Cidade de ladrões, de David Benioff


Ficha técnica
TítuloCidade de ladrões
Autor – David Benioff
Editora – Publicações Dom Quixote
Páginas – 296
Data de leitura – de 10 a 17 de dezembro de 2017

Opinião
Hoje estou por minha conta. Tenho a casa só para mim e todo o tempo do mundo para fazer aquilo que bem me apetecer. Vou ler, ouvir música, apoderar-me do sofá e da televisão e finalmente começar um puzzle que me espera há muito tempo. Mas primeiro vou estar por aqui para dar-vos a conhecer o quão saborosa foi a última leitura que trouxe da biblioteca da terrinha.
Não me lembro como ou onde é que tropecei com este livro. Não sei se foi no Goodreads, se foi em algum dos blogues que sigo ou se alguém mo recomendou. Sei, isso sim, que o tinha há quase um ano na lista de obras a trazer da biblioteca e que já era hora de comprovar por que razão as expectativas que tinha sobre ele eram tão elevadas.
O cerco à cidade de Leninegrado foi um dos cercos mais destrutivos e mais longos da história bélica mundial. Durou mais de dois anos, desde 8 de setembro de 1941 a 27 de janeiro de 1944 e dizimou milhares e milhares de vidas, sobretudo civis, que pereceram devido aos bombardeamentos, à fome e ao frio dos longuíssimos invernos soviéticos. Um dos que sobreviveu a este período devastador foi o avô de David Benioff que aceitou o reto do neto – “Vivo em Los Angeles e escrevo guiões para super-heróis mutantes. Há dois anos fui convidado para escrever um artigo autobiográfico (…). Mas à medida que lutava com o artigo decidi que não queria escrever sobre a minha vida, nem mesmo com quinhentas palavras. Queria escrever sobre Leninegrado.” (pág. 13). São então as recordações do avô, de cinco dias da sua vida aquando do cerco à cidade soviética, que enchem as páginas desta obra maravilhosa e que recomendo a todos.
Lev Beniov tem apenas 17 anos e vive sozinho no apartamento que era de seus pais. Sente-se livre e dono do seu espaço, mesmo que passe horas infinitas sem meter nada à boca. Sabe como ninguém enganar a fome, sabe movimentar-se habilmente por entre os escombros e consegue Leninegrado, os espaços da sua cidade cercada como poucos. Numa noite em que está a vigiar os céus e a ser espetador de mais um bombardeamento, assiste à queda de um aviador alemão numa rua vizinha. Em poucos minutos, Lev e os amigos chegam junto do corpo do inimigo e apoderam-se rapidamente de tudo o que lhe podem roubar. Contudo, este roubo não termina bem para Lev que é capturado e levado para uma temível prisão. Aí, partilha cela com Kolya, um jovem soldado acusado de deserção. Os dois serão libertados na manhã seguinte, porque um poderoso coronel, que todos respeitam e receiam, tem uma missão para os dois – numa cidade sitiada, sem quaisquer provisões, terão de arranjar uma dúzia de ovos para o bolo de casamento da sua filha. Começa assim um périplo, de dimensões suicidas e utópicas, de dois jovens, que não se conhecem de lado nenhum, em busca do passaporte para a liberdade que lhes havia sido retirada no dia anterior.
Nos cinco dias que têm para cumprir a missão, calcorrearemos com Lev e Kolya as ruas e bairros da sua Piter natal, comprovaremos as condições sub-humanas em que (sobre)vivem os habitantes da cidade, os preços exorbitantes a que se vendem alguns alimentos (se é que se podem chamar de alimentos), as práticas canibalescas a que alguns se submetem, o pouco ou nada que se pode fazer perante o tremendo número de cadáveres que se acumulam nas ruas e que flutuam no rio Neva e abanaremos a cabeça de incredulidade ao relembrarmos que houve gente que conseguiu sobreviver a quase 900 dias neste inferno glacial, sem víveres e em circunstâncias inumanas.  
Após constatarem que não irão conseguir encontrar a dúzia de ovos em Leninegrado, os dois jovens partem a pé para as zonas rurais que envolvem a cidade e aí tomarão consciência de que o cerco alemão não é apenas atroz para quem vive para lá dele. A engrenagem nazi que mata, tortura e dizima tudo e todos com quem se atravessa está igualmente a fazer vítimas no campo, na parte rural do país e faz questão de subjugar com violência e dor quem vê como seus inimigos. Somos assim, tal como Lev e Kolya, espectadores de situações de uma brutalidade e frieza inimagináveis.
Porém, as páginas desta obra não se pintam só de dor, crueldade e sofrimento. Pelo contrário. Pintam-se de passagens hilariantes porque são protagonizadas por Kolya, uma personagem a quem ninguém, mas mesmo ninguém consegue ficar indiferente. Não sei se este jovem soldado, que abandonou por momentos o seu batalhão porque tinha que libertar a sua tensão sexual, porque tinha que satisfazer o seu ardor sexual com uma das muitas antigas conquistas, é uma personagem verídica ou não, se foi com ele que Lev embarcou na missão impossível de conseguir uma dúzia de ovos para o bolo de casamento da filha de um coronel, mas sei que Cidade de Ladrões não seria a obra deliciosa que é se Kolya não a habitasse. O amigo de Lev é imodesto, charlatão, arrojado, audaz, generoso, tem sempre uma resposta na ponta da língua e dá-a a quem for o seu interlocutor, seja Lev, o coronel poderoso quem tem a sua liberdade na mão ou um poderoso elemento do exército alemão. Detém um conhecimento considerável sobre o sexo oposto, sobre as artes do amor, sobre a literatura, fala alemão com bastante fluência e todos se rendem ao seu encanto e à sua lábia. É, em suma, uma personagem única, que me fez soltar gargalhadas com tiradas como “A minha pila quando se vem assobia o hino soviético”, por quem me apaixonei e a quem não vou esquecer tão cedo.
Confesso, para finalizar esta opinião, que nunca pensei que um autor que escreve guiões para super-heróis mutantes, fosse capaz de criar uma obra tão brilhante como esta. Sei que se baseou no relato do seu avô, sei que partiu de uma base real, verídica, mas o engenho de estruturar a narrativa, de criar diálogos deliciosos e de dar protagonismo a um jovem que não o seu avô, de estabelecer um equilíbrio precioso entre a imodéstia e a temeridade de Kolya com a ingenuidade, a precaução e a timidez de Lev, bem como entre os horrores próprios da guerra e os momentos hilariantes provocados por Kolya, são exemplos da maestria e do valor de um autor fabuloso e que teve o condão de agitar alguns preconceitos literários que ainda vou tendo. Por tudo isso, bravo David Benioff! E por tudo isso e mais, peço-vos, rogo-vos que leiam esta obra, se conseguirem encontrá-la. Sei que não será tarefa fácil, pois está indisponível por todo o lado. Mas talvez tenham sorte de encontrá-lo como eu, na biblioteca municipal da vossa zona, ou então em algum alfarrabista. Tentem, pois vale mesmo a pena!

NOTA – 10/10

Sinopse
A odisseia de dois jovens decididos a sobreviver durante o deplorável cerco a Leninegrado, contra todas as possibilidades, e a quem é confiada uma missão em que o frio, a fome e as autoridades russas se revelam tão perigosos como as forças invasoras da Wehrmacht. 
Os rapazes encontram-se pela primeira vez numa cela, onde esperam a execução sumária devido a acusações de legitimidade duvidosa. No entanto, ao invés de uma bala na nuca, recebem uma terrível tarefa: numa cidade sitiada, sem quaisquer provisões, terão de arranjar uma dúzia de ovos para o bolo de casamento da filha de um poderoso coronel. Lev e Kolya embarcam assim numa missão de cinco dias em busca do impossível, que os atira das ruas caóticas de Leninegrado para os campos devastados por trás das linhas alemãs. Pelo caminho vão encontrando assassinos, guerrilheiros e, por fim, o próprio exército alemão. Uma inesperada relação de cumplicidade acaba por se estabelecer entre o adolescente sério e o seu imprevisível companheiro, um sedutor incorrigível, cuja louca, porém enternecedora, bravura poderá conduzi-los tanto à morte como ao sucesso da missão.

4 comentários:

  1. Ler, fazer puzzles e ter a casa só para mim parece-me o programa perfeito!
    Excelente texto, Ana! Mais uma vez, conseguiste resumir o livro e realçar os seus pontos fortes sem contares demasiado. Adorei este livro, a forma como combina o ritmo acelerado de uma aventura cheia de perigos com uma situação histórica tão dramática, em que a argúcia, a lealdade e a coragem são constantemente postas à prova. Desde um pequeno livrinho chamado "Fome", de Elise Blackwell, que queria ler mais sobre o terrível cerco de Estalinegrado, porque realmente estamos sempre a ler sobre o Holocausto e Inglaterra, mas a Segunda Guerra foi avassaladora em mais pontos do globo.
    E sorte de quem tem uma boa biblioteca local e lê noutras línguas, porque esta pérola desapareceu do mercado!
    Paula

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    1. Foi um programa perfeito :)
      Obrigada pelas palavras carinhosas, mas a obra ajudou-me e muito a construir a correspondente opinião. É como tu dizes, e muito bem, o livro é fabuloso, a combinação entre aventura, perigos, contexto histórico, personagens que nos agarram e emoções à flor da pele só poderia culminar nesta pérola, nesta maravilha!
      Anoto o pequeno livrinho de que falas, porque já o quero o ler!
      Beijinhos e obrigada pelo comentário pertinente e que, como sempre, complementa o texto que escrevi!

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  2. Olá Ana,
    Parece ter sido um excelente dia! Tão bom também termos momentos só para nós :)
    Olha...pronto...mais um para a minha wishlist. Agora vou querer ler!! :)
    Um beijinho.

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    1. Foi um dia mesmo, mesmo muito bom :)
      Procura na biblioteca da tua zona, pois esta obra merece que todos a leiamos!
      É memorável!
      Beijinhos!

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