Anna Karénina, de Lev Tolstói

Quarta-feira, 03 de dezembro de 2014



Sinopse
«Embora seja uma das maiores histórias de amor da literatura mundial, Anna Karénina não é apenas um romance de aventura. Verdadeiramente interessado por temas morais, Tolstoi era um eterno preocupado com questões que são importantes para a humanidade em todas as épocas. Bom, há uma questão moral em Anna Karénina, embora não aquela que o leitor habitual possa crer que seja. Esta moral não é certamente o ter cometido adultério, Anna pagou por isso (num sentido vago pode dizer-se que é esta a moral do final de Madame Bovary). Não é isto, seguramente, por razões óbvias: se Anna ficasse com Karenin e escondesse do mundo o seu affair, não pagaria por isso primeiro com a felicidade e depois com a própria vida. Anna não foi castigada pelo seu pecado (podia muito bem ter-se safado deste) nem por violar as convenções da sociedade, muito temporais como aliás são todas as convenções e sem ter nada a ver com as eternas exigências da moralidade. Qual era então a «mensagem» moral que Tolstoi queria passar neste romance? Entendemo-la melhor se olharmos o resto do livro e compararmos a história de Lévin e Kiti com a de Vronski e Anna. O casamento de Lévin é baseado num conceito metafísico, não apenas físico, do amor, na boa vontade e no sacrifício, no respeito mútuo. A aliança Anna-Vronski é fundada apenas no amor carnal e é aqui que reside a sua ruína.»
Do Posfácio, de Vladimir Nabokov

Opinião
Há muito tempo que sentia o bichinho de aventurar-me na leitura dos clássicos russos, mais propriamente nas obras aclamadíssimas de Lev Tolstói, como Guerra e Paz e Anna Karénina. Mas também é verdade que essa vontade arrefecia um pouco sempre que pegava numa dessas obras e via o quanto custavam L
Contudo, no passado dia da mãe, os homens da minha vida resolveram esse pequeno problema ao presentearem-me com o pesadíssimo (e ainda caríssimo – mas com as prendas há que pôr de lado esses pormenores materiais…) volume da Relógio D’água de Anna Karénina! Só o comecei a ler no início de novembro por questões que já expliquei em publicações anteriores (leituras sempre por ordem cronológica de chegada à minha estante J) e demorei praticamente um mês a terminá-lo, não só porque é um volume com muitas páginas, com uma letrinha miúda, mas também porque o trabalho não permitiu que a leitura avançasse a um ritmo mais célere!...
É óbvio que já tinha muitas “luzes” acerca da trama desta obra, nem que fosse apenas pelas variadíssimas adaptações cinematográficas já feitas. Sabia que a narrativa se centrava nos amores escaldantes e impossíveis que revolucionam a vida de uma aristocrata casada com um homem que não ama. Mas esses conhecimentos “spoilers” não retiraram o prazer inerente a qualquer livro que passa pelas minhas mãos, nem que seja pelo facto de ter absoluta consciência de que um filme é sempre redutor quando comparado à obra à qual foi “roubar” o seu argumento. Sendo assim, inaugurei a minha “entrada” no mundo de Karénina com o costumado entusiasmo e digo, desde já, que esse entusiasmo nunca arrefeceu, apesar de ter sentido alguma resistência nas partes mais descritivas e que abordam temas que nunca me interessaram, como a agricultura ou a política.
Bom, tal como já disse e como se pode confirmar pela sinopse/comentário de Nabokov, a protagonista que dá título ao romance é-nos caracterizada no início da narrativa como sendo uma mulher extremamente bela, que faz qualquer homem e mulher segui-la com o olhar (por razões obviamente opostas) mal entra numa sala. Também ficamos a saber que está casada com um homem mais velho, a quem devota sentimentos de respeito e cordialidade e com quem tem um filho que adora. Vive uma existência pacata, que se rege pelas tradições e normas típicas de alguém que pertence à aristocracia – festas, jantares, visitas sociais a amigos ou a conhecidos, participações em eventos, etc. Será, contudo, num desses eventos que a vida de Anna experimentará um momento de viragem irreversível ao travar conhecimento com aquele que, até ao momento, era o prometido da cunhada mais nova do seu irmão. Desde que vê Anna entrar na festa, com um simples vestido preto, mas que realça de forma estonteante a sua beleza, Vronski fica enfeitiçado e tudo faz para que ela repare nele e compartilhe do seu entusiasmo. Segue os seus passos, “tropeça” nela e sente que a sua insistência começa a produzir frutos sempre que vê nos olhos de Anna uma centelha de alegria e prazer.
Como leitores, entendemos perfeitamente que Vronski e a atenção que lhe dedica não são indiferentes a Anna, mas como mulher ainda me apercebi melhor disso quando, após o regresso a San Petersburgo (feito na companhia da mãe de Vronski), a nossa protagonista repara, como se fosse a primeira vez, no quanto lhe são desagradáveis as orelhas grandes do marido… Para mim, esta é prova chave de que, para Anna, já não há retorno à sua vida de antes, àquela que vivia tranquilamente, antes da aparição de Vronski. Por muito que a sua consciência e moralidade lhe digam que esse sentimento que sente desenvolver por esse belo jovem está errado, Anna não lhe resiste e começará assim a viver uma existência dupla e adúltera. Primeiro fá-lo-á às escondidas de todos, mas posteriormente desafiará o mundo russo ao sair de casa, acompanhada do fruto do seu amor e pronta para enfrentar tudo e todos!
Contudo, este desafio sair-lhe-á muito caro, sobretudo porque, enquanto mulher adúltera, será ostracizada, quase todos lhe virarão costas e Anna nunca mais terá a vida que sonhou que poderia ter com Vronski. E o sofrimento é ainda mais doloroso por ter noção de que, ao escolher viver o seu amor, perderá para sempre Serioja, o seu filho querido, aquele que eternamente será o seu menino, aquele a quem devota uma adoração tal que a impede de sentir o mesmo pela filha que teve com Vronski.
         É em tudo o referido até agora que reside a mestria de Tolstói, a utilização de uma linguagem simples, objetiva, realista, pormenorizada, para comunicar com o leitor, para dar-lhe a conhecer toda a história trágica de Karénina, o quanto ela sofreu (talvez, segundo depreendemos pela voz do autor, por culpa própria…), mas também o quanto fez sofrer o seu marido, Vronski e sobretudo o seu filho Serioja. Aliás, tomamos verdadeiramente conhecimento desse sofrimento numa pequena passagem da obra, mas que me enterneceu e tocou muito, pois Tolstói, em poucas páginas, põe em cena um Serioja mais crescido, mas que continua a sonhar com a mãe, a vê-la em todas as mulheres de cabelo negro que passam na rua e a ansiar pelo seu toque, pelos seus mimos, pelos seus beijos…
         Esta minha opinião (que já vai um pouco longa J) não ficaria completa se não fizesse referência a outros aspetos não menos importantes – a inevitável comparação dos amores de Anna e Vronski com os de Lévin e Kiti, a evidente identificação de Tolstói com a personagem de Lévin e a permanente sensação que experimentei em toda a leitura e que me fez recordar o realismo de Eça e associar Anna Karénina a Os Maias. Começando pelas duas intrigas amorosas paralelas, acho que é fácil de adivinhar (com a ajuda da sinopse) que o que, à partida, indicava que a relação adúltera de Anna iria acabar de modo trágico, indicava igualmente que os amores de Lévin e Kiti teriam o merecido final feliz. Já no que diz respeito à identificação do autor com a personagem de Lévin, posso dizer que não precisaria de ler o posfácio de Nabokov para compreendê-la! Lévin é-nos descrito, desde o início, como um homem de princípios, que se rege pela sua consciência e não para satisfazer os seus impulsos e que “sabe que é seu dever assimilar o mundo à sua volta de forma inteligente e trabalhar para ocupar nele o seu lugar”. Na última parte da obra, encontramos mais uma prova dessa identificação autor-personagem, já que Lévin (que sempre questionou a fé) sente crescer no seu íntimo (tal como Tolstói na altura sentia) a importância da religião vista como a ferramenta para acreditar e espalhar o Bem. Por fim, foi impossível não fazer associações entre o autor russo e o nosso mestre do Realismo, pois, para além das descrições pormenorizadas da vida política e económica do país (algumas chatinhas, mas que me mostraram um pouco como era a Rússia dos finais do século XIX), faz-nos um retrato fidedigno de todas as personagens, que nos expõe o seu carácter, com defeitos, qualidades, opiniões, sentimentos e aquela perceção de que o que vem de fora é que é bom, é mais avançado, mais moderno, enfim, melhor do que é nosso, tradicional, genuíno…
         Concluindo, Anna Karénina proporcionou-me (nos quase 30 dias que esteve nas minhas mãos) uma leitura muito agradável e cumpriu o seu principal objetivo – fazer-me entrar no mundo dos clássicos russos e conhecer a fundo uma das maiores histórias de amor da literatura mundial.

         Agora num tom mais cómico/irónico, não posso deixar de partilhar esta imagem, que apesar de estar em espanhol, espelha na perfeição o meu dilema face ao preço exorbitante de alguns livros como o de Anna Karénina:


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