Toda a luz que não podemos ver, de Anthony Doerr

Domingo, 08 de novembro de 2015




Opinião
       Raramente me acontece, mas hoje não está a ser fácil escrever a opinião sobre a obra que terminei de ler na sexta-feira. Sobram-me as ideias, mas ainda não fui capaz de as organizar. A ver se desta é de vez.
Toda a luz que não podemos ver retrata a Segunda Guerra Mundial. Tema reincidente, repetido, já infinitamente esmiuçado e que tantas vezes passou pelas minhas mãos. Mas, como referiu uma das minhas alunas quando lhe disse de que tratava a obra, “Se é sobre a Segunda Guerra, vale a pena”. Porque a repetição não é sinónimo de banalidade, de trivialidade. Pelo contrário. A atração que me impele a ler um e outro livro sobre esse conflito horrendo e desumano faz de mim alguém melhor, faz-me apreciar os pequenos nadas que foram arrancados das vidas dos milhões daqueles que “subviveram” (palavra que “aprendi” contigo, Ana Sofia) o impensável e o insuportável. E sei (da forma mais visceral) que deixarei de gostar de mim como pessoa no momento em que a leitura de uma obra como Toda a luz que não podemos ver cesse de bulir comigo e de me apontar a luz no meio de tanta escuridão, obscurantismo, podridão que reinam (ainda) por estas bandas…
As 517 páginas da obra alternam-se em capítulos curtinhos. Fazem-nos viajar em frequentes analepses e entre pequenas terreolas alemãs, Berlim, Paris e Saint-Malo. Apresentam-nos os protagonistas, as personagens secundárias e enredam-nos irremediavelmente numa história tocante, comovedora e que ainda se mantém comigo… De tal forma que está a impedir que aprecie devidamente o livro que agora me faz companhia.
Como mãe, senti uma imediata e quase umbilical ligação com os dois protagonistas da obra. Werner é órfão, vive com a irmã numa casa que acolhe órfãos e já tem o seu futuro escrito – aos quinze anos irá trabalhar para as minas que lhe mataram o pai. Contudo, até atingir essa malfadada idade, tenciona “brincar” com o seu lado engenhocas e consertar tudo o que encontra. “O milagre”, “a luz” dá-se quando deita mãos a um rádio e fá-lo funcionar. Liga-o todas as noites e, na companhia de Jutta, sua irmã, percorre a estática até tropeçar numa suave voz francesa que lhe fala de temas como ilusões de ótica, eletromagnetismo, conclui o programa com um pedido disfarçado de vaticínio – “Abram os olhos e vejam tudo o que conseguirem ver antes que se fechem para sempre” (pág. 55) e despede-se pondo a tocar a música que sempre acompanhará Werner e desempenhará um papel preponderante na sua vida – Clair de Lune, de Debussy. Por sua vez, Marie-Laure (órfã de mãe), vive com o pai em Paris e segue-o para todo o lado, não só porque a sua cegueira assim o determina, mas também porque adora passar o dia deambulando pelas salas e jardins do Museu da História Natural onde o seu pai exerce as funções de serralheiro e guardador de todas as chaves dos infindáveis armários, salas, salões e outros espaços que compõem um dos inúmeros e importantes museus da capital francesa.
A preparação para a guerra e o estalar desta produzem uma reviravolta nas vidas destes adolescentes e tudo o que lhes era familiar, rotineiro, normal é-lhes retirado para ser substituído por uma máquina infernal, mas muito bem oleada que dizima a individualidade, a diferença, o livre arbítrio, os sonhos, a luz. A Werner, o ingresso num colégio que doutrina e faz sobressair a pureza, a resistência e a superioridade da raça ariana rompe e macula-lhe a inocência, endurece-o e obriga-o a ser mais um que tudo faz para sobreviver. A Marie-Laure, a ocupação do seu país tira-lhe literalmente o chão debaixo dos pés, aquele chão já tão familiar e que a levava, com um memorizado número de passos e sarjetas, a ser independente e a não necessitar do pai para movimentar-se de casa ao museu ou a outro local. A Jutta, irmã de Werner, a guerra traz a concretização de todos os seus pressentimentos. Ao pai de Marie, força-o a atravessar mais de metade do país e a buscar refúgio na sua cidade natal. Força-o ainda a “fazer ouvidos moucos” aos pedidos e à torrente de perguntas com que a sua filha o inunda e a tentar devolver-lhe a segurança e normalidade do seu mundo pré-guerra. A Frederick, companheiro de colégio de Werner, a fraca visão e o carácter sonhador são incomodativos, são o oposto de um exemplar da perfeita raça ariana e fá-lo-ão sofrer as piores consequências. A Étienne, tio-avô de Marie, esta guerra agudizará os terrores e fantasmas que não o abandonam desde que combateu a anterior guerra mundial. Mas também despoletará de novo o seu lado humano, levá-lo-á a sentir-se útil, a retaliar como pode para que o obscurantismo não tape a luz, não dizime com os sonhos, o conhecimento, a esperança e a crença.
 Por tudo isto, Toda a luz que não podemos ver é uma obra impressionante. Arranca de uma forma algo lenta, morna, é verdade, mas mexe na chaga que foi a Segunda Guerra Mundial sem recorrer à descrição de combates ou do holocausto judeu. Dá-nos a perspetiva dos dois lados através de exemplos daqueles que uma doutrina totalitária pretende moldar ou aniquilar – os detentores ou sôfregos de sonhos, de conhecimento, de oportunidades de saber mais. Com uma linguagem cuidada, poética, que evidencia o poder das palavras (com poucas podemos dizer tanto…), levou-me a experimentar os mais variados sentimentos e a entregar-me toda à leitura – como sempre o faço quando esta merece.
O único reparo que tenho que fazer à obra e que me faz não lhe dar a pontuação máxima tem a ver com a morosidade da parte inicial e com a trama à volta da joia “Mar de chamas”. Na minha opinião, não acrescenta nada de fundamental à narrativa. É incontestável que muita da ação na “parte francesa da obra” anda à volta do valor incalculável da joia, no entanto as outras tramas que compõem a história são suficientemente poderosas para transformá-la numa história a não perder para quem vibra com romances históricos, com romances muito bem elaborados e com romances que nos tocam profundamente.
Por fim, transcrevo aqui uma frase que aborda em poucas palavras a essência desta obra – “O que a guerra fez aos sonhadores” (pág. 493) e, como não poderia deixar de ser, o link para a música que atravessa, que une o princípio da narrativa com o seu fim e que faz com que o seu desenlace seja tão mágico e intenso – Clair de Lune, de Debussy.



NOTA – 09/10

Sinopse
Marie-Laure é uma jovem cega que vive com o pai, o encarregado das chaves do Museu Nacional de História Natural em Paris. Quando as tropas de Hitler ocupam a França, pai e filha refugiam-se na cidade fortificada de Saint-Malo, levando com eles uma joia valiosíssima do museu, que carrega uma maldição. 

Werner Pfenning é um órfão alemão com um fascínio por rádios, talento que não passou despercebido à temida escola militar da Juventude Hitleriana. Seguindo o exército alemão por uma Europa em guerra, Werner chega a Saint-Malo na véspera do Dia D, onde, inevitavelmente, o seu destino se cruza com o de Marie-Laure, numa comovente combinação de amizade, inocência e humanidade num tempo de ódio e de trevas.

6 comentários:

  1. Depois destas palavras e do som já sei o que vou ler a seguir.
    Obrigado pela sugestão.
    Espero também ficar rendido.

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  2. Olá,
    Adoro romances históricos e este parece ter tudo para ser imperdível.
    Já está na minha lista, tenho de o ler, sem dúvida.
    Ah, e adoro a Clair de Lune, faz-me querer ler ainda mais. :)
    Boas leituras!

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    1. Muito obrigada pelo comentário! Sim , é um romance imperdível por todas as razões que mencionaste! Vale mesmo a pena!
      Espero que apareças mais vezes por estas bandas!
      Continuação de muitas e boas leituras!!

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  3. Olá Ana,
    Este livro tem tudo para gostar excepto o seu tamanho. Não gosto muito de livros grandes.
    Mas a este talvez dê uma oportunidade.
    Beijinhos e boas leituras

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    1. Isaura, dá-lhe uma oportunidade e não te arrependerás!
      Continuação de boas leituras!

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