Ficha técnica
Título – Rapariga
em guerra
Autora – Sara Novic
Editora – Minotauro
Páginas – 234
Datas de leitura – 13 a 19 de maio de 2018
Opinião
Hoje
vou fazer algo que apenas fiz poucas vezes aqui no blogue – vou escrever um
texto de opinião conjunto, isto é, vou partilhar convosco como foi a minha
leitura de duas obras que abordam o mesmo tema numa perspetiva feminina – a
guerra nos Balcãs.
Não é
novo para ninguém o meu fascínio (algo mórbido, eu sei) pelos grandes conflitos
bélicos. Não me canso de procurar obras que se centrem nas duas Guerras
Mundiais, na Guerra Civil espanhola ou na Guerra Civil jugoslava ou Guerra da
Bósnia. Já li um número infindável de romances, de ficção ou não-ficção, que me
foram ajudando a entender melhor o porquê destes conflitos, o quando e onde e,
sobretudo, as suas aterradoras consequências. Contudo, estes dois últimos que
li trouxeram-me uma perspetiva algo diferente – permitiram que eu conhecesse o
conflito jugoslavo a partir do ponto de vista feminino – de uma criança e de
uma jovem.
Em Rapariga em guerra, viajamos até
Zagreb. Estamos no ano de 1991, ano que trará a independência da Croácia e o
início do conflito entre o recente país independente e a Sérvia. Ana, de dez
anos, vive com os seus pais e a irmãzinha, Rahela, na capital croata e viverá,
da pior forma possível, essa guerra que destruirá toda a paz aparente que
existia entre os estados que compunham a República da Jugoslávia. Dez anos mais
tarde, Ana reside nos Estados Unidos, mas o leitor facilmente entende que a
jovem, agora com vinte anos, enfrenta os seus dias como se fosse uma sonâmbula.
Frequenta o terceiro ano de Literatura na NYU, namora com Brian, para todos os
efeitos é uma jovem normal, igual a tantas outras, mas bastou um convite para
ir falar, na ONU, da sua experiência como sobrevivente da Guerra Civil Jugoslava,
para que essa aparente normalidade estale e se compreenda ainda melhor o quanto
a rotina e a vida de Ana se assemelham às de um autómato, que se levanta, trata
das tarefas diárias, sai com os amigos, namora inclusive, mas que não abre a
ninguém, nem mesmo a si mesma, as portas do seu íntimo e muito menos do seu
passado.
Não
quero alongar-me mais no resumo da narrativa para que esta possa surpreender
qualquer leitor que queira mergulhar nela. O que sim, quero dizer, é o quanto
gostei de ler a obra de estreia de Sara Novic, o quanto a sua juventude choca
no bom sentido com a maturidade da sua escrita e o quanto sofri, berrei em
silêncio, apertei os punhos e sufoquei com a dor de uma menina que perdeu muito
mais do que a sua infância com uma guerra que a autora do livro de que vou
falar a seguir define com uma absoluta e crua precisão – “A guerra é cada indivíduo, é o que lhe aconteceu, o modo como isso lhe
aconteceu, como a sua vida foi alterada.” (pág. 10, de Como se eu não existisse)
Sublinhei
e destaquei muitas partes de Rapariga
em guerra por senti-las, vê-las como essenciais e como exemplos da
referida maturidade do estilo da sua autora e do caminho brilhante que a mesma
trilhou para escrever um livro que tinha tudo para cair em descrições
exageradamente sentimentais e que puxassem a lágrima fácil e que, pelo
contrário, está impregnada de um tom sóbrio e que permite que o leitor construa
as suas conclusões e compreenda a dor latente que tortura e sufoca a existência
de uma menina que cresceu cedo demais e ainda não conseguiu encontrar o seu
lugar no seu mundo e no dos outros.
Para
finalizar e antes de partilhar convosco como foi a minha leitura da próxima
obra, deixo-vos algumas das passagens que sublinhei/destaquei e que espero
possam convencer aqueles que, a esta altura da opinião/review ainda não estejam
desejosos de conhecer Ana, uma rapariga em guerra, mesmo após dez anos do
estalar da Guerra Civil Jugoslava.
“Eu não compreendia porque quereria o
Exército Nacional Jugoslavo atacar a Croácia, que estava cheia de jugoslavos,
mas quando lhe [ao meu pai] perguntei, limitou-se a suspirar e a fechar o
jornal.” (pág. 26)
“Num efeito secundário da guerra moderna,
tivemos o estranho privilégio de assistir à destruição do nosso país através da
televisão.” (pág. 31)
“Na Eslovénia, a guerra durara dez dias. Não
partilhavam fronteira com a Sérvia, nem tinham pleno acesso ao mar; não eram da
etnia errada.” (pág. 34)
“O que a guerra significava na América era
tão incongruente com o que acontecera na Croácia – com o que estava, decerto, a
acontecer no Afeganistão –, que a própria utilização dessa palavra parecia um
erro.” (pág. 90)
NOTA –
10/10
Sinopse
Uma saga de guerra, um relato
da passagem à idade adulta, uma história de amor e de memória, Rapariga em Guerra
percorre todas estas facetas e revela-se um romance de estreia ao mesmo tempo
perturbador e cheio de esperança, escrito com a força da verdade.
Ficha técnica
Título – Como
se eu não existisse
Autora – Slavenka Drakulic
Editora – Edições ASA
Páginas – 142
Datas de leitura – 29 a 31 de maio de 2018
Opinião
Após
ter lido Rapariga em guerra,
lembrei-me de que tinha anotado no meu caderninho das leituras um título que
uma das mais fiéis seguidoras do blogue (Obrigada, Paula! J)
me tinha recomendado há uns tempos e que retratava o mesmo tema e também no
feminino. Trouxe-o comigo na última visita à biblioteca da terrinha, mas não
quis lê-lo logo a seguir ao de Sara Novic. Precisava de uma pausa porque, mesmo
sendo obcecada por este género de leituras, tenho plena consciência dos meus
limites. Assim sendo, intercalei as duas obras com outras menos doridas e só
peguei em Como se eu não existisse
nos últimos dias de maio.
Slavenka
Drakulic é escritora e jornalista e oferece-nos na sua obra um documento
histórico que não sei se é ficcionado ou baseado em vidas reais. A protagonista
é-nos apresentada apenas pela inicial S. e também conhecemos assim praticamente
todas as outras personagens. Em finais de maio de 1992, a aldeia onde S. está temporariamente
colocada como professora primária (está a substituir uma colega em licença de
maternidade) é invadida pelos soldados sérvios e todas as mulheres e crianças
são enfiadas num autocarro e enviadas para um campo de concentração. Aturdidas,
todas obedecem sem reagir às ordens do inimigo e S. tenta acreditar que tudo
aquilo será provisório, que ficarão no campo até que se proceda a uma troca de
prisioneiros de guerra. Contudo, como aconteceu seguramente com milhares e
milhares de judeus que embarcaram em vagões de comboios rumo à morte, S. está
apenas iludir-se, a consciente ou inconscientemente a iludir-se e a experiência,
que já era humilhante, castradora, irá piorar e escalar para níveis atrozes e humanamente
impensáveis e inimagináveis.
Li esta
obra em dois dias e ainda a estou a digerir. Como mulher, creio que ainda dói e
fere mais ler relatos hediondos como este, mesmo que os mesmos sejam ficcionais,
já que infelizmente a ficção não difere em nada da realidade, do que se passou
entre homens, mulheres e crianças que até há pouco tempo eram vizinhos, amigos
a até da mesma família. Não consigo, mesmo depois de ter lido tantos e tantos
livros sobre este e outros conflitos, conceber como é que um ser humano é capaz
de cometer tais atrocidades a outro ser humano. Sei que me estou a repetir, que
já escrevi inúmeras vezes este último pensamento, mas nunca irei entendê-lo.
Nunca.
O tom
sóbrio e comedido de Rapariga em
guerra repete-se em Como se eu
não existisse, embora nesta última obra, englobada numa coleção
intitulada Documentos, a esse tom se
junte outro um pouco mais gráfico, mais cru, mais objetivo. Ambos os desenlaces
amolecem a carapaça que fomos criando face a tanto horror e fazem-nos libertar
umas lágrimas ou sorrir perante um futuro um pouquinho menos sombrio. Numa
perspetiva muito pessoal, dou ligeira preferência à obra de Sara Novic, talvez
porque sou mãe e doeu-me muito, muito fundo a história de Ana, da pequenina
Ana. No entanto, recomendo sem reservas as duas obras, embora a de Slavenka
Drakulic esteja esgotada e só a consigam encontrar numa biblioteca, num alfarrabista
ou plataformas como o OLX.
NOTA –
09/10
Sinopse
S. tem vinte e nove anos, é
simpática, inteligente e bonita. Tem um namorado, uma casa e um emprego como
professora numa pequena cidade da Bósnia. Ou seja, tem uma vida normal. Até ao
dia em que um soldado sérvio bate à sua porta. A vida de S. é então subitamente
alterada - ela enfrenta agora uma realidade totalmente nova, onde não existem
pessoas mas apenas números, onde não há famílias ou lares mas apenas campos:
campos de trabalho, campos de concentração, campos de morte. O terror
psicológico é constante e a violação das mulheres uma arma de guerra,
sistemática e organizada.
S. é apenas mais um peão num
jogo de guerra, um jogo bem real, que encontrou como palco a Europa do limiar
do século XXI. Como se eu não existisse é o relato pessoal e chocante
dessa guerra e de uma luta travada pela sobrevivência; S. procura agarrar-se
desesperadamente ao que de humano existe em si, procura uma razão para ter fé e
esperança enquanto o mundo à sua volta se despedaça. Como se eu não existisse é
a tragédia do conflito dos Balcãs contada no feminino, no cenário de uma guerra
em que as mulheres foram parte integrante de um plano sistematizado de
aniquilação e domínio.
Olá querida Ana,
ResponderEliminarQue bom que gostaste do da Sara Novic. O outro não conhecia, mas já apontei 😉 como sempre excelentes recomendações.
Um beijinho e boas leituras
Olá, minha querida!
EliminarSim, o da Sara é maravilhoso e o outro também! Se o encontrares na tua biblioteca, não hesites!
Muitos beijinhos!!!
No livro da Sara Novic gostei de saber o que pode ter acontecido às crianças órfãs e às que foram tiradas do país por associações humanitárias, e também de ser uma perspetiva da guerra no lado da Croácia, visto que tenho lido sobretudo sobre Sarajevo. O meu problema com ele é o tom sóbrio que referes, que a mim me causou distanciamento. Se eu ler sobre a guerra num jornal, horroriza-me e deprime-me. Se a guerra me for transmitida com a mestria do Violinista de Sarajevo ou do Vir ao Mundo, sinto-o de outra forma, como se me tirassem o ar.
ResponderEliminarMas porque não sou um poço de insensibilidade, também fiquei bastante aturdida com Como Se eu Não Existisse, que tive de ler aos poucos, porque é um relato extremamente duro e violento. Passei o livro todo com o coração apertadinho para saber qual seria o desenlace do dilema dela. É como ter o passado sempre ali.
Depois do Holocausto, também vais fazer uma pausa na Guerra dos Balcãs, não?
Eu ainda tenho dois para ler que infelizmente ainda não estão editados cá: The Hired Man da Aminatta Forna, sobre uma aldeia croata após a guerra, e The Red Chairs, da Edna O'Brien, sobre uma mulher que se apaixona por um criminoso de guerra, ligeiramente baseado no Karadzic.
Beijinhos e leituras mais alegres!
Paula
Nada se compara a Vir ao mundo ou o Violoncelo de Sarajevo! Nada! Essas obras sempre estarão em patamares inatingíveis. E sim, também busco essa sensação de sufoco, é por isso que leio tanto sobre as guerras. Mas consegui-a encontrar nos dois livros que li em maio, em doses mais sóbrias, mas elas estão lá.
EliminarJá anotei as tuas sugestões!
Beijinhos, querida, e obrigada por estares sempre aí!