Ficha técnica
Título – Caderno
de Memórias Coloniais
Autora – Isabela Figueiredo
Editora – Angelus Novus Editora
Páginas – 160
Datas de leitura – de 30 de março a 01 de abril de 2018
Opinião
A última
leitura de março foi, tal como a sua antecessora, uma recomendação. Assim,
quando fui à biblioteca fornecer-me de leituras femininas acabei por trazer
mais uma, pois “great minds thinke alike” e nunca me arrependo de seguir as
tuas recomendações, Paula!
Como
sabem, gostei imenso de O retorno,
de Dulce Maria Cardoso e não me importei nadinha de voltar a territórios
africanos (bom… só assim irei a África, em viagens literárias, pois só de
pensar em lá pôr os pés, fico com taquicardia, mas isso são pormenores que
ficarão para outra altura…) e recuar aos anos 60 e 70 para conhecer outra
família, outra história de gente que teve que deixar para trás uma existência
abastada numa colónia e fugir para a metrópole após a independência de
Moçambique.
Esta,
ao contrário da história que preenche a narrativa de O retorno, é a história da própria autora, do seu nascimento
em terras moçambicanas, da sua infância e adolescência passadas em Lourenço
Marques (atual Maputo) e da vinda para Lisboa por uma questão de sobrevivência.
Nestes Cadernos de memórias coloniais, que Isabela Figueiredo sentiu que tinha
que escrever e publicar, ela expõe, numa linguagem crua, gráfica e ácida, o que
recorda desses tempos. Mas não é apenas uma mera exposição descritiva e
cronológica. É muito mais do que isso.
O livro
está dividido em três partes – o caderno das memórias, uma compilação de cinco
posts que a autora publicou no seu blogue e uma entrevista à mesma e que é um
excelente complemento à leitura do Caderno.
Vou centrar esta opinião na primeira e na terceira partes, já que foram as duas
que ficaram comigo e que são o perfeito exemplo da qualidade exímia da escrita
de Isabela Figueiredo.
O Caderno é autobiográfico e por
isso ainda mais avassalador, pois sentimos, desde as palavras iniciais, que
Isabela precisou de abrir a alma, escarafunchar feridas pessoais e
histórico-sociais para fazer justiça a si mesma, para ajustar contas com o
homem que mais amou e odiou na vida e para abordar sem filtros, com uma verdade
que não é bonita, uma época da nossa História recente que os politicamente
corretos nos pedem para guardar com discrição numa gaveta.
“O meu pai, a quem coube a missão de
electrificar a Lourenço Marques dos anos 60, nunca quis empregados brancos,
porque teria de lhes pagar os olhos da cara.”
“O negro estava abaixo de tudo. Não tinha
direitos.”
“Esta era a ordem natural e inquestionável
das relações: preto servia branco e branco mandava no preto. Para mandar, já lá
estava o meu pai; chegava de brancos!”
“Que aquele paraíso de interminável
pôr-do-sol salmão e odor a caril e terra vermelha era um enorme campo de
concentração de negros sem identidade, sem a propriedade do seu corpo, logo sem
existência.”
“A metrópole era suja, feia, pálida, gelada.
Os portugueses da metrópole eram pequeninos de ideias, tão pequeninos e
estúpidos e atrasados e alcoviteiros. Feios, cheios de cieiro, e pele de
galinha, as extremidades do corpo rebentadas de frio e excesso de toucinho com
couves. Que triste gente! Divertiam-se a mofar connosco, atirando-nos à cara
que estava difícil, pois estava, que aqui não havia pretinhos para nos lavarem
os pés e o rabinho, que tínhamos de trabalhar, os preguiçosos de merda, que nunca
fizeram a ponta de um corno pela vida, que nunca souberam o que era construir
uma vida e perdê-la, os tristes, os pequeninos, os conformados. Sabiam lá eles
o que eram os pretos, e o que éramos nós e o que tínhamos acabado de viver,
cobardes filhos de uma puta brava.”
“Os desterrados, como eu, são pessoas que não
puderam regressar ao local onde nasceram, que com ele cortaram os vínculos
legais, não os afectivos. São indesejados nas terras onde nasceram, porque a
sua presença traz más recordações. Na terra onde nasci seria sempre a filha do
colono. Haveria sobre mim essa mácula. A mais que provável retaliação. Mas a
terra onde nasci existe em mim como uma mácula impossível de apagar. Persigo
oficiais marinheiros que trazem escrita, na manga do casaco, a palavra
Moçambique.”
As
cento e sessenta páginas que li em dois dias são, como se pode comprovar pelos
excertos que aqui deixo, uma bofetada dolorosa e muito bem dada. A ela não escapam
colonos, retornados e nem a gente tristinha da metrópole. E tão-pouco escapa o
pai de Isabela, o homem que ela mais amou e mais odiou, o homem que a levava
para todos os lados, que a encavalitava nos seus ombros, que a deixava provar
uns resquícios da sua bebida alcoólica e o homem que constantemente insultava e
explorava sem escrúpulos os pretos. Um pai terno, brincalhão, mas um homem
violento, preconceituoso e racista. Um homem que amou desmedidamente e ao mesmo
tempo odiou.
Foi uma
leitura desgastante, mas não a trocaria por outra. Admiro ainda mais a autora
que já conhecia da obra A gorda.
Admiro a sua frontalidade, a sua valentia e a sua vontade de contar a verdade,
a sua verdade, mas que acaba por ser a verdade de muitos outros. Tenho
consciência de que deve ter sido horrível a luta que travou consigo mesma
quando iniciou este projeto que escancara as portas da sua vida e dos seus
familiares a quem queira entrar nelas. Por isso, como leitora, tenho apenas que
lhe agradecer (e muito), pois nunca soube de perto como terá sido a fuga de uma
colónia, muitas vezes apenas com a roupa do corpo e pouco mais, e lendo o seu Caderno consegui compreendê-lo
melhor, aprender e crescer como pessoa. Obrigada mesmo, Isabela!
Caderno de Memórias Coloniais foi reeditado pela Editorial Caminho
em 2015 e merece que o leiam, pois não se vão arrepender! Eu recomendo-o
vivamente!
NOTA –
09/10 (na minha opinião, os 5 posts que compõem a segunda parte da obra são
dispensáveis, pois pouco ou nada têm a ver com a temática colonial…)
Sinopse
«O Caderno de Memórias
Coloniais relata a história de uma menina a caminho da adolescência, que viveu
essa fase da vida no período tumultuoso do final do Império colonial português.
O cenário é a cidade de Lourenço Marques, hoje Maputo, espaço no qual se movem
as duas personagens em luta: pai e filha.» Isabela Figueiredo, in «Palavras
prévias»
Fico feliz por teres gostado, mas se algum dia não apreciares uma recomendação minha, não te acanhes, que eu adoro um bom debate de ideias!
ResponderEliminarSe puderes, deita mão à edição da Caminho e talvez passe a ser 10/10. Como é posterior à que leste, já não tem esses apêndices, mas antes um sentido e frontal texto da Paulina Chiziane, que me parece um contraponto ou um complemento fantástico, sendo a reacção de uma escritora moçambicana.
Além do mais tem um prefácio da própria Isabela que é um olhar sobre aquilo que escreveu anos antes e sobre a discussão suscitada pela publicação, tanto em conferências como junto de outros retornados. Não deve ter sido fácil esta exposição toda, pois ela diz: "Ao longo destes anos todos tenho assumido a missão de proteger a personagem do meu pai da fácil e tentadora diabolização que sobre ela é possível desenhar. Percebi que me cansei de o fazer. Compreendi que não posso controlar o que sobre ele é e será produzido. Existe o meu pai e a minha personagem. Fico com o primeiro." Fiquei ainda a gostar mais dela e desejosa de ler "A Gorda".
Bom fim de semana!
Paula
Sim, essa edição da Caminho tem tudo para contribuir para o tão desejado 10! Tenho que deitar-lhe a mão, sim senhora! Adorei o excerto que transcreveste - soberbo!
EliminarNão te preocupes, haverá seguramente debate quando alguma das tuas recomendações não me preencher!
E agora toca a ler "A Gorda"!
Bom domingo!