Domingo, 08 de novembro de 2015
Opinião
Raramente me acontece, mas hoje não
está a ser fácil escrever a opinião sobre a obra que terminei de ler na
sexta-feira. Sobram-me as ideias, mas ainda não fui capaz de as organizar. A
ver se desta é de vez.
Toda
a luz que não podemos ver
retrata a Segunda Guerra Mundial. Tema reincidente, repetido, já infinitamente
esmiuçado e que tantas vezes passou pelas minhas mãos. Mas, como referiu uma
das minhas alunas quando lhe disse de que tratava a obra, “Se é sobre a Segunda Guerra, vale a pena”. Porque a repetição não é
sinónimo de banalidade, de trivialidade. Pelo contrário. A atração que me
impele a ler um e outro livro sobre esse conflito horrendo e desumano faz de
mim alguém melhor, faz-me apreciar os pequenos nadas que foram arrancados das
vidas dos milhões daqueles que “subviveram” (palavra que “aprendi” contigo, Ana
Sofia) o impensável e o insuportável. E sei (da forma mais visceral) que
deixarei de gostar de mim como pessoa no momento em que a leitura de uma obra como
Toda a luz que não podemos ver
cesse de bulir comigo e de me apontar a luz no meio de tanta escuridão,
obscurantismo, podridão que reinam (ainda) por estas bandas…
As 517 páginas da obra alternam-se em
capítulos curtinhos. Fazem-nos viajar em frequentes analepses e entre pequenas
terreolas alemãs, Berlim, Paris e Saint-Malo. Apresentam-nos os protagonistas,
as personagens secundárias e enredam-nos irremediavelmente numa história
tocante, comovedora e que ainda se mantém comigo… De tal forma que está a
impedir que aprecie devidamente o livro que agora me faz companhia.
Como mãe, senti uma imediata e quase
umbilical ligação com os dois protagonistas da obra. Werner é órfão, vive com a
irmã numa casa que acolhe órfãos e já tem o seu futuro escrito – aos quinze
anos irá trabalhar para as minas que lhe mataram o pai. Contudo, até atingir
essa malfadada idade, tenciona “brincar” com o seu lado engenhocas e consertar
tudo o que encontra. “O milagre”, “a luz” dá-se quando deita mãos a um rádio e
fá-lo funcionar. Liga-o todas as noites e, na companhia de Jutta, sua irmã,
percorre a estática até tropeçar numa suave voz francesa que lhe fala de temas
como ilusões de ótica, eletromagnetismo, conclui o programa com um pedido
disfarçado de vaticínio – “Abram os olhos
e vejam tudo o que conseguirem ver antes que se fechem para sempre” (pág.
55) e despede-se pondo a tocar a música que sempre acompanhará Werner e
desempenhará um papel preponderante na sua vida – Clair de Lune, de Debussy. Por sua vez, Marie-Laure (órfã de
mãe), vive com o pai em Paris e segue-o para todo o lado, não só porque a sua
cegueira assim o determina, mas também porque adora passar o dia deambulando
pelas salas e jardins do Museu da História Natural onde o seu pai exerce as
funções de serralheiro e guardador de todas as chaves dos infindáveis armários,
salas, salões e outros espaços que compõem um dos inúmeros e importantes museus
da capital francesa.
A preparação para a guerra e o estalar
desta produzem uma reviravolta nas vidas destes adolescentes e tudo o que lhes
era familiar, rotineiro, normal é-lhes retirado para ser substituído por uma
máquina infernal, mas muito bem oleada que dizima a individualidade, a
diferença, o livre arbítrio, os sonhos, a luz. A Werner, o ingresso num colégio
que doutrina e faz sobressair a pureza, a resistência e a superioridade da raça
ariana rompe e macula-lhe a inocência, endurece-o e obriga-o a ser mais um que
tudo faz para sobreviver. A Marie-Laure, a ocupação do seu país tira-lhe literalmente
o chão debaixo dos pés, aquele chão já tão familiar e que a levava, com um
memorizado número de passos e sarjetas, a ser independente e a não necessitar
do pai para movimentar-se de casa ao museu ou a outro local. A Jutta, irmã de
Werner, a guerra traz a concretização de todos os seus pressentimentos. Ao pai
de Marie, força-o a atravessar mais de metade do país e a buscar refúgio na sua
cidade natal. Força-o ainda a “fazer ouvidos moucos” aos pedidos e à torrente
de perguntas com que a sua filha o inunda e a tentar devolver-lhe a segurança e
normalidade do seu mundo pré-guerra. A Frederick, companheiro de colégio de
Werner, a fraca visão e o carácter sonhador são incomodativos, são o oposto de
um exemplar da perfeita raça ariana e fá-lo-ão sofrer as piores consequências.
A Étienne, tio-avô de Marie, esta guerra agudizará os terrores e fantasmas que
não o abandonam desde que combateu a anterior guerra mundial. Mas também
despoletará de novo o seu lado humano, levá-lo-á a sentir-se útil, a retaliar
como pode para que o obscurantismo não tape a luz, não dizime com os sonhos, o
conhecimento, a esperança e a crença.
Por tudo isto, Toda a luz que não podemos ver é uma obra impressionante.
Arranca de uma forma algo lenta, morna, é verdade, mas mexe na chaga que foi a
Segunda Guerra Mundial sem recorrer à descrição de combates ou do holocausto judeu.
Dá-nos a perspetiva dos dois lados através de exemplos daqueles que uma
doutrina totalitária pretende moldar ou aniquilar – os detentores ou sôfregos de
sonhos, de conhecimento, de oportunidades de saber mais. Com uma linguagem
cuidada, poética, que evidencia o poder das palavras (com poucas podemos dizer
tanto…), levou-me a experimentar os mais variados sentimentos e a entregar-me
toda à leitura – como sempre o faço quando esta merece.
O único reparo que tenho que fazer à
obra e que me faz não lhe dar a pontuação máxima tem a ver com a morosidade da
parte inicial e com a trama à volta da joia “Mar de chamas”. Na minha opinião,
não acrescenta nada de fundamental à narrativa. É incontestável que muita da
ação na “parte francesa da obra” anda à volta do valor incalculável da joia, no
entanto as outras tramas que compõem a história são suficientemente poderosas
para transformá-la numa história a não perder para quem vibra com romances
históricos, com romances muito bem elaborados e com romances que nos tocam
profundamente.
Por fim, transcrevo aqui uma frase que
aborda em poucas palavras a essência desta obra – “O que a guerra fez aos sonhadores” (pág. 493) e, como não poderia
deixar de ser, o link para a música
que atravessa, que une o princípio da narrativa com o seu fim e que faz com que
o seu desenlace seja tão mágico e intenso – Clair
de Lune, de Debussy.
NOTA – 09/10
Sinopse
Marie-Laure
é uma jovem cega que vive com o pai, o encarregado das chaves do Museu Nacional
de História Natural em Paris. Quando as tropas de Hitler ocupam a França, pai e
filha refugiam-se na cidade fortificada de Saint-Malo, levando com eles uma
joia valiosíssima do museu, que carrega uma maldição.
Werner
Pfenning é um órfão alemão com um fascínio por rádios, talento que não passou
despercebido à temida escola militar da Juventude Hitleriana. Seguindo o
exército alemão por uma Europa em guerra, Werner chega a Saint-Malo na véspera
do Dia D, onde, inevitavelmente, o seu destino se cruza com o de Marie-Laure,
numa comovente combinação de amizade, inocência e humanidade num tempo de ódio
e de trevas.
Depois destas palavras e do som já sei o que vou ler a seguir.
ResponderEliminarObrigado pela sugestão.
Espero também ficar rendido.
Seguramente que vais ficar rendido!
EliminarBoas leituras!
Olá,
ResponderEliminarAdoro romances históricos e este parece ter tudo para ser imperdível.
Já está na minha lista, tenho de o ler, sem dúvida.
Ah, e adoro a Clair de Lune, faz-me querer ler ainda mais. :)
Boas leituras!
Muito obrigada pelo comentário! Sim , é um romance imperdível por todas as razões que mencionaste! Vale mesmo a pena!
EliminarEspero que apareças mais vezes por estas bandas!
Continuação de muitas e boas leituras!!
Olá Ana,
ResponderEliminarEste livro tem tudo para gostar excepto o seu tamanho. Não gosto muito de livros grandes.
Mas a este talvez dê uma oportunidade.
Beijinhos e boas leituras
Isaura, dá-lhe uma oportunidade e não te arrependerás!
EliminarContinuação de boas leituras!