Quarta-feira, 16 de setembro de 2015
Opinião
Um homem subjugado pela dor deixa a
sua vida para trás e parte. Parte para refugiar-se numa ilha no outro lado do
Atlântico, onde não conhece ninguém. Aliás, esse é um dos objetivos da sua fuga
– tudo que lhe é próximo, que lhe é conhecido fica e consigo apenas leva o
essencial para sobreviver. Porque é disso que se trata – sobreviver a uma perda
que nos tira o chão e a vontade de viver.
Este homem é o nosso narrador. Vai
partilhando connosco a viagem que o transportou a essa ilha do outro lado do
oceano, os dias afogados em álcool que vive num farol que arrenda e os
encontros/desencontros com alguns dos poucos habitantes insulares, com quem vai
esbarrando casualmente. Vai igualmente deixando que espreitemos as lutas que
vai combatendo com os demónios que o atormentam a qualquer hora do dia, sobretudo
à noite, quando já emborcou copos e copos de whisky na tentativa infrutífera de
afundar-se numa inconsciência alcoólica que o impeça de pensar e de recordar.
Contudo, as recordações não
desaparecem. Nem com litros e litros de whisky. Assombram-no, martirizam-no
constantemente, mas para o leitor são benéficas, pois vão-nos permitindo entrar
na vida passada do protagonista e perceber o que está por detrás de tanta dor e
de tanta vontade de deixar de resistir, de viver.
Nas poucas horas que não está a
afogar-se em álcool, o narrador vai, como já referi, entabulando conversas com
alguns dos habitantes e a contragosto vai conhecendo os seus hábitos, as suas
histórias, as suas rotinas. Desses habitantes destacam-se três – Elias Gro e a
sua filha pré-adolescente, Cecília, e Alma. Serão eles que tentarão penetrar na
carapaça que o narrador construiu à sua volta, serão eles que, por um lado, lhe
darão o espaço que ele necessita para viver a sua dor e, por outro, lhe
contarão as suas próprias experiências, lhe farão ganhar algum interesse pela
ilha e pelos seus habitantes (vivos ou mortos), o alimentarão, o tratarão com
compaixão e bulirão com os seus nervos com pedidos estranhos e atitudes que o
obrigam a viver e a interagir.
Dessas personagens “mais secundárias” destaco
Cecília e o seu pai.
É impossível não simpatizar com
Cecília e a sua personalidade de menina perspicaz, com uma inteligência e
sensibilidade aguçadas. Tem sempre uma pergunta pronta para ser feita, não se
contenta com qualquer resposta, põe em causa muitas das afirmações que ouve da
boca do narrador e não se apieda da sua dor, torcendo, por exemplo, o nariz ao
seu aspeto desmazelado e malcheiroso. É uma menina precoce, que por tudo e por
nada mostra o interesse e conhecimento que possui sobre os ossos do corpo
humano (na parte final da obra saberemos o porquê desse interesse), que nos
cativa por tudo isto e a quem me apeteceu, muitas vezes, embalar no colo…
Por sua vez, o seu pai, Elias Gro dá
título à obra, apesar de, aparentemente, ser uma personagem secundária… Pode, à
primeira vista, ser uma contradição, mas, à medida que a leitura avança e vamos
sabendo mais deste pai e único padre da ilha, compreendemos que, por muito
diferentes que sejam, entre o narrador e Elias Gro existe um profundo
paralelismo e que ajudará o primeiro a regressar à vida.
O
luto de Elias Gro
é a quinta obra de João Tordo que leio. Confesso que não me arrebatou como a
anterior, Biografia involuntária dos
amantes, mas proporcionou-me momentos de intensa sintonia com o
narrador e demais personagens. Senti as suas dores, vivi as suas tormentas e a
personalidade de Cecília desarmou-me de tal forma que não quis abandoná-la, particularmente
na última página da obra, onde num parágrafo algo longo, o autor, juntando
palavras particularmente belas e a transbordar de sentimento, me fez chorar com
a fórmula perfeita para encerrar uma história triste, dorida – como todas as
que já li de João Tordo – mas com aquela pincelada de esperança e de redenção.
Não quero terminar esta opinião sem
deixar aqui registado um paralelismo que só me ocorreu horas depois de ter
chegado ao fim da leitura e ainda estar a sentir o sabor que a obra deixou e a
despedir-me dela devagarinho. João Tordo foi o tradutor da versão inglesa de Rosa Candida, da autora islandesa
com um nome impossível de lembrar. Ora, nesse romance o protagonista, tal como
o de O Luto de Elias Gro, deixa
a sua terra natal e parte para um destino longínquo, que nunca sabemos
exatamente onde se localiza, para esquecer a sua vida passada… Coincidência? Ou
será que não?... Talvez nunca saberemos…
NOTA – 09/10
Sinopse
Numa
pequena ilha perdida no Atlântico, um homem procura a solidão e o esquecimento,
mas acaba por encontrar muito mais.
A
ilha alberga criaturas singulares: um padre sonhador, de nome Elias Gro; uma menina
de onze anos perita em anatomia; Alma, uma senhora com um coração maior do que
a ilha; Norbert, um velho louco que tem por hábito vaguear na noite; e o
fantasma de um escritor, cuja casa foi engolida pelo mar.
O
narrador, lacerado pelo passado, luta com os seus demónios no local que
escolheu para se isolar: um farol abandonado, à mercê dos caprichos da natureza
- e dos outros habitantes da ilha. Com o vagar com que mudam as estações, o
homem vai, passo a passo, emergindo do seu esconderijo, fazendo o seu luto, e
descobrindo, numa travessia de alegria e dor, a medida certa do amor.
O
luto de Elias Gro é o romance mais atmosférico e
intimista de João Tordo, um mergulho na alma humana, no que ela tem de mais
obscuro e luminoso.
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