Ficha técnica
Título – O
Czar do amor e do tecno
Autor – Anthony Marra
Editora – Teorema
Páginas – 384
Datas de leitura – 05 a 12 de maio de 2018
Opinião
Terminei
de ler este livro há praticamente duas semanas e só agora é que encontrei um
bocadinho de tempo para tentar escrever a correspondente opinião e sobretudo
tentar fazer justiça a uma leitura soberba, mas que, afirmo já, teria saboreado
com mais prazer se a tivesse feito numa altura em que não estivesse tão
afundada em trabalho.
Mas
adiante. Comecemos pelos aspectos mais práticos e mais óbvios.
Esta
obra de um autor bem mais novo do que eu (!) está dividida em três partes – o
lado A e o lado B (como se de uma cassete se tratasse e esta divisão/semelhança
são intencionais), intervalados por uma parte que dá título ao livro. Nas
mesmas atravessamos um período bastante longo da História da URSS e da Federação
Russa e acompanhamos uma panóplia de personagens que, conjuntamente com objetos
ou acontecimentos, fazem a interligação entre as referidas partes e as
subpartes que as dividem.
As
personagens são gente normal, vulgar, uma ou outra com um lugar mais destacado
na sociedade. Iniciamos a leitura em Leninegrado, em 1937 e o protagonista é
Roman Osipovich Markin, que trabalha no Departamento de Agitação e Propaganda
do Partido, apagando de todos os documentos visuais (fotos, pinturas, imagens…)
os rostos de todos aqueles que são considerados inimigos do regime. Terminamos
a leitura no espaço sideral, num ano desconhecido e desta vez o protagonista é
Kolya, um ex-combatente da guerra da Chechénia que poderá finalmente ter a
oportunidade de ouvir uma cassete que lhe gravou o seu irmão mais novo.
Entre
um capítulo e outro, entre o que abre a obra e o que o encerra passam-se mais
de setenta anos, deambulámos pelo regime comunista de Estaline, acompanhamos o
seu derrube, a Perestroika de Gorbatchev e ficámos estupefactos (pelos menos eu
fiquei) ao constatar que Vladimir Putin está no poder desde 2000. Desde 2000!
Percorremos as ruas de Leninegrado/São Petersburgo, de Grozni, a capital
chechena e Kirovsk, no extremo norte, perto de terras finlandesas e
compreendemos as idiossincrasias de um povo subjugado por uma ditadura que
pareceu e parece eterna…
O tom
global da narrativa é de uma crítica mordaz, de ironia e de extensos exemplos
do que foi e é feito em nome de um regime supostamente do e para o povo e de
uma economia que tem que prosperar a todo o custo, nem que para isso os
habitantes de toda uma cidade tenham que morrer ou estejam condenados a morrer de
toda a espécie de doenças provocadas pelo fumo e derrames tóxicos provenientes
da extração de níquel.
O tom
mais íntimo, mais subliminar e que porventura pode não chegar a todos os
leitores (desconfio que não chegou, por exemplo, ao meu marido, que leu – como
é costume – a obra primeiro do que eu) está visceralmente ligado às
personagens, às suas vidas e àquilo que as une umas com as outras. Criei laços
imediatos com Roman (apesar daquilo que era obrigado a fazer para a manutenção
e “saúde” do regime), com Kolya (outro Kolya que iluminou a minha vida!) e a
sua demanda amorosa, com o seu irmão Alexei, com a dor de “filho amputado de
pai” de Vladimir e com a sua própria parentalidade e com a história sofrida de
Nadya e de Ruzlan. Todos eles trouxeram uma luz muito própria à narrativa e
permitiram que a sua leitura fosse fluída, intensa, tocante e saísse quase
incólume perante factores externos (tais como o meu cansaço, o acumular
assustador de trabalho ou níveis inabituais de desconcentração) ou factores
internos – a divisão em capítulos protagonizados por personagens à partida
muito distintas e sem nada que as relacionasse e ambientados em tempos e espaços
distantes uns dos outros.
Ao
reler aquilo que escrevi até aqui, continuo com a desconfortável sensação de
que não estou a fazer aquilo a que me propus no início da opinião – fazer
justiça a uma obra excelente. Tenho consciência de que a mesma não se destina a
qualquer leitor e isto sem preconceito algum da minha parte. Mas, caramba,
queria mesmo muito que aqueles que partilham dos meus gostos literários lhe
dessem uma oportunidade e percebessem por si mesmos o quanto Anthony Marra
escreve maravilhosamente bem, o quanto há de pesquisa exaustiva nas páginas de O czar do amor e do tecno, que
“fechassem os olhos” ao seu título aparentemente pouco feliz e à sua capa nada
bem conseguida e entrassem na vida de personagens muito bem concebidas e que
são capazes de arrancar do leitor sorrisos, lágrimas, compaixão, ternura e
acenos de mútuo entendimento. Arrisquem, pois vale a pena! Não é uma leitura
muito fácil, nem dá nada ao leitor de bandeja, mas fá-lo crescer e ganhar em
conhecimento histórico, geográfico e sobretudo humano.
Termino
deixando uma citação que não vou esquecer, de tão verdadeira que ela é para os
regimes totalitários e que ainda abundam em muitos locais do nosso mundo em
2018:
“… Um dia perceberão que aquilo que os torna
vulgares é precisamente o que os mantém vivos.” (pág. 103)
NOTA –
09/10
Sinopse
Em 1937, um promissor pintor de
Leninegrado vê-se reduzido à tarefa ingrata de “apagar”, de pinturas e
fotografias, os dissidentes do regime soviético. Entre os inúmeros rostos que
faz desaparecer, está o do seu próprio irmão, condenado à morte. Na atualidade,
uma historiadora de arte dedica-se a estudar o mistério que se esconde na obra
desse censor. Nas centenas de imagens que alterou, ele introduziu
obsessivamente um rosto. Quem foi essa figura anónima, a um tempo dissimulada e
omnipresente na História da Rússia?
O segredo do criador de rostos
atravessa décadas e fronteiras e confunde-se com a memória do país. Cruza as
trajectórias de uma bailarina caída em desgraça, espiões polacos, mercenários,
um aprendiz de mendigo, uma beldade siberiana, e até um lobo. E como pano de
fundo, uma cidade com um lago de mercúrio, um céu sem estrelas e uma floresta
de plástico. Um livro profundamente original, que nos leva de S. Petersburgo
aos confins da Sibéria e à Chechénia, e consolida Anthony Marra como um dos
jovens escritores americanos mais aclamados da atualidade.
Pois é, nem me lembrava, mais um Kolya! Sou péssima para nomes de personagens.
ResponderEliminarFizeste justiça, sim, porque eu nunca conseguiria traduzir por palavras a paixão que tenho por este livro. Os últimos capítulos foram um turbilhão de emoções em que tanto me comovia com aquelas personagens tão trágicas e sofridas, como me ria com a parte do "Estou? Gogol?" e depois chorava de novo na exposição do fim.
Para mim, este livro está recheado de pontos fortes, mas gosto particularmente das múltiplas perspectivas, de como alguém como o Kolya tanto pode parecer um brutamontes desprezível como um homem nobre. E tens razão, nem todos vão gostar, porque é daqueles livros que dão luta, em que, devido aos saltos temporais, tudo faz sentido apenas no fim. E todo o enredo em torno do quadro é magistral! Percebi neste livro e confirmei depois no "Musa" que tenho um fraquinho por quadros nas histórias.
Desejo-te um bom feriado e que recuperes a energia rapidamente, para vires passear e desgraçar-te à FLL sem o stress do ano passado!
Paula
Desculpa, Paula, só responder agora!
EliminarComo sempre, o teu comentário é maravilhosamente assertivo! Com que então um fraquinho por quadros em narrativas?... Eu nem tanto, talvez porque sempre senti uma barreira que me impede de apreciar pintura... Nunca me deslumbrou, mas para aqueles que se emocionam perante uma tela, deve ter um gostinho especial uma trama onde o que alguém pinta ou pintou tem um papel preponderante.
E sim, perdi-me este ano com mais calma na FLL ;) E mais direi em breve!
Beijinhos!