflitos sangrentos com a temível máfia, em constante sobressalto, mas ao mesmo tempo mostrando um orgulho entremeado com desconfiança, altivez e uma raiva que explodia em violentíssimas agressões físicas e verbais.
Como sabemos pela leitura dos volumes anteriores, foi nesse bairro e nesse ambiente atrás descrito que as nossas duas protagonistas cresceram. Contudo, enquanto Lila/Lina demonstra que, por muitas voltas que a sua vida dê, o bairro continua a ser a sua âncora, Lena/Lenú desde pequena refugiou-se nos estudos ansiando que os mesmos lhe oferecessem a sonhada possibilidade de escape, não só espacial como social. Assim, no final do terceiro volume, encontramos Lena a viver em Florença, casada com Pietro, filho de uma família abastada e socialmente reputada e Lila subindo a pulso na vida, mas nunca pondo em questão o abandono de Nápoles. Mas, por muito que Lena queira esquecer, arrumar num cantinho a sua existência anterior, as suas origens, estas perseguem-na e provocam uma reviravolta irremediável – o amor da sua infância, da sua adolescência de toda a sua vida reaparece e todos os seus planos, as suas diretrizes caem por terra. Enlouquecida pela constatação de que Nino a quer, a deseja, a persegue, Lena larga tudo – um casamento estável, uma vida desafogada, o marido, as filhas e segue Nino para onde quer que ele vá. E será assim que regressará a Nápoles e mais tarde ao bairro de onde tanto quis escapar. Lá, voltará ao convívio com Lila, à cumplicidade com a sua amiga de infância e aos velhos sentimentos de inferioridade, de ressentimento, de dúvida, de ciúmes. Voltará igualmente a um modo de vida sempre pontuado por superstições, rumores, medos, raivas, agressões num dialeto que em poucas palavras fere mais do que socos e pontapés e muita corrupção e criminalidade.
Este quarto e último volume acompanha então a vida adulta das duas amigas e leva-nos ao ponto de partida de toda a tetralogia – Elena e Lina já são senhoras de uma certa idade, já têm netos, mas a cumplicidade e amizade de outros anos desvaneceu-se. Contudo, com o súbito desaparecimento de Lina, que partiu para lugar incerto sem deixar qualquer rasto, Lena vê-se compelida a pôr em papel aquilo que a amiga sempre lhe pediu que não fizesse – contar as suas histórias, as suas vidas. Portanto, munida das suas recordações, do seu ponto de vista, oferece aos leitores uma perspetiva da amizade umbilical, estranha, ressentida, conflituosa, biliosa que sempre a uniu e unirá a Lila.
Considero que esta tetralogia é a consagração de uma Elena Ferrante que já me havia entontecido com as três histórias que compõem Crónicas do mal de amor. É impossível não nos enredarmos naquilo que esta misteriosa autora publica, porque, para além de personagens densas, redondas e maravilhosamente conflituosas, as suas narrativas são visuais, são realistas, são poderosas e põem, por um lado a nu a fealdade, a insegurança, a conflituosidade com os outros e consigo mesmo de qualquer ser humano e, por outro, os ambientes sociais de espaços degradados, pobres e de espaços requintados e mais afortunados.
Sendo assim, volto a aconselhar a leitura desta tetralogia e, já agora, de tudo o que já foi publicado por Ferrante, pois, apesar da leitura dos quatro volumes ter cimentado a relação antagónica de atração-repulsa que mantenho com Nápoles, percebo que esse cimentar é uma consequência do poder das palavras que provêm da genialidade da autora italiana.
Antes de terminar, apetece-me colocar a questão - de quem será a história da menina perdida?... Será da filha de Lila?... Será da própria Lila?... Será de Lena que nunca se encontrou verdadeiramente, que nunca se sentiu dona de si?...
Porque pode ser útil, deixo aqui o link dos comentários às três primeiras obras:
- A amiga genial
- História do novo nome
- História de quem vai e de quem fica

NOTA – 08,09/10

Sinopse

Deixando o marido em Florença, Elena volta a Nápoles para viver com Nino Sarratore, esperando que este se separe da mulher. É agora uma escritora reconhecida e procura escapar ao ambiente conflituoso do bairro onde cresceu e a sua família continua a viver. Evita encontrar Lila. Mas as duas amigas de infância não conseguem manter-se distantes e acabam mesmo por engravidar ao mesmo tempo, o que lhes permite reencontrar, por algum tempo, a passada cumplicidade.

10 comentários:

  1. Este livro já está à venda no Brasil, de preferência digital?

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    1. Olá!

      Pela pesquisa que fiz (já que sou portuguesa e não conheço bem a realidade brasileira) acho que o título do quarto livro da tetralogia de Ferrante que aqui se chama "História da menina perdida" no Brasil será "A filha perdida", como pode comprovar no link que envio. Também poderá verificar que já está à venda:
      http://www.saraiva.com.br/a-filha-perdida-9378957.html

      Beijinhos e desfrute da leitura que é magnífica!

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    2. olá, desculpe atrapalhar, mas este volume 'a filha perdida' é sobre outra história... pelo visto no brasil só em dezembro... abraços.

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    3. Olá!
      Não atrapalha nada! Ainda bem que está para muito breve a publicação do último livro da tetralogia de Ferrante aí no Brasil! Desfrutem muito!
      Beijinhos e leituras muito saborosas!

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    4. A filha perdida é uma outra crônica, não tem nada a ver com essa série napolitana...

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    5. Olá!
      Sim, já me tinha apercebido disso, mas obrigada pela informação.
      Já agora, pode dizer-me se já foi publicado aí no Brasil o último livro da série napolitana? Obrigada.
      Beijinhos e volte sempre!

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    6. Sim, já foi publicado no Brasil pela editora Globo, "história da Menina Perdida"

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    7. Obrigada pela informação. Já o sabia, mas mesmo assim fico muito feliz por finalmente ter chegado aí o desfecho desta tetralogia fantástica e que apaixonou tanta gente pelo mundo inteiro.
      Beijinhos e continuação de leituras muito saborosas.

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  2. Terminei hoje o 4º volume e, decidi vir ao seu blog ler a sua análise. Foram vários meses de leitura que agora custa-me separar. Mas recomendo muito tetralogia. A Elena revelou-se para mim a maior surpresa como amante e como mãe. Até como pessoa que sempre se sentiu aquém do sou valor intrínseco. Vamos, então, procurar outra autora que seja tão cativante como esta... Até breve

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    1. Olá, Sofia, obrigada pela visita.
      Compreendo essa dificuldade na separação. Parece quase que nos estamos a separar de alguém muito importante na nossa vida. Cortou-se o cordão umbilical de muitos meses!
      Sim, esta tetralogia é mesmo de recomendar, por tudo, incluindo a personagem de que fala, aquela que mais evoluiu, mesmo que essa luta de sentir-se inferior nunca tenha realmente acabado.
      Fico à espera de que me conte quem será essa autora ou esse autor tão cativante como Elena Ferrante. Se aceitar um conselho, sugiro a autora, também italiana, chamada Margaret Mazzantini! É maravilhosa!
      Beijinhos e volte sempre!

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