Crónicas do mal de amor, de Elena Ferrante


Ficha técnica
Título – Crónicas do mal de amor
Autora – Elena Ferrante
Editora – Relógio D’Água
Páginas – 385
Datas de leitura – de 01 a 10 de março de 2016


         Opinião
         Não foi fácil ler estas crónicas, isto é, as três histórias que Ferrante publicou antes da tetralogia de Nápoles que a catapultou para o merecido reconhecimento internacional. Não foi fácil porque as li numa época de trabalho dobrado e de muita burocracia consumidora de energia. Não foi fácil porque, apesar de já estar familiarizada com a escrita desta autora italiana, tive que fechar o livro em certas passagens, respirar fundo, fechar os olhos e preparar-me mentalmente para conseguir engolir a saliva de novo, normalizar a respiração e aguentar a revolta no estômago que me pedia a rendição, a desistência.
         Ser mãe é do melhor que a vida nos proporciona. Só quem é mãe tem a perfeita noção do quanto a ligação umbilical que nos une a um filho é física, emocional e inexplicável. É de um amor avassalador e que nunca diminui, pelo contrário. Por tudo isto, sempre que refletimos sobre o amor que existe entre uma mãe e um filho, pensamos em carinho, ternura, atenção, sacrifício, dádiva, renúncia e reagimos muito mal perante notícias de mães que abandonam os filhos, que não os cuidam, que descuram dos seus deveres de progenitora. Socialmente, é muito mais condenável se essa negligência ou abandono é materno que paterno, porque a ligação entre uma mãe e um filho vem de muito antes, vem de muitos meses antes do nascimento.
         As três histórias de Crónicas do mal de amor centram-se na relação entre mãe e filhos, no quanto essa ligação é determinante para o crescimento da criança, do quanto um descendente é completamente dependente de como a sua progenitora se comporta com ele e com os demais, do quanto esse comportamento molda o desenvolvimento e a personalidade de um filho. Contudo, a forma como Ferrante aborda o papel de filha, de mulher e de mãe transporta-nos para uma realidade que nada tem que ver com os estereótipos ou com o que convencionalmente associamos a esses laços filiais ou matrimoniais. A autora põe a nu integral, sem barreiras ou cortinas, o lado mais negro, mais duro, mais feio, mais abjeto daquilo que nos impele a magoar uma mãe ou um filho de propósito, a ser vingativo com quem nos deu a vida, a odiar aqueles seres que saíram da nossa barriga e que nos coartam, que impedem que sejamos donos de nós próprios.
         Perante o que disse até aqui, não me parece que seja difícil entender por que quase desisti destas crónicas de Ferrante. Por muito que me sinta à-vontade com a escrita desta autora, foi muito penoso e quase intragável obrigar-me a prosseguir com a leitura.
A primeira crónica/história – Um estranho amor – é um pouco surreal, as bizarras deambulações da protagonista Delia para tentar perceber o que esteve por detrás da morte da mãe levam-na a confrontar-se com um passado sujo, violento e a finalmente confessar os ciúmes, a repulsa e a atração de querer ser igual à sua mãe:
         “Era a ela que eu queria fazer mal. Porque me tinha abandonado no mundo a brincar sozinha com as palavras da mentira, sem limites, sem verdade.” (pág. 126)
         “Estava de tal forma decidida a tornar-me diferente dela que perdia uma a uma as razões para ser semelhante.” (pág. 131)
         A segunda crónica/história – Os dias de abandono – era aquela da qual tinha mais expetativas, sobretudo por partilha de opiniões com uma compincha literária e pelo seu início: "Num dia de Abril, a seguir ao almoço, o meu marido anunciou-me de repente que queria deixar-me. Fê-lo enquanto levantávamos a mesa (...) Falou muito dos nossos quinze anos de casamento, dos filhos, e admitiu que não tinha acusações a fazer-nos..." (pág. 135). Não posso dizer que as expetativas não tenham sido cumpridas, mas a um preço quase deveras elevado, porque tudo é demasiado real, demasiado cru e ao mesmo tempo tão verosímil, tão assustadoramente verosímil que o estômago revolve-se ainda agora que já se passaram 4 dias desde que terminei a leitura. Ainda agora fecho os olhos como que para proteger-me de toda aquela dor, irracionalidade, perda de chão e de vontade de existir, buraco sem fim que nos pode transformar literalmente num farrapo autómato, largado num canto qualquer da casa, que não reage perante nada nem ninguém, mas que ganha vida e uma fúria arrasadora perante aquele que aniquilou a sua vida.
         Por fim, a terceira crónica/história – A filha obscura – permite-nos acompanhar as férias de Lena, uma mulher de quase cinquenta anos, separada do marido e das filhas. Nos dias que passa à beira-mar descreve-nos a leveza que sente por não ter de viver mais com as suas filhas –  "Quando as minhas filhas se mudaram para Toronto, onde o pai vivia e trabalhava há anos, descobri com perplexo espanto que não sentia qualquer desgosto, sentia-me leve, como se só então as tivesse posto definitivamente no mundo." (pág. 292)
Estamos perante uma mãe que confessa o inconfessável – a prisão que os filhos trazem para a vida de uma mulher, a perda da sua identidade – deixa-se de ser mulher para apenas ser-se mãe. E para onde vão os nossos projetos, os nossos sonhos, a nossa rotina, os nossos pequeninos prazeres quando a nossa existência é abalroada pela chegada de um ser minúsculo que nos suga e nos aniquila? E quantas vezes essa aniquilação, esse sugar dos nossos minutos diários revelam o que de mais monstruoso e animal todos possuímos dentro de nós?
Com tudo isto, nem sei bem se recomendo a leitura destas crónicas… Estão maravilhosamente bem escritas (como tudo o que sai da mão de Ferrante), mas são surrealmente reais, são assustadoramente reflexos de quem somos, expõem com uma precisão clínica o que de mais abjeto/humano nos compõe e, como tal, não são nada fáceis de digerir. Deixo ao vosso critério se as querem ler ou não…

NOTA – 09/10 (É-me impossível dar a nota máxima por causa do choque em que ainda me sinto…)


Sinopse
«Ferrante disse que gosta de escrever histórias “em que a escrita é clara, honesta, e em que os factos — os factos da vida normal — prendem extraordinariamente o leitor”. Com efeito, a sua prosa possui uma clareza despojada, e é muitas vezes aforística e contida (…). Mas o que os seus primeiros romances têm de electrizante é que, ao acompanhar complacentemente as situações desesperadas das suas personagens, a própria escrita de Ferrante não conhece limites, está ansiosa por levar cada pensamento para diante, até à sua mais radical conclusão, e para trás, até à sua mais radical origem. Isto é sobretudo óbvio na forma destemida como os seus narradores femininos pensam sobre filhos e sobre maternidade

Do Prefácio de James Wood

2 comentários:

  1. Olá Ana,
    É uma autora que de facto quero conhecer e ler. Todo o mistério envolta desta autora ajuda :)
    Mas estou muito curiosa. Mais uma boa leitura então :)
    Beijinhos e boas leituras

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    Respostas
    1. Como já te disse, Isa, é uma autora a conhecer, sem dúvida alguma!
      Foi uma leitura que me desgastou, mas ao mesmo tempo brilhante!
      Beijinhos e boas leituras.

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