Ficha técnica
Título – O
rapaz do caixote de madeira
Autor – Leon Leyson
Editora – Editorial Presença
Páginas – 188
Datas de leitura – de 16 a 19 de janeiro de 2018
Opinião
“Quem
salva uma vida salva o mundo inteiro” (inscrição extraída do Talmude)
Vi pela
primeira vez o filme A lista de
Schindler há mais de vinte anos e não consigo recordá-lo sem que as
lágrimas me marejem os olhos e sem que um nó se instale na minha garganta. São
mais de três horas de película a preto e branco sobre “(…) Oskar Schindler, esse homem complexo e cheio de contradições –
oportunista nazi, intrigante, corajoso, rebelde, salvador, herói – [que salvou]
cerca de mil e duzentos nazis de uma morte quase certa.” (pág. 132). São
mais de três horas que nos ferem e nos torturam, que me fizeram morder os
lábios, os dedos, as mãos, que me deixaram sem reação, atónita e completamente
exaurida. Creio que poucos filmes tiveram em mim o efeito que A lista de Schindler teve, talvez
porque Spielberg foi brilhante ao transpor para a sétima arte um retrato cru e
sem filtros do que foi o Holocausto, o extermínio do povo judeu nas mãos dos
nazis e um lampejo de esperança e de humanidade de alguém que, mesmo estando no
lado do inimigo, “(…) pode levantar-se
contra o mal e fazer a diferença.” (pág. 162)
Leib
Lejson (conhecido mais tarde como Leon Leyson) era o número 289 da lista de
Schindler. Uma lista onde figuravam os judeus que deixariam de estar no
“inferno de Plaszów” (campo de trabalho às portas de Cracóvia) e ingressariam
num subcampo adjacente às instalações da fábrica Emalia, pertencente a Oskar
Schindler. À força de persuasão e subornos a compatriotas nazis, o empresário
convencera-os de que era do interesse do partido e da guerra que os
trabalhadores vivessem paredes meias com a fábrica e não tivessem que percorrer
duas vezes a distância considerável que separava a fábrica de Plaszów.
Arriscando a sua própria vida, o único nazi que conheço que está sepultado em
território israelita tratou “os seus judeus” como seres humanos, empregou um
rapazinho franzino e débil, que tinha que empoleirar-se num caixote de madeira
virado ao contrário para poder manobrar os comandos da máquina, deu-lhe uma
ração suplementar e tudo fez para que não se visse separado dos seus familiares
e para que não perdesse a vida nas mãos dos seus congéneres do partido.
Arrancou-os do campo de Plaszów, do campo de Auschwitz e só os abandonou quando
a guerra já estava perdida para os alemães e corria perigo de ser capturado
pelos soviéticos. Mas “Não conseguiu
partir sem se despedir, e reuniu os seus judeus uma última vez.” (pág. 131)
Deixou-os livres. Deixou-os vivos.
Leon
Leyson confessa no epílogo desta obra que reúne as suas memórias que o filme A lista de Schindler mudou a sua
vida, que até ao momento do seu lançamento permanecera em silêncio acerca do
seu passado, mas que a adaptação cinematográfica de algo tão intimamente ligado
a si, ao seu passado e ao da sua família, o fez quebrar esse silêncio e
partilhar a sua vida, a sua experiência traumatizante como criança judia
sobrevivente do Holocausto com todos aqueles que o quisessem ouvir. Fê-lo
inúmeras vezes, para distintos públicos e sem nunca preparar o que iria dizer e
relembrar.
Dessa
partilha resultou este livrinho que me tocou profundamente, que me fez recordar
imagens do filme de Spielberg e o quanto as mesmas me violentaram e que me
obrigou a engolir a vergonha que sempre sinto quando me deparo com o facto de
que o Homem, um ser racional, tem comportamentos indignos, desprezíveis e
infinitamente piores do que os dos animais. Essa partilha transportou-me ainda
para o país onde as garras exterminadoras do ideal ariano deixaram marcas mais
nefastas. Estive na aldeia natal de Leon e sobretudo na cidade de Cracóvia, na
qual o nosso protagonista viveu em tempos de paz e em tempos de inferno.
Percorri ao seu lado as ruas dessa cidade histórica, senti como se fosse meu o
deslumbramento de Leon perante os testemunhos da sua riqueza medieval e acima
de tudo encolhi-me de dor, de compaixão e de revolta quando tudo aquilo que ele
foi descobrindo nas suas deambulações pelos recantos de Cracóvia lhe foi vedado
por muros de mais de três metros e que o mantinham cativeiro num gueto desumano
e aterrador.
Nenhuma
leitura que aborde o Holocausto me deixa indiferente. Não poderia deixar. Mas
quando as mesmas são de testemunhos verídicos, a repulsa, o tolhimento e a vergonha
atormentam-se por muito mais tempo. Fazem-me questionar tudo e todos, inclusive
a mim. Há uma parte nas memórias de Leon que me abanou de forma muito intensa.
É a que se refere à sua saída do gueto para o campo de Plaszów – “… fiquei atónito ao verificar que a vida
parecia igual ao que era antes. Era como se eu estivesse num túnel do tempo… ou
como se o gueto ficasse noutro planeta. Pasmei para as pessoas limpas e bem
vestidas, atarefadas de um lado para o outro. Pareciam tão normais, tão felizes…
Não saberiam o que nós tínhamos sofrido, a uns escassos quarteirões de
distância? Como poderiam não saber? (…) Que a nossa miséria, o nosso
confinamento e a nossa dor fossem irrelevantes para as suas vidas era
simplesmente incompreensível.” (págs. 92, 93) Os gentios polacos tinham
continuado com as suas vidas, mesmo com um gueto dentro de portas. Optaram por
fechar os olhos e ignorar que a fome, as condições desumanas, as deportações e
uma máquina hedionda estavam a dizimar homens, mulheres e crianças apenas
porque professavam uma religião diferente. É óbvio que nem todos viraram a
cara. É óbvio que muitos ajudaram como puderam aqueles que até ao dia 1 de
setembro de 1939 haviam sido seus vizinhos. Mas a grande maioria baixou a
cabeça e preferiu ignorar, não saber. Deixou-se tolher pelo medo e pelo
instinto de sobrevivência. E aqui me pergunto? Será que eu, se me visse em
pleno palco de uma guerra de proporções mundiais, a poucos metros de um cenário
de matança desenfreada e injustificável, me encolheria, olharia para o outro
lado ou me levantaria contra o mal e tentaria fazer a diferença? Quero
acreditar que seria forte e audaz como o foi Oskar Schindler ou tantos e tantos
anónimos alemães, polacos, austríacos, holandeses, belgas ou franceses, mas…
seria capaz? É por isso que os olho a todos e, neste caso, a Schindler como um
herói, um ser extraordinário que sempre merecerá a minha total admiração. E é
também por isso que sigo com a minha obsessão, que procuro de forma quase
doentia narrativas totalmente verídicas ou baseadas em factos verídicos sobre as
Grandes Guerras ou sobre a Guerra Civil Espanhola. Porque as mesmas são um
ensinamento, são lições que nunca deveremos esquecer e são testemunhos do pior
e do melhor que nos compõem como seres humanos.
Leon
Leyson faleceu no início de 2013, um dia depois de entregar o manuscrito final
deste livro à editora. Havia cumprido a sua missão. A mim só me resta
agradecer-lhe a partilha. Tornou-me mais rica, um ser melhor. Como leitora,
continuo a sua missão e peço-vos que façam o mesmo que eu. Não deixem que o
mundo se esqueça de Leon ou de Oskar Schindler. Por favor.
Com
esta leitura participo no desafio literário do Goodreads Leituras do Holcausto III. Obrigada, Isa!
NOTA –
10/10
Sinopse
Leon Leyson tinha apenas dez
anos quando os nazis invadiram a Polónia em 1939 e a sua família foi forçada a
viver no gueto de Cracóvia. Neste seu livro de memórias, Leon começa por nos
descrever uma infância feliz, na sua aldeia natal e felizmente para a família,
o seu caminho cruzar-se-ia com o de Oskar Schindler que os incluiu na célebre
lista dos trabalhadores da sua fábrica. Na altura com apenas 13 anos, Leon era
tão pequeno que tinha de subir para cima de um caixote de madeira para chegar
aos comandos das máquinas. Ao longo desta história, que reproduz com
autenticidade o ponto de vista de uma criança, Leon Leyson deixa-nos entrever,
no meio do horror que todos os dias enfrentavam, a coragem, a astúcia e o amor
que foram necessários para poderem sobreviver.
Não há mais leituras do Holocausto para mim, como já disse antes, mas este teu belo texto tocou-me. Também me interrogo muito sobre a minha coragem face à maldade e à injustiça e deve ser por isso que gosto de ler sobre pessoas comuns e até medrosas que avançam quando devem fazê-lo.
ResponderEliminarDeves conhecer, mas sempre que estas questões se levantam, lembro-me deste poema:
First they came for the Socialists, and I did not speak out—
Because I was not a Socialist.
Then they came for the Trade Unionists, and I did not speak out—
Because I was not a Trade Unionist.
Then they came for the Jews, and I did not speak out—
Because I was not a Jew.
Then they came for me—and there was no one left to speak for me.
Beijinhos,
Paula
Não conhecia o poema, mas adequa-se na perfeição àquilo com que me debati nesta obra e com que me debato sempre em leituras similares. Também prefiro encontrar-me com personagens e personalidades iguais a qualquer um de nós, são bem mais verosímeis do que o herói ou a heroína que enfrenta tudo e todos de peito aberto, sem duvidar nunca.
EliminarCompreendo, como já disse, a tua decisão de não voltar ao Holocausto - é tudo demasiado, tudo...
Beijinhos e bom fim de semana!