Terça-feira, 21 de julho de 2015
Hoje fiz uma maratona de 2 horas
matinais para poder terminar a obra que tinha em mãos – O meu irmão, de Afonso Reis Cabral. E agora que lhe virei a
última página, só consigo dizer que o que sinto nestes minutos pós leitura é um
emaranhado de estranheza, estupefação e aturdimento… Dios mío, que final é
este?... Quem é afinal “o meu irmão”?... Que perspetiva tenho que ter em conta
para compreender deveras a quem se refere o determinante possessivo da expressão
que dá título à obra?...
Estas são as perguntas que ainda
pululam na minha cabeça e mostram, no meu ponto de vista, algo inegável – o
autor é “um puto” com talento. Escreveu um livro que não deixa ninguém
indiferente, quer se goste ou não da narrativa que contém. O seu final é
verdadeiramente inesperado, para deixar qualquer leitor “abananado”. Nada do
que se lhe antecede nos leva a pressupor o que iremos encontrar nas páginas
finais e apanha-nos completamente de surpresa, mesmo um leitor experimentado e
“com muita rodagem” nestas andanças literárias.
Não posso afirmar que tenha sido uma
leitura fácil e agradável. As personagens, na generalidade, não conquistam a
nossa simpatia, à exceção do pai dos dois irmãos que, para mim, contém doçura,
imaginação e fantasia em doses suficientes para cativar-nos sem que para isso
necessite de muito destaque na ação. As restantes, sobretudo o narrador e os
vizinhos que “lhe fazem companhia” na reclusão a que se obriga (a si e ao seu
irmão) em Tojal são personagens cuja descrição e ações nos fazem criar deles um
retrato cru, frio, de gente insípida, que nada dá nem recebe da vida e que nos levam
instintivamente a mostrar o desagrado e a estranheza que são habituais em
situações que estão para além do nosso entendimento ou que produzem aversão,
repugnância.
A ação arranca com uma viagem
atribulada (como é qualquer viagem que façamos por terras montanhosas como o são
as terras de Arouca e vizinhas) que o narrador faz com o seu irmão Miguel,
portador da síndrome de Down, e de quem toma conta desde que os seus pais
faleceram. O destino é Tojal, uma aldeia perdida nas serras e onde os dois irão
passar uma temporada para que o Miguel se recupere do seu afastamento de
Luciana, que, como saberemos posteriormente, é o amor da sua vida.
Essa reclusão a que o narrador submete
o irmão (e, por consequência, a si também) permite-nos conhecê-los melhor, não
só através das descrições do que vão fazendo para ocupar os seus dias como
principalmente através de recorrentes analepses a vários momentos passados da
vida de ambos. Assim, iremos compreendendo que, presentemente, do afeto e da
cumplicidade que na infância uniram os dois irmãos já quase nada resta e que a
sua convivência é marcada pela tensão, pela indiferença, pelo ressentimento,
pela raiva e por algo obscuro de que pouco ou nada sabemos…
A ação vai sendo então preenchida com
as referidas analepses e descrições do quotidiano (estranhíssimo…) em Tojal e
isso faz com que determinadas passagens sejam um pouco entediantes. Em
contraste, assinalo o início da narrativa e principalmente a parte final,
aquela que nos vai esclarecendo, que nos vai dando respostas sobre a
importância de Luciana para Miguel, sobre o porquê deste ter ficado ao encargo
do seu irmão e não das suas irmãs (com quem tinha um contacto mais próximo) e
sobre quem é na verdade o narrador, essa personagem contraditória, solitária,
estranha, misantropa e que está tão exemplarmente bem construída que não é
possível que ninguém lhe fique indiferente.
É na construção das personagens e numa
escrita crua, violenta e ao mesmo tempo com passagens belíssimas que reside a
mestria do autor. Ao longo da leitura questionei-me muitas vezes sobre o quão
bem Afonso Cabral, de 24, 25 anos, retrata um homem com quase o dobro da sua
idade e descreve situações associadas a realidades distantes da sua. Assinalo
como exemplos dessa competência a descrição da morte do pai, o capítulo que nos
fala da velhice dos pais e da carinhosa e mútua dependência dos dois e de
Miguel; o final assombroso e outras passagens que transcreverei a seguir.
Em conclusão, recomendo esta obra a
quem for apreciador de uma escrita ingeniosa e de uma narrativa surpreendente.
Não a recomendo a quem estiver somente à espera de uma história que aborde a
síndrome de Down por si só ou que deseje uma leitura leve ou fácil. O meu irmão
não se enquadra de maneira nenhuma nesses parâmetros e nem nos de uma leitura
agradável, prazenteira. Não nos deixa indiferente, é verdade. Mas é tão
surpreendente como incomodativa… E mais não digo J
Aqui ficam as prometidas passagens:
“Naquela
zona o homem ainda não existira. Era como se também nós não existíssemos e por
isso, por muito que as canções digam que aos vinte anos somos os reis do mundo,
ali pouco mais éramos do que reis de nós mesmos. Para além disto, apenas o
tojo, os pinheiros, os choupos, as bétulas e os eucaliptos, mas sobretudo o
vento sobre o tojo, os pinheiros, os choupos, as bétulas e os eucaliptos. O
mesmo vento que se deitava no rio e depois, já erguido, abanando-se como um
cão, espalhava um pouco de rio pelos montes em volta.” (pág. 63)
“A
água deixava uma camada doce na pele e especialmente no pescoço da minha
namorada. E na boca. O que mais ouvia era a respiração dela a repercutir-se na
minha. As formas do biquíni acompanhavam o respirar e o corpo parecia um pássaro
acossado mas apto para voar. (…) Deixei de prestar atenção aos pormenores, por
exemplo o lóbulo da orelha ou um gesto mais cansado. Ela perdeu presença em
mim, esqueci-me de a incluir nas palavras do dia-a-dia.” (pág. 64)
“… os
livros eram um local onde eu ouvia as vozes dos outros como se fossem ditas por
mim. Deste modo, não representavam bem um refúgio, mas sim o sítio aonde
voltava a casa.” (pág. 121)
NOTA – 08/10
Sinopse
Com
a morte dos pais, é preciso decidir com quem fica Miguel, o filho de 40 anos
que nasceu com síndrome de Down. É então que o irmão - um professor
universitário divorciado e misantropo - surpreende (e até certo ponto alivia) a
família, chamando a si a grande responsabilidade. Tem apenas mais um ano do que
Miguel, e a recordação do afeto e da cumplicidade que ambos partilharam na
infância leva-o a acreditar que a nova situação acabará por resgatá-lo da
aridez em que se transformou a sua vida e redimi-lo da culpa por tantos anos de
afastamento. Porém, a chegada de Miguel traz problemas inesperados - e o maior
de todos chama-se Luciana.
Numa casa de família, situada numa aldeia
isolada do interior de Portugal, o leitor assistirá à rememoração da vida em
comum destes dois irmãos, incluindo o estranho episódio que ameaçou de forma
dramática o seu relacionamento.
O Meu Irmão,
vencedor do Prémio LeYa 2014 por unanimidade, é um romance notável e de grande
maturidade literária que, tratando o tema sensível da deficiência, nunca cede
ao sentimentalismo, oferecendo-nos um retrato social objetivo e muitas vezes
até impiedoso.
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