Para onde vão os guarda-chuvas, de Afonso Cruz


Ficha técnica
TítuloPara onde vão os guarda-chuvas
Autor – Afonso Cruz
Editora – Alfaguara
Páginas – 622
Datas de leitura – de 05 a 15 de setembro de 2017

Opinião
Há muito que ouvia dizer que Para onde vão os guarda-chuvas é a melhor obra de Afonso Cruz ou pelo menos uma das melhores. Talvez seja. Porém, não encontro nela nada que a destaque das outras que já li – Os livros que devoraram meu pai e Flores. Isto não significa que não me tenha agradado. Não, agradou-me muito, mas, no meu entender, não é uma obra “mais-prima” do que as suas congéneres.
Em Para onde vão os guarda-chuvas tropecei de novo em passagens deliciosamente perfeitas, em paralelismos muito assertivos entre a vida e um tabuleiro de xadrez, em fotografias esclarecedoras e num conjunto de personagens que só poderiam sair da mente lúcida e mágica de Afonso Cruz. Contudo e paradoxalmente, aquilo que mais me emocionou, que mais me tocou foi ao mesmo tempo aquilo que me fez questionar o número de páginas da obra, aquilo que não permite que lhe atribua uma nota mais elevada. Falo da personagem de Isa.
Isa é o âmago, a essência da obra, mas é superficialmente mencionado nas páginas iniciais e só regressa à narrativa quase cem capítulos depois. Compreendo que esse “interregno” tem como propósito explicar o porquê de um muçulmano ter adotado uma criança cristã, mas Isa é demasiado especial para estar tanto tempo sumido da narrativa. Compreendo se afirmarem que a obra vai muito mais além do que as suas personagens, que aflora muitos temas cruciais à nossa existência, mas os dias em que passei na companhia de Isa iluminaram-se com uma luz muito própria, com uma vontade louca de sentá-lo no meu colo e dar-lhe um abraço interminável, com um aperto no peito que ainda hoje me acompanha, com gritos e soluços mudos, com um sorriso coberto de lágrimas por testemunhar o fim de uma luta – ter conseguido aquilo que tanto, mas tanto desejava – ser o menino da sua “mãe viva”.
Custa-me assim perceber por que uma obra com mais de seiscentas páginas não tenha mais de Isa. Como pode um autor criar uma personagem tão bela, tão carente, tão generosa, tão sofrida, tão cativante e não lhe dar mais protagonismo? E como pode um autor criar um Isa, dar-nos a possibilidade de conhecê-lo, de amá-lo e não antever que nos sintamos frustrados por apenas estar ao seu lado durante um terço da obra?...
Uma coisa é certa – nunca me esquecerei de Isa. E isso devo-o à magistralidade de Afonso Cruz. Posso estar descontente com o facto de ter esperado perto de cem capítulos para conhecê-lo, mas esse descontentamento é suavizado por tudo o resto, por tudo o que faz de Isa uma personagem única, inesquecível. Por isso, obrigada, Afonso Cruz.
Tenho noção de que esta opinião é algo redutora, que haveria muito ainda para dizer ou comentar sobre Para onde vão os guarda-chuvas. Mas não me peçam mais, porque não me é possível satisfazer-vos. Colmato a falha partilhando algumas passagens plenas de sabor e de genialidade:

Para onde vão os guarda-chuvas? São como as luvas, são como uma das peúgas que formam um par. Desaparecem e ninguém sabe para onde. Nunca ninguém encontra guarda-chuvas, mas toda a gente os perde. Para onde vão as nossas memórias, a nossa infância, os nossos guarda-chuvas?” 

“(…) como um pensamento está dentro do cérebro, como o verbo sentar está dentro das cadeiras.” (pág. 49)

“ – Um homem e uma mulher (…) são um puzzle de duas peças que só se resolve com o amor”. (pág. 68)

“ – Posso continuar cristão?
(…)
“ – Podes, desde que sejas um bom muçulmano.” (pág. 379)

NOTA – 08/10

Sinopse
O pano de fundo deste romance é um Oriente efabulado, baseado no que pensamos que foi o seu passado e acreditamos ser o seu presente, com tudo o que esse Oriente tem de mágico, de diferente e de perverso. Conta a história de um homem que ambiciona ser invisível, de uma criança que gostaria de voar como um avião, de uma mulher que quer casar com um homem de olhos azuis, de um poeta profundamente mudo, de um general russo que é uma espécie de galo de luta, de uma mulher cujos cabelos fogem de uma gaiola, de um indiano apaixonado e de um rapaz que tem o universo inteiro dentro da boca.
Um magnífico romance que abre com uma história ilustrada para crianças que já não acreditam no Pai Natal e se desdobra numa sublime tapeçaria de vidas, tecida com os fios e as cores das coisas que encontramos, perdemos e esperamos reencontrar.

8 comentários:

  1. Não li nenhum destes que tu já leste, mas li outros três que me fizeram apaixonar pelo Afonso Cruz. Que escritor talentoso! Mal posso esperar por deitar a mão a esta obra também.
    Paula

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    1. É um autor com uma genialidade ímpar. Só de uma genialidade como a dele poderia sair uma personagem como Isa que ficará sempre comigo, sem dúvida!
      Que livros leste dele? Quais foram essas três obras-primas?

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  2. O primeiro, o que me deixou agradavelmente espantada, foi "A Boneca de Kokoschka". Depois, confirmei o meu deslumbramento com "O Pintor debaixo do Lava-Loiças" e adoro "Enciclopédia da Estória Universal-Recolha de Alexandria", cujas entradas fui saboreando aos poucos enquanto tomava o café. Para ler, tenho "A Recolha de Dresner" e os "Livros que Devoraram o meu Pai". São ambos pequenos, mas explico o meu drama com os livros com um mini-texto da "Recolha de Alexandria": Einstein estava errado. "Einstein está cada vez mais errado. Isto não é um contínuo espaço/tempo. É um contínuo falta-de-espaço/falta-de-tempo." :-)
    Paula

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    1. Maravilhosa e na mouche a citação :)
      Anoto todas as tuas sugestões, ainda por cima a biblioteca da terrinha tem-nos todos :) Virão comigo um dia destes!
      Obrigada! Beijos!

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  3. Olá Ana,
    O que me assusta neste livro é o tamanho. Mas vou lê-lo. Só não sei quando. O tempo não estica ;)
    Gostei da tua opinião, como sempre!
    beijinhos e boas leituras

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    1. Obrigada, querida Isa!
      Se te ajuda, digo que a obra é gigantesca, mas lê-se muito fluidamente, os capítulos são curtinhos e semeados de fotografias. Quando o teu tempo esticar um bocadinho, arrisca! A personagem que tem o teu nome/diminutivo merece que a conheças!
      Beijinhos e leituras muito saborosas!

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  4. Olá Ana
    Este é um dos livros de autores nacionais que mais quero ler. Fico contente que tenhas gostado.
    Beijinhos e boas leituras

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    1. Olá, Sara!
      Também espero que gostes, mais do que eu, até!
      Afonso Cruz é uma aposta ganha, acredita!
      Beijinhos e leituras muito saborosas.

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