Os olhos de Tirésias, de Cristina Drios



Ficha técnica
TítuloOs olhos de Tirésias
Autora – Cristina Drios
Editora – Teorema
Páginas – 216
Datas de leitura – 05 a 11 de junho de 2018

Opinião
Faz praticamente um ano que fiz a minha estreia na Feira do Livro de Lisboa e, para assinalar esse momento histórico, comprometi-me a ler durante o mês de junho as obras que comprei há um ano atrás na Feira. Não sei se vou conseguir lê-las todas, mas vou tentar.
Dei início ao meu compromisso lendo uma (mais uma!) recomendação da Márcia Balsas e que comprei a muito bom preço o ano passado na FLL, pois era livro do dia. Os olhos de Tirésias foi finalista do Prémio LeYa em 2012 e está primorosamente bem escrito. Tropeçamos a cada passo com o cuidado e o mimo que a autora pôs nas palavras, na construção de frases e naquilo que as mesmas nos transmitem. Sentimo-nos embalados, as histórias e as personagens que se vão entrelaçando ao longo da narrativa têm um sabor muito próprio, conduzem-nos entre dois países, entre dois tempos, entre duas épocas muito distintas e acima de tudo embrenham-nos no seio de uma família portuguesa arrancada das fragas da serra da Lousã.
Mateus Mateus não se destaca apenas pela dobragem de nome. É um jovem de praticamente dois metros e que não é capaz de sentir emoção nenhuma, nem mesmo quando lhe morre o pai. Por ser assim, destituído da vontade de reagir à dor, à alegria, ao prazer, ao sofrimento, é-lhe renegado o direito de pertencer à família e acaba sendo criado pelo pároco da aldeia. Com dezassete anos, alista-se no Corpo Expedicionário Português e parte para a região de Flandres onde combaterá até ao final da Primeira Grande Guerra. Quase cem anos depois, a sua neta nada sabe sobre o gigante avô. Apenas possui uma fotografia sua e será esta o mote para uma decisão que mudará a sua vida – irá fazer tudo o que estiver ao seu alcance para descobrir quem foi Mateus Mateus, por que razão a sua vida sempre esteve envolta numa aura cerrada de mistério e, com essas descobertas, publicar um livro que o homenageie.
Da narradora também não sabemos muito. É casada, mas as brechas resultantes de interesses distintos e da súbita vontade de saber mais sobre os seus e sobre si própria e que a levará a outras paragens e a outros mundos provocam um distanciamento que parece não ter solução. Refugia-se inúmeras vezes no seu “nicho” profissional, um espaço diminuto num prédio dominado por escritórios de advogados e é nesses momentos de solidão que sentimos que esta narradora poderá, quiçá, ser um espelho da própria autora e das dificuldades inerentes à exigente tarefa de criar um romance.
Para além destas personagens fulcrais há outras não menos importantes e delas destaco o delicioso Émile, o menino órfão que deambula pelos cenários de guerra tirando da cartola momentos de magia, a belíssima Georgette que furará o círculo negro que sufoca Mateus e dois combatentes – Adolf que é, nada mais, nada menos, do que (creio eu) o jovem soldado austríaco que, anos depois, subirá ao poder, se transformará no chanceler alemão e desencadeará um novo conflito mundial e Erich Kramer ou Erich-Maria Remarque, o autor desse romance extraordinário – A oeste nada de novo – e que eu quero muito, mas muito reler! São exemplos do mimo e do cuidado que já referi e que tornam a leitura desta obra ainda mais rica e saborosa.
Sorrio. Tirésias, o vidente mais célebre de Atenas, era cego. Por ter visto algo que a nenhum mortal era concedido ver, a nudez de uma deusa, perdera a visão e ganhara, em troca, o dom da previsão. O avô Mateus, ao contrário, perdera a clarividência no meio da visão do horror. Adolf, ao contrário, tomado de cegueira histérica, viu o destino de uma nação com a luminescência de um louco. E eu, pensei, quantas vezes, como o comum dos mortais, não saberia ver para além do que olhava.” (pág. 210)
Toda a obra é um desbravar de auto-conhecimento que acompanhei deliciada. É realmente um romance lindíssimo, com passagens – como a que transcrevi – escritas com uma subtileza e uma assertividade que me conquistaram e que me fazem querer ler mais do que escreveu Cristina Drios. Criatividade, originalidade, personagens bem redondas, ambientes muito bem retratados e um estilo muito primoroso – ingredientes mais do que suculentos para que recomende vivamente a leitura de Os olhos de Tirésias.
(Uma pequena nota – escrevi quase todo este texto ao mesmo tempo que ia sofrendo com o jogo Portugal – Marrocos. Por isso, se o resultado final – como ficou o texto, quero dizer – ficou aquém das expetativas, perdoem-me! Lembrem-se que é uma obra mesmo muito boa!)

NOTA – 09/10

Sinopse
A descoberta de um retrato daquele avô cuja história a família sempre encobriu - Mateus Mateus, o gigante de olhar estranho que partiu, no contingente português, para a Flandres durante a Primeira Guerra Mundial - é o pretexto que a narradora encontra para, simultaneamente, escrever um romance e se afastar de um casamento que parece condenado ao fracasso. 

8 comentários:

  1. Já na wishlist :) ainda tenho livros comprados na Feira de 2015 por ler, uma vergonha...

    (acabei hoje de ler "Os armários vazios", da Maria Judite de Carvalho - um romance, não um livro de contos, e recomendo muitíssimo)

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    1. Bárbara, que bom ver-te por aqui de novo!
      Comigo não se passa isso, porque sou maníaca ao ponto de ler tudo (ou quase tudo) por ordem de entrada cá em casa... É por isso que não vou deixando nada para trás, mas sei que essa mania não dá para todos...
      Vai já para a wishlist o da Maria Judite!!! Quero mesmo muito!
      Beijo!

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    2. Sempre bom passar por aqui, Ana :) o tempo é que nem sempre me deixa comentar tudo... mas acredita que continuo deste lado!
      Eu já fui assim, e já fui a pessoa que comprava livros quando sobravam um ou dois por ler... ter um salário mudou os meus hábitos para muito pior!
      Ontem, por acaso, estive a fazer "contas" apenas às Feiras do Livro - em 2015 (primeiro ano em que comprei algo lá) comprei 17 livros, e já li 10; em 2016 comprei dez (e a Porto Editora ofereceu-me um da "colecção vampiro") e, dos 11, li 6; em 2017 enlouqueci e trouxe 22 - dos quais li apenas 6 (em minha defesa, foi um ano muito complicado). Este ano comprei 23 e trouxe mais um da colecção vampiro... o que aconteceu é que descobri editoras novas entretanto! Em 2015 comprei quase exclusivamente LeYa e um do Eça na Porto Editora, em 2016 descobri a barraca do El Corte Inglés com os seus livros estrangeiros, que nunca mais voltou a participar. Gostava muito de conseguir "limpar" os livros por ler :)
      É maravilhoso, Ana! Hei de escrever sobre ele - com tempo -, mas digo desde já que recomendo imenso! Favorito do ano, possivelmente :) beijinhos!

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    3. Gosto muito de te ter por aí, como bem sabes ;)
      Nunca comprei assim tantos livros nas Feiras, porque sempre me controlei. Agora esse controlo continua igual, mas vou-me perdendo com as promoções que vou encontrando em livrarias ou online.
      Também tenho muitos livros por ler, mas tento "limpá-los" por ordem cronológica de chegada! Assim sei que não deixo nada para trás!
      Beijinhos! E sim, hei-de trazer da biblioteca, como já te disse, o livro da Maria Judite!

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  2. Cara Ana, gostei bem mais da sua nota sobre o livro que do jogo de futebol, e foi importante pois tinha curiosidade em saber se também este livro da autora valeria a pena como o segundo "adoração" que li e gostei muito. Pelo que vejo em comum têm uma história incrivelmente bem imaginada, montada e contada. Ou seja alia as várias qualidades literárias que gosto num livro. Obrigado por este conselho e devolvo-lhe a recomendação com o segundo da autora. Deixo-lhe também umas passagens: (p.119) “Nunca se sabe o que pode subir à superfície quando se remexe no lodo de águas paradas: nada há mais perigosamente traiçoeiro do que o socrático “conhece-te a ti mesmo”. Deixai-vos, pois, ficar a boiar no conforto da superfície de vós mesmos. Não queirais saber qual é a criatura ignóbil, o pequeno monstro, que provavelmente se vos deparará quando imprudentemente abrirdes a vossa própria caixa de Pandora” e (p,164) “quem não entende que tudo é possível nos sonhos e na arte nada entendeu da vida”.
    Miguel Henriques

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    1. Muito obrigada, Miguel, pelo comentário e pela recomendação! Sabia da existência desse segundo livro e agora quero muito lê-lo, pois as citações são deliciosas e são um "cheirinho" daquilo que também eu mais gosto num livro!
      Vai direitinho para a wishlist!
      Abraços e que o terceiro jogo seja bem melhor!

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  3. Acho que nunca tinha lido um livro com uma narradora com a mesma profissão que eu, por isso, fiquei logo curiosa. Depois, a escrita primorosa e todo o imaginário da autora deixaram-me deliciada. Só achei que a narrativa tinha altos e baixos, sendo a primeira parte, para mim, mais forte do que as outras. Vou procurar mais dela, sem dúvida!
    Beijinhos
    Paula

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    1. Concordo contigo, a primeira parte é melhor! Agora é procurar pelo outro dela, o "Adoração"! Vou estar atenta e ver se o encontro a bom preço!
      Beijinhos e bom fim de semana!

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